As revelações sobre os abusos de Jean Vanier: entre a incredulidade e a raiva

| 26 Fev 20

A revelação de que Jean Vanier, fundador d’A Arca, teve relações sexualmente abusivas com seis mulheres deixou perplexas milhares de pessoas em todo o mundo. Nada podia ser mais contraditório com a imagem de um homem que promoveu a integração dos mais frágeis. Caiu a “estátua do santo” ou o ícone, dizem alguns. Outros manifestam-se furiosos e há quem, entre sentimentos vários, procure explicações para o incompreensível. Uma síntese do caso e de várias das leituras que, sobre ele, desde sábado se sucedem.

Jean Vanier em 2015. Foto © Filipe Teixeira

 

Estupefacção, incredulidade, dor, raiva, ferida. A notícia de que o fundador d’A Arca Internacional, Jean Vanier, teve relações sexualmente abusivas com seis mulheres, entre 1970 e 2005, deixou atónitas milhares de pessoas pelo mundo fora. Nenhuma das mulheres tinha problemas de incapacidade mental – a Arca está presente em 38 países, com 154 comunidades em que voluntários e pessoas com deficiência vivem em conjunto.

“Tenho a maior dificuldade em acreditar nisto depois do que conheci do Jean, do seu discurso muito centrado nas realidades humanas, mesmo quando fala da nossa relação com Jesus”, admitiu ao 7MARGENS Alice Caldeira Cabral, uma das dinamizadoras, em Portugal, do Movimento Fé e Luz, inspirado nas propostas e dinâmicas d’A Arca e de Jean Vanier.

“Neste momento sinto uma grande necessidade de nos unirmos, nós que fomos marcados pela mensagem muito interessante que ele veiculou e de pedir ao Espírito Santo que nos mostre como gerir esta bomba…”, acrescenta a mesma responsável do Fé e Luz.

Jean Vanier, que morreu a 7 de Maio do ano passado, em Paris, com 90 anos, manteve durante anos relações sexuais com mulheres, maiores e sem incapacidades mentais, usando o seu ascendente no âmbito do acompanhamento espiritual e um discurso místico manipulador para obter o consentimento, disseram os responsáveis d’A Arca que conduziram o inquérito, resumindo o teor das conclusões.

São “dolorosas revelações”, referia o jornal La Croix. Pior ainda: as principais conclusões do inquérito, divulgadas sábado passado, 22 de Fevereiro, mostram também que Vanier tinha conhecimento dos abusos sexuais cometidos pelo seu “pai espiritual”, o padre dominicano Thomas Philippe, que o inspirou a criar A Arca e com quem acabaria a partilhava diversas ideias e comportamentos desviantes, como referem as conclusões divulgadas.

 

“Uma falsidade revoltante”

Capa do livro onde Jean Vanier se refere aos abusos do padre Thomas Philippe

No relato do La Croix sobre a conferência de imprensa em que foram divulgados os resultados da investigação, conduzida desde Junho do ano passado, ao anúncio das conclusões seguiu-se “um longo minuto de silêncio”, com os responsáveis d’A Arca ainda perturbadíssimos por aquilo que acabavam de divulgar.

De facto, no livro Ouve-se um Grito (publicado em Portugal pelas Paulinas), Jean Vanier escreve sobre o assunto: “No ocaso da minha vida, tive conhecimento que havia pessoas – mulheres – que quiseram dar testemunho do seu sofrimento em relação ao padre Thomas por causa dos seus comportamentos posteriores à fundação da Arca. (…) Esses comportamentos feriram gravemente essas pessoas e são dolorosos para a Arca. Quando me foi dado conhecimento os depoimentos dessas mulheres abusadas, fiquei transtornado. Não era possível. Pouco a pouco tive que acolher essa realidade dolorosa que ignorei totalmente até bem depois da morte do padre Thomas. Uma cólera surda. Depois a tristeza… E uma grande incompreensão: como foi possível? O padre Thomas teria perdido a cabeça? No fundo de mim há uma rejeição absoluta, uma condenação nítida desses actos de abuso referidos por essas mulheres. Mas mais ainda do mais profundo de mim nasceu uma compaixão profunda por elas, vítimas desses abusos.”

O texto, escrito em 2107, nada diz sobre o próprio Vanier. Mas ele poderia ser escrito, à luz do que agora foi revelado, sobre ele mesmo, pelos responsáveis d’A Arca e muitas outras pessoas que conviveram com Vanier ao redor do mundo, ao longo de décadas.

“Sendo verdade o que se diz dele”, diz Alice Caldeira Cabral, ainda perplexa com os factos, esta passagem do livro “é de uma falsidade revoltante”. Ao escrever a obra, acrescenta, “um homem com a capacidade de introspeção do Jean, não tem atenuante nenhuma em relação à sua consciência”. E acrescenta, quase ainda duvidando das conclusões do inquérito: “Se ele não tivesse falado do assunto, fugindo a abordá-lo, apesar de tudo seria para mim mais credível.”

Com o “coração desolado”, Pierre Jacquand, membro d’A Arca há 22 anos e seu actual responsável em França, confessava-se também dividido entre o ter ficado “siderado” com a “vertiginosa distância entre o homem que conhecemos e tudo o que descobrimos sobre a sua existência”. E admitia, também ele, uma espécie de resistência interior que lhe dizia “não, ele não”, e “a tristeza de ter sido traído: Jean Vanier era meu amigo, fez-me muito bem, tal como a milhares de outras pessoas, devo-lhe muito. Ele preferiu mentir-nos em vez de ser infiel aquilo em que acreditava, às teorias do padre Thomas Philippe, às quais ele próprio aderiu e pôs em prática.”

 

“Testemunhos sinceros e concordantes”

Jean Vanier durante uma refeição numa das casas d’A Arca. Foto reproduzida da página https://www.larche.org/web/jeanvanier/home.

 

Os testemunhos recolhidos, dizem as conclusões da investigação, são “sinceros e concordantes”: seis mulheres, de origem e condições diferentes (celibatária, casada, consagrada), sem ligação entre elas, de acordo com o texto de apresentação publicado na página d’A Arca Internacional, fizeram as denúncias não por espírito de vingança, mas porque a distância entre a imagem pública de Jean Vanier e o que elas tinham vivido era demasiado grande. Única atenuante – se a expressão pode ser usada: “Nada no inquérito permite pensar que pessoas em situação de deficiência estiveram envolvidas.”

A investigação permitiu ainda concluir que, desde os anos 1950, e contrariamente ao que o próprio sempre afirmaria, Jean Vanier tinha sido informado da condenação canónica do padre Thomas pelas suas teorias qualificadas como “falsa mística” e “das práticas sexuais que daí resultaram”; e também nessa altura, Vanier teria integrado um pequeno grupo clandestino que aderiu e participou em algumas das práticas sexuais desviantes” de Thomas Philippe, “enraizadas nas chamadas crenças ‘místicas’ ou ‘espirituais’ que tinham sido condenadas pela Igreja Católica e que incluía algumas mulheres.

Stephan Posner et Stacy Cates Carney, responsáveis d’A Arca, escreveram uma carta aos membros da associação, no próprio dia 22, na qual se dizem muito “perturbados” pelas conclusões, condenando “sem reservas” estes comportamentos, “em total contradição com os valores” que Jean defendia. E, ao mesmo tempo, reconheciam e agradeciam “a coragem e o sofrimento” das mulheres que falaram e daquelas que, porventura, se mantêm ainda hoje em silêncio.

Foram relações “constrangidas e não consensuais”, que deixaram “feridas profundas” em várias delas, e que duraram, em alguns casos, vários anos, diz o texto. Sempre no quadro do acompanhamento espiritual de um homem que era, de facto, considerado por muitos como um mestre da mística.

 

“Fazer o luto”

“Estas pessoas estão próximas de Deus, porque são pessoas do coração e não da cabeça”, afirmava Jean Vanier. Foto reproduzida da página d’A Arca (https://www.larche.org/web/jeanvanier/home)

 

Autor de quatro dezenas de livros, homem humilde, nos seus 1,90 metros de altura, Jean falava das fragilidades humanas e da necessidade de “entrar em relação” com as pessoas mais pobres ou sofredoras, mais do que fazer coisas para elas, ajudando-as “a encontrar confiança em si mesmas e descobrir os seus próprios dons”.

Nas suas conversas, Vanier, que nunca se comprometeu formalmente ao celibato, mas também nunca casou, usava argumentos supostamente místicos: “Não somos nós, é Jesus e Maria. Tu és escolhida, tu és especial, é um segredo”, contou uma das vítimas. “É Jesus que te ama através de mim.” Uma outra contou que pediu conselho ao padre Thomas, mas ele respondeu com os mesmos argumentos e também abusou dela.

Os dois responsáveis d’A Arca assumem, na carta já citada, a determinação de garantir que, nas 154 comunidades sejam lugares seguros e de avaliar se as medidas já postas em prática contra os abusos são suficientes. Os resultados da investigação e a documentação recolhida foram enviadas à Comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja Católica.

Jean Vanier, acrescentam os dois responsáveis, inspirou fortemente “e reconfortou muitas pessoas em todo o mundo”. E dizem ainda: “Embora o bem considerável que ele fez ao longo da sua vida não esteja em questão, teremos de fazer o luto de uma certa visão que possamos ter tido dele, bem como das nossas origens.”

No La Croix, Stephan Posner afirma: “Ele escondeu-nos toda uma parte da sua existência. Ele não soube, não pôde, não quis voltar a essa parte da sua trajectória.” E acrescenta, sem querer fazer disso uma desculpa: “Talvez, psicologicamente, ele não conseguisse ouvir, caso contrário teria sido arrasado. Quer estivesse ou não sob a influência de Thomas Philippe, ele deixou de ser uma vítima para ser responsável pelos seus actos.”

 

Um ano de investigações

Desde 2015, quando um novo inquérito canónico foi pedido pel’A Arca e revelou a responsabilidade do padre Thomas em vários casos de relações sexuais abusivas, o mal-estar instalara-se, mas Jean Vanier, interrogado várias vezes incluindo nos média, negou sempre conhecer esses factos. Mas em Maio de 2016, recorda o La Croix noutro texto, uma primeira vítima pôs em causa o comportamento de Jean Vanier, que confessou a relação, mas que disse que pensava ter sido recíproca e que não se recordava de ter usado qualquer justificação mística. Vanier aproximou-se da mulher, pedindo-lhe perdão.

Pouco antes da sua morte, apareceu um outro testemunho, tendo A Arca decidido imediatamente fazer uma investigação, entregue em Junho ao GPCS (Global Child Protection Services), organização britânica independente conhecida pelo seu trabalho no aconselhamento e prevenção contra abusos sexuais. Dois responsáveis d’A Arca e um historiador, Antoine Mourges, além de vários outros investigadores, acompanharam o inquérito e cruzaram informação com o GPCS.

O inquérito foi feito em articulação com a Conferência dos Bispos de França (CEF) e a Conferência de Religiosos e Religiosas de França e com o apoio do primaz anglicano, Justin Welby, e do Papa Francisco, que recebeu os responsáveis d’A Arca há três semanas. “Sentimos muita empatia. Ele também estava chocado, mas confirmou-nos na nossa indagação para fazer toda a luz” sobre o caso, relata ainda Stephan Posner, citado no La Croix.

Agora, a investigação quer chegar mais longe, para perceber se algum outro responsável da organização teve conhecimento do que se passou com o fundador. E A Arca abrirá “espaços de palavra” nas suas comunidades, para que os seus membros possam exprimir as suas reacções e acompanhar os processos de “luto”.

 

“Como podia ele unificar sombra e luz?”

Capa do livro “Verdadeiramente Humanos”, na sua edição portuguesa

 

O bispo Éric de Moulins-Beaufort, presidente da CEF, admitia também, em declarações ao La Croix, a sua perplexidade, pelo facto de Jean Vanier ter chamado tanto a atenção sobre as pessoas com deficiência. E, confessando a sua “tristeza imensa”, verbalizava as perguntas que muitas pessoas terão feito: “Como podia ele unificar tudo isso na sua existência? Como pode ele entrar no horrível jogo do padre Thomas Philippe, ter sido cúmplice e mantido esta louca pretensão de um estado místico superior? A sua morte nunca permitirá saber. Será necessário um trabalho interdisciplinar para compreender o que era a sua personalidade.”

Precisamente sobre este lado sombrio de Jean Vanier, o poeta e ensaísta canadiano Jacques Gauthier, que conheceu Vanier em 1973 e com ele esteve na comunidade-mãe de Trosly, escreveu no seu blogue que é o “ícone” que é posto em causa. “Hoje, a dor é imensa, mais que pela sua morte. Como muitas pessoas, sinto-me traído. Este luto é colectivo, porque toca a imagem que tínhamos de Jean, o sofrimento das mulheres que ele atacou, a angústia daqueles que trabalham n’A Arca, as pessoas com deficiência, a Igreja e o mundo, para quem João era um ícone. Eu compartilho e rezo. Só me restam a oração, as lágrimas, o silêncio e as palavras.”

Agora, acrescenta, “esta história sombria também faz parte da história d’A Arca, e é através dela que o Cristo Ressuscitado exerce a sua misericórdia. Há o mensageiro falível e a mensagem de fraternidade e paz; há o vulnerável fundador e A Arca continua o seu trabalho de acolhimento e defesa dos deficientes.”

“Há uma parte de sombra e de luz em cada um de nós, um combate entre o bem e o mal, a graça e a liberdade”, acrescenta Gauthier, citando São Paulo: “Não faço o bem que quero e faço o mal que não quero”. E conclui: “O lado negro de Jean é ainda mais marcante porque estávamos habituados a ver apenas a luz da sua imagem icónica: um homem pobre e bom que deu tudo à Arca, um profeta do Evangelho que estava tão perto dos mais sofredores, um orador da palavra sábia e reconfortante. Tudo isso é verdade e o bem que João realizou ao longo de sua vida continua sendo um verdadeiro bem. Mas as perguntas permanecem. (…) temos tanta necessidade de modelos que, por vezes, fazemos deles ídolos intocáveis. Mesmo eu tomava Jean como santo, mas a estátua acaba de cair.”

 

“Criar um ambiente propício ao abuso”

Na procura de factores que ajudem a entender o que se passou, Alice Caldeira Cabral vai buscar o trabalho que também fez na prevenção de abusos sexuais: “O abusador pode utilizar bloqueios de vária índole para criar um ambiente propício ao abuso que, independentemente dos actos praticados, é sentido pela vítima como um acto abusivo e traumatizante mas que, para o abusador, pode não ser vivido como tal.”

Trata-se sempre, acrescenta, “de um comportamento compulsivo por parte do abusador”. Este “só actua ao entrar no ciclo e depois de o ‘organizar’, ou seja, de encontrar estratégias de diminuir/iludir o estado de consciência, reduzir as barreiras externas (vigilância) e encontrar uma vítima vulnerável, reforçando sempre a sua vulnerabilidade”.

Depois de ler as descrições do que se passou com o padre Thomas, Alice Caldeira Cabral não tem dúvidas de que “as fantasias místicas serviam para bloquear a consciência da ilicitude, deixando emergir as pulsões sexuais”. E acrescenta: “Não seria improvável que ele tentasse envolver o Jean, sobre quem tinha um ascendente claramente muito forte, nas suas práticas. E que isso se possa ter tornado um comportamento compulsivo nele também. É possível e bate certo com aquilo de que as vítimas se queixaram.”

Jean Vanier em 2015. Foto © Filipe Teixeira

A pergunta é: “Porque existe o bem no mundo?”

Na sua coluna no Religion News Service, dos Estados Unidos, o padre e teólogo Thomas Reese, também admite que “descobrir que uma pessoa assim era uma fraude” o deixa furioso. “Ao mesmo tempo, pergunto-me por que estou surpreendido? A história ensinou-nos o carácter falhado e pecaminoso da maioria dos homens famosos (… e) está cheia de maus papas, bispos e padres (… ou) de grandes líderes e pensadores que foram anti-semitas e racistas”. E também é “quase impossível encontrar na Bíblia uma figura importante que não seja também um pecador”.

“A mensagem das Escrituras não é que estes homens são santos, mas que Deus pode usar pessoas falhadas e pecaminosas para fazer grandes coisas.” Mas, perante os “que abusaram do seu poder para se aproveitarem dos vulneráveis”, Reese diz que prefere deixar o seu perdão para Deus, pois ele ainda está “zangado por causa do mal feito às pessoas que foram exploradas por estes homens”.

E conclui dizendo que a pergunta de muitas pessoas – “como pode haver um Deus quando existe tal mal no mundo?” é a oposta daquela que a ele o surpreende: “Porque existe o bem no mundo? Tendo em conta de onde vimos e o mundo em que vivemos, porque existe o amor? Porque é que há auto-sacrifício? Estes são milagres de graça. Estes são sinais do Espírito Santo, da presença de Deus no mundo. É o Espírito Santo que nos empurra para cima na nossa jornada evolutiva além do egoísmo e do pecado, para a bondade e o amor.” Para quem está também zangado, a receita, diz, é não deixar que o pecado cegue “para a presença da graça no nosso mundo” e as pessoas deixarem-se “surpreender com o amor”.

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