[Assunção da Virgem Santa Maria – Solenidade 2023]

[oh portas e mais portas! / abrindo o futuro ― / mulher vestida de luz © haicai e fotografia Joaquim Félix]
1. Depois da avalanche de acontecimentos e de imagens,
que as Jornadas Mundiais da Juventude proporcionaram,
com músicas, palavras e coreografias extraordinárias,
e gestos que jamais esqueceremos e nos levam à gratidão a tanta gente,
sentimo-nos como que a descer o «monte muito alto» (cf. Mt 17,1),
onde nos encantámos com várias ‘transfigurações’.
Sim, não podemos montar tendas nesse longo clímax,
nem nos demorar em expressões ― e tantas foram! ―
equivalentes àquela de S. Pedro na Transfiguração de Jesus:
«Senhor, como é bom estarmos aqui!» (Mt 17,4).
É impressionante a generosa consensualidade ― coisa rara! ―
das avaliações feitas, extremamente positivas aliás,
que nos ajudam a reanimar a esperança cristã
e a sentir a alegria poliédrica da ‘catolicidade’.
Porém, não demorarão avaliações com outros matizes,
diferentes modos de apreciar e leituras mais profundas;
tudo necessário para discernir e apontar o futuro.
2. Em duas semanas, porém, parece que passamos a outra avalanche,
infelizmente, de imagens aterradoras, tal é a enormidade dos desastres.
Nelas se contam, por exemplo, os incêndios, como o de Odemira,
e, no Havai, o da Ilha de Maui, onde ainda se buscam cadáveres calcinados;
as cheias em vários países europeus (Noruega, Eslovénia, Rússia)
e asiáticos (sudoeste da China, Japão, Bangladesh e na Índia).
Além destas tragédias, somam-se os atentados terroristas,
em vários países de África e da Ásia.
São também de lamentar as inúmeras mortes
nas arriscadas e fatídicas travessias do mar Mediterrâneo,
qualificadas pelo incansável e denunciador Papa Francisco
como uma «ferida aberta na nossa humanidade».
Ou o escândalo do navio «prisão-flutuante», atracado na Ilha de Portland,
donde foram retirados 500 estrangeiros, por causa de uma bactéria.
Não podemos esquecer os contínuos bombardeamentos russos,
aos silos de cereais, a Odessa e outras cidades da Ucrânia…
Esta lista, note-se, não é para entrar numa deriva ‘catastrofista’,
nem para anular o que de bom se passou nas JMJ.
É sim ― quem diria! ― para salientar uma circunstância de contexto,
que esteve presente na declaração dogmática da Assunção de Maria.
3. É verdade, celebramos com muita alegria esta ‘honra’ de Maria.
Precisamente a esta hora, no amplo concelho de Barcelos,
estão a decorrer em simultâneo duas peregrinações arciprestais:
a sul do rio Cávado, ao Santuário da Senhora da Franqueira;
a norte, junto ao rio Neiva, ao Santuário da Senhora Aparecida.
Permiti uma atenção a quantos, nos lares da Misericórdia,
nos seguem através da transmissão televisiva desta celebração:
Também vós sois peregrinos, não com os pés, calcorreando caminhos,
mas com o vosso desejo, que vos faz voar como borboletas!
Quem de vós puder recorde o filme «O escafandro e a borboleta»,
para ver como, superando certos limites, se pode voar até longe:
4. A declaração dogmática da Assunção de Maria foi anunciada
num momento imensamente trágico da humanidade,
isto é, no final da Segunda Guerra Mundial.
Na verdade, foi em 1950 que o Papa Pio XII declarou:
«A imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria,
terminado o curso da vida terrestre,
foi assunta em corpo e alma à glória celestial» (Const. Apost. Munificentissimus Deus, 44).
Maria foi apresentada como participante da vitória de Cristo sobre a morte,
também para estimular os crentes a fortalecer o seu ânimo,
reerguendo-se dos escombros da guerra e de imensos lutos.
5. Nos últimos anos, para apresentar o significado da Assunção de Maria,
tenho recorrido a diversas obras de arte, antigas e contemporâneas,
como mosaicos, esculturas, tapeçarias, pinturas, até um recente tríptico.
Hoje, gostaria de dar continuidade a esta ‘via da beleza’,
concentrando-me num dos relevos da «Porta da Morte»,
realizada por Giacomo Manzù.
Esta é uma das portas da basílica de S. Pedro no Vaticano,
por onde entravam os féretros dos Papas, nos respetivos funerais.
O tema a esculpir foi, porém, muito discutido:
os cardeais insistiam na representação ‘católica’
do «Triunfo dos santos e dos mártires».
Manzù, por sua vez, e disso não abdicava, preferia que fosse «A morte».
Eis porque a porta levou tantos anos ― dezassete ao todo! ―
a ser concluída e instalada na basílica de S. Pedro.
Foi desbloqueada pelo Papa João XXIII, amigo pessoal de Manzù,
que aceitou a mudança do tema inicial proposto pelo escultor.
6. Poderíamos desenvolver muitas outras circunstâncias,
não só relativas a esta porta, uma ‘obra-prima’ segundo Gianfranco Tognarelli,
mas também à vida e obra de Giacomo Manzù,
e inclusive à relação com o conterrâneo João XXIII, o ‘Papa Bom’,
que o tratava carinhosamente por «filho do sapateiro»
― de facto, o seu pai era sapateiro e sacristão ―
e com o qual falava em bergamasco, dialeto comum a ambos.
[Para uma breve retrospetiva, veja-se: https://www.electa.it/video/manzu/ ]
Sem terminar a instrução primária,
devido aos magros recursos da sua família ― ele era o 12º filho ―,
e após ter trabalhado como entalhador-dourador, sem ouro de Ofir (cf. Sl 44),
deixa-se transfigurar pelas portas de São Zenão da catedral de Verona.
E começa seriamente a pensar na arte da escultura.
Não deixa de ser significativo que, entre tantos temas que esculpiu,
as portas assumiram um particular relevo, pois fez várias:
a ‘Porta do Amor’ para a catedral de Salzburgo (1955-1958);
e a ‘Porta da Paz e da Guerra’ da igreja de São Lourenço em Roterdão (1965-1968)
e, como já referimos, a ‘Porta da Morte’, na basílica de S. Pedro no Vaticano,
inaugurada, em 1964, pelo Papa Paulo VI.

e animais simbólicos associados à morte, até com uma tartaruga de patas para o ar.” Foto: Porta da Morte’, basílica de S. Pedro, Vaticano. © Joaquim Félix
7. Na ‘Porta da Morte’, em dezassete baixos-relevos,
são apresentadas várias mortes (Abel e Caim, Papas, Mártires, Cristo… da terra e do céu)
e animais simbólicos associados à morte, até com uma tartaruga de patas para o ar.
No ângulo esquerdo superior, encontra-se a morte de Maria:
reclinada sobre um travesseiro, dorme já o sono final.
― De recordar que muitas das igrejas orientais ortodoxas
celebram hoje a sua morte, sob o título da «Dormição de Maria» ―.
Do alto, um anjo agarra-lhe pela mão, assumindo-a para o alto.
Um pouco mais acima, em movimento difícil de identificar,
vemos um vestido (parecido ao manto de Elias na porta de Santa Sabina),
donde apenas se vislumbram uma mão ligeiramente figurada e o cabelo.
De quem será aquele corpo arrebatado em assunção: do anjo ou de Maria?
Esta é a interessantíssima forma de ‘apresentar’ a Assunção de Maria.
E é bom que permaneçamos nesta imagem, no seu poder de evocação,
sem termos que dar uma resposta fácil… ingenuamente ‘fisicista’.
Mesmo que possa ser teologicamente desenvolvida,
silenciemos como quando se aguarda a abertura de asas da borboleta-pavão.
8. Que Maria morreu, bem o sabemos. E nem podemos duvidar.
O modo como subiu de corpo e alma aos céus, ignoramos.
Repito: permaneça esta imagem no horizonte da nossa fé,
a partir de uma porta que é uma obra de simplicidade e de dureza,
não apenas do bronze, mas da luz que se abre das mãos de Manzù
para iluminar um tempo difícil, o ‘nosso’ também.
Manzù, que se considerava ateu,
disse um dia ao jornal Corriere della Sera:
«Eu vivo pela paz e tenho um ódio feroz à guerra.
O tempo está cada vez mais a dar-me razão».
Oh se estava e se está!, diremos também nós.
9. Neste dia em que celebramos a vitória de Maria sobre a morte,
participante que foi, como seremos também nós, da ressurreição de Jesus,
― é só recordar quanto S. Paulo escreveu aos Coríntios (1 Cor 15,20-27) ―
procuremos esculpir ‘portas de esperança’ e ‘portas do amor’.
Sim, onde a ‘vida na história’ pode ser cantada em cada encontro com os irmãos.
Diligentemente, atravessemos todas as montanhas e circunstâncias adversas,
como fez Maria, segundo a narração do evangelho (Lc 1,39-56).
E que nunca nos faltem palavras e gestos de cordialidade,
como ouvimos da saudação de Isabel,
bem representada, por exemplo, no nicho central da fachada desta igreja.
Ou, numa linguagem outra, na instalação «O encontro» de Bill Viola:
10. Senhor Jesus, não te suplicamos sinais em visões apocalípticas,
com mulheres vestidas de sol, como tua mãe (cf. Ap 11,19a;12,1-6a.10ab)
que foi iluminada no abraço da tua ressurreição,
mas tempos de novos ânimos e caminhos de paz.
Aplaca os povos em guerra,
para que coloquem termo à morte dos irmãos
e à destruição de infraestruturas, cidades e aldeias.
Torna-nos mais atentos aos sofrimentos dos frágeis e carentes,
que precisam da nossa ajuda, como Isabel auxiliada por Maria
e quantos atravessam os mares em busca de luz, justiça, paz e dignidade.
Ajuda-nos a refrear o nosso consumismo que está a matar a Terra,
que geme com as atrocidades dos incêndios e das chuvas diluvianas.
Concede-nos o dom da nostalgia do futuro, para além da morte,
e seremos mais responsáveis no presente.
E, com redobrado apetite,
participaremos neste banquete antecipado, que é a Eucaristia.
Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais VERNA. Este texto corresponde à homilia da passada terça-feira, dia 15 de agosto, Assunção da Virgem Santa Maria – Solenidade 2023.