A chamada Caixa de Correio de Nossa Senhora constitui um arquivo do santuário de Fátima no qual se conservam as mensagens ali enviadas de todo o mundo, a partir da década de 40 do século passado, dirigidas à Mãe de Jesus. Trata-se de cartas, bilhetes, postais, ex-votos, num número que atinge os milhões e que constituem uma expressão de devoção íntima e pessoal de inúmeros católicos de todas as origens sociais, económicas e familiares. Um espólio único e ainda desconhecido, que o jornalista António Marujo analisou ao longo de um ano numa amostra de 50 mil mensagens compreendidas entre 1940 e 1977, dando origem a esta publicação.
Encontramos nestas mensagens o húmus vital do que constitui a experiência humana, marcada, nestas décadas, pelos conflitos armados, dos quais a Guerra do Ultramar ocupou um espaço muito significativo nos dramas testemunhados. A dimensão religiosa sai, aqui, do âmbito dos púlpitos oficiais e da doutrina eclesiástica, para encontrar um diálogo simples, direto e confiado nas palavras escritas no meio das dificuldades culturais, sociais e económicas. É difícil e raro o esforço de auscultar esta expressão de um Povo: nisto, a investigação apresentada por António Marujo constitui um trabalho de destaque.
O exercício de leitura das mensagens desta Caixa de Correio singular é acompanhado de uma contínua contextualização histórica, transportando o leitor para as peripécias políticas e diplomáticas da viagem de Paulo VI a Fátima em 1967, o lento emergir da mensagem de Fátima relativa ao comunismo e, sobretudo, a centralidade do tema da Paz como vínculo que percorre não só todo o magistério que por Fátima passa, como também – na comum e densa simplicidade – quer os Pastorinhos, quer os peregrinos que ali encontram um sentido, uma palavra, um acompanhamento espiritual com frequência ausente das suas comunidades eclesiais.
“Quem escreve, sente necessidade de que alguém escute o seu desabafo ou a sua história (…) A necessidade de haver quem escute ou a quem confiar problemas é, mesmo, uma das principais urgências.” E, para lá dos discursos diplomáticos ou das reflexões teológicas, poderemos compreender como, nestes testemunhos, o desejo e a vontade da Paz adquirem uma força transformante e resistente, originada não na força das armas, mas na conversão.
A leitura destes manuscritos – conservados praticamente inéditos nos arquivos do Santuário – é acompanhada por contributos de diversas entrevistas a pessoas que trabalham ou refletem sobre Fátima, mas também ex-combatentes do então chamado Ultramar, historiadores deste período eclesial (sobretudo no quadro da oposição católica ao regime do Estado Novo) e investigadores críticos do fenómeno de Fátima. No final deste percurso, o leitor ficará certamente com uma visão outra, frequentemente esquecida, do que a experiência religiosa ligada a Fátima representou e continua a representar.
A Caixa de Correio de Nossa Senhora, de António Marujo
Edição: Temas e Debates, 2020
248 páginas; 16,60 €