
“Passaste noites e noites em branco, de ouvido e coração colados à telefonia, à espera que o avô voltasse do mar – esse manto que às vezes engole os maridos das pessoas, sem avisar.” Foto © José Centeio
Esta manhã fui levar a roupa suja à lavandaria, levava fones ligados, com o podcast de poesia – é a única maneira de conseguir andar nas avenidas de Copacabana sem me deixar estrangular pela confusão – ouço poesia e gente que fala de poesia, como se estivessem, de facto vivos, ao contrário da multidão vidrada que atravessa as passadeiras em passo corrido e mecânico – sem sentir a vida que lhes serpenteia, a milímetros de distância, sem lhes tocar as mãos e os pés e as cabeças. Ia, o entrevistado, a falar de um poema da Maria Teresa Horta já eu voltava para casa, olhos postos nas árvores ao fundo – a fingir que não via a fome e a doença exibidas em canto vitorioso na borda da calçada – e o coração do lado de dentro do aparelho que levava no bolso, quando notei que tinha passado a portaria de casa sem me dar conta. Voltei para trás, com medo de mim e do que acontecia a olho nu a quem eu me tornava… Lia-se um poema de Teresa Rita Lopes quando entrei no elevador; avó, estou tão assustada. Acreditas que, distraidamente, apertei o botão do andar errado e só me dei conta que não estava em minha casa quando a chave não encaixou na fechadura da porta à minha frente? Tenho a sensação de que posso fazer qualquer coisa, qualquer … no outro dia dei comigo a lavar os dentes no lava-loiça, despertei assustada sem perceber como aquilo aconteceu; nem ideia do caminho que fiz com a escova na boca entre a casa de banho e a cozinha, a memória apaga-se e nada mais é absoluto.
Acho que me estou a converter, tenho medo, começo a sentir que, também a mim, a vida serpenteia brincando à seriedade. Avó, tenho urgência, mas tenho vergonha de te escrever hoje. Desde que nos despedimos que te prometi escrever em oração, se nestes poucos anos nunca o fiz não foi por falta de te pensar… oh, não!! Não foi. É que eu acho sempre que os mortos sabem tudo antes mesmo de acontecer e acho, por isso, ridículo escrever-te para te contar o que já sabes; sim, sei que foi um pedido, só que sei, também, que foi a tua estratégia para te certificares que eu rezaria.
Tenho vergonha porque te escrevo pela primeira vez, para pedir algo. Deveria ter-te escrito para te dizer que dois meses depois da tua morte estourou uma pandemia e o mundo esteve de ponta-a-cabeça, mas não te quis assustar. Deveria ter-te escrito para te contar que a Filipa teve um bebé e que se chama Simão, e é lindo e saudável, cheio de vida, como se quer … Deveria ter-te dito que a Maria morreu, a tua melhor amiga. Fui ao enterro e fiquei três dias a pensar na vossa amizade e na Maria sempre lá em casa tão querida connosco, e nos dias em que vocês me levavam para a praia às seis da manhã e eu com sono sentia a areia lisa e gelada debaixo dos pés enquanto vocês bebiam café no termo, encostadas às rochas, e comiam bolos. Eu entrava no mar, aquela maré quase sempre vazia – a espelhar o céu – e calma; assim que a água me chegava ao joelho tu gritavas tão assustada para que recuasse, senão afogava-me … Hoje percebo esse medo, o marido da Maria morreu afogado neste mar, numa manhã de pesca; e tu passaste noites e noites em branco, de ouvido e coração colados à telefonia, à espera que o avô voltasse do mar – esse manto que às vezes engole os maridos das pessoas, sem avisar.
Podia ter-te escrito tantas vezes, mas já te expliquei porque o não fiz. Estive um mês em Albufeira, pelo natal, e passei todos os dias à porta do cemitério fechado, já sabes que as manhãs de inverno são uma dificuldade para mim, falei contigo pelo lado de fora do muro atrás da tua gaveta; achei tão ridículo quanto escrever-te. Porque os mortos, para além de saberem tudo antes de acontecer, estão em todo o lado, aborrecem-se de ficar só nos caixões ou nas gavetas. Faço-o agora e tenho vergonha. Avó, preciso de um favor teu. Por aqui vivemos dias de grande aflição, daquelas que nem conseguimos perceber o que queremos porque um querer significa a anulação de outro querer, e não há querer que valha nestes casos. Eu quero pedir que metas mais um prato na mesa do céu … Ah, deixa, deixa para lá, avó. Não consigo, não consigo; talvez amanhã, hoje ainda não.
Ana Sofia Brito começou a trabalhar aos 16 anos em teatro e espetáculos de rua; Depois de dois anos na Universidade de Coimbra estudou teatro, teatro físico e circo em Barcelona, Lisboa e Rio de Janeiro, onde actualmente estuda Letras.