
“A festa litúrgica de Cristo Rei corre o risco de alimentar um triunfalismo religioso, a dois passos do fanatismo, em vez de meditar no que ela significa”. Foto: Cristo Rei, Santuário de São Salvador, Ilha de Maiorca, Xxlstier – Own work /wikimedia Commons
Li com muito interesse o artigo de Marco Oliveira, membro da Comunidade Bahá’i de Portugal (15 de Novembro). A reflexão sobre a festa de Cristo-Rei (assinalada no final de Novembro, na Igreja Católica) inspira-se na seguinte citação do artigo mencionado:
“As escrituras sagradas de todas as religiões mostram que os Profetas e Mensageiros de Deus nos convidam a ser cidadãos do Reino e reflexos da soberania divina. A resposta a este convite é uma decisão de cada um de nós.”
A festa litúrgica de Cristo Rei corre o risco de alimentar um triunfalismo religioso, a dois passos do fanatismo, em vez de meditar no que ela significa. Ora o “reino de Deus” não é apresentado como conceito (nem os exegetas encontram dele uma definição): manifesta o optimismo do plano de Deus, que se vai realizando com o contributo de “todas as pessoas de boa vontade” (os destinatários da universalmente famosa encíclica Pacem in Terris, de João XXIII). Os conceitos não evitam a imprecisão e debilidade próprias da expressão humana. Por isso, a fé não se pode fundamentar em abstractos sistemas lógicos nem sequer nas mais sublimes construções doutrinárias. Estas são testemunhos da actividade continuamente passada. A fé, porém, define-se pela acção contínua, como o amor.
No Oriente antigo, em termos gerais, o rei terreno representava o rei celeste e, na medida em que desempenhava devidamente esta função, pertencia de algum modo à esfera divina, sendo equiparado aos deuses. Este rei é salvador porque mediador da força, bondade e justiça divinas – as suas funções, mesmo quando é um chefe na paz e na guerra, são portanto de cariz religioso.
Toda a Bíblia sublinha a grande distância entre o rei terreno e o único verdadeiro Rei (o radical indo-europeu “reg” tem o sentido básico de mover em linha direita, donde “recto” e “regra”), fonte de toda a sabedoria: é Deus quem escolhe os governadores deste mundo – que Lhe podem ser infiéis (do que há muitos exemplos na Bíblia). Mas como representante do Rei, pode-se dizer que vive em intimidade com Deus – expressão aplicável ao conceito de Messias e que foi aplicado a Jesus. Nesta perspectiva, pode-se dizer que o rei é (deve ser) o pastor e a vida do seu povo (imagens frequentes nos salmos e mais tarde nos evangelhos, particularmente no de João).
No Novo Testamento, o termo rei (grego basileus) é aplicado a Jesus Cristo sobretudo com as conotações de Pastor e Juiz: “apenas” convida a que o sigam – os Homens é que se julgam a si mesmos, na medida em que querem ou não colaborar com Deus. As pessoas não pertencem ao reino levadas por milagres ou manifestações de poder, mas sim porque aderem à verdade proclamada. Só neste sentido é aceitável o título de “Rei do Universo”.
Aliás, notáveis teólogos contemporâneos consideram que seria mais exacto dizer que, para Jesus, Deus era rei e ele o seu representante.
Se somos partidários da justiça, cumpre-nos, como escreveu Orígenes (séc. III), fazer frutificar socialmente o reino de Deus que já está em nós “e que chegará à sua plenitude através do nosso aperfeiçoamento contínuo”.
Note-se bem que a mensagem do Novo Testamento mostra o Homem não como súbdito de um Deus “imperador”, mas como filho, que livremente colabora ou não no projecto do seu Pai – compete aos filhos discutir, decidir e procurar no meio da escuridão.
A Solenidade de Jesus Cristo Rei nasceu num ambiente de grande instabilidade política e ideológica. Foi instituída em 1925 pelo Papa Pio XI, que em 1937 condenou o regime totalitário de Hitler e Mussolini, como incompatível com a liberdade e supremacia do “Reino de Cristo”. Estabeleceu vários acordos políticos, que garantiram a independência do poder civil e neutralidade do Vaticano, com o objectivo de melhor cuidar da defesa da integridade da pessoa humana e lutar contra a pobreza e contra os inimigos da “paz verdadeira”.
Também os textos citados nos três ciclos da liturgia católica foram escritos num clima de perseguição e instabilidade.
Hoje em dia, não são tanto questões religiosas que fomentam perseguições: são lutas de poder, de vingança, de inveja e resultam todas elas de uma profunda falta de educação religiosa ou, por outras palavras, de infantilismo cultural – vírus altamente contagioso, sobretudo quando é espalhado por quem está altamente colocado nas esferas políticas e religiosas (e não há nenhuma religião sem telhados de vidro). Por isso se espera que os “ministros” (etimologicamente = “servidores”!) das Igrejas sejam exemplo da autoridade própria de quem defende a íntegra salvação de cada pessoa (e não só dos seus “fiéis”, ou só de uma classe social ou mesmo só de um povo). Uma religião séria tem de ser sinal de contradição, sem medo dos grupos detentores de poder político e económico, perante a pandemia de egoísmo, corrupção e injustiça.
Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino superior