
Uma futura unidade sob a presidência do arcebispo de Cantuária, Justin Welby, liderando enquanto “primeiro entre iguais” da Comunhão Anglicana Global, vislumbra-se difícil. Foto © WCC.
Dez primazes das Igrejas Anglicanas de África e da Oceânia, representando cerca de 75 por cento dos anglicanos de todo o mundo, assinaram um comunicado em que retiram ao arcebispo de Cantuária, Justin Welby, o papel de líder da Comunhão Anglicana no mundo, e deixam de reconhecer a Igreja Anglicana de Inglaterra como sua “Igreja-Mãe”.
A cisão, tornada pública no dia 20 de fevereiro, é uma reação à decisão do Sínodo Geral da Igreja de Inglaterra (anglicana), tomada por escassa maioria no dia 9 de fevereiro, que admite abençoar as uniões entre pessoas do mesmo sexo, embora rejeite a celebração de casamentos homossexuais.
No comunicado assinado pelos dez primazes em representação da Global South Fellowship of Anglican Churches (GSFA) que reúne 14 das 25 províncias anglicanas de África e da Oceânia, a Igreja de Inglaterra é acusada de “quebrar a comunhão com as províncias que permanecem fiéis a uma visão bíblica do casamento como sendo entre um homem e uma mulher”.
A Comunhão Anglicana foi formada em 1867 reunindo 42 igrejas anglicanas de todo o mundo e tendo como referência principal, ou “Igreja-Mãe”, a Igreja de Inglaterra, e o arcebispo de Cantuária como líder espiritual e moral da comunhão global, embora sem lhe ser associada uma autoridade obrigatória, ou vinculativa.
O jornal britânico The Guardian de dia 20 de fevereiro escolhia para título da notícia sobre esta cisão: “Anglicanos zangados com bênção das relações entre pessoas do mesmo sexo rejeitam Justin Welby como chefe da igreja global”. De forma quase idêntica, a Catholic News Agency de dia 23 de fevereiro titulava: “Líderes anglicanos conservadores rejeitam o arcebispo de Cantuária por causa da bênção de uniões entre pessoas do mesmo sexo”.
Os líderes da GSFA, que representa cerca de 64 milhões de anglicanos e é presidida pelo arcebispo Justin Badi, primaz do Sudão do Sul, afirmam que depois da Igreja de Inglaterra e do arcebispo de Cantuária terem perdido “o seu papel de liderança da Comunhão Anglicana”, vão reunir em breve com “outros primazes da Igreja Anglicana Global” para “redefinir a Comunhão com base no seu fundamento bíblico”.
Contudo, no seu comunicado, os dez primazes da GSFA têm o cuidado de escrever que a sua decisão de retirar o apoio a Welby enquanto líder da igreja global deve ser recebida por ele como “uma advertência de amor”. Por sua vez, um porta-voz do arcebispo de Cantuária declarou à BBC que “desentendimentos profundos sobre a sexualidade e o casamento” existem há muito na Comunhão Anglicana e que “nenhuma mudança nas estruturas formais da Comunhão pode ser feita, a menos que seja acordada por todos os líderes e conselhos”. No entanto, acrescentou o mesmo porta-voz, Welby teria dito na reunião que manteve na semana passada em Acra (Gana) com o primaz local que “essas estruturas podem mudar com o tempo”.
Certo é que as posições estão hoje extremadas, quer no campo da prática pastoral quer no campo doutrinal, pelo que se vislumbra como muito difícil uma futura unidade sob a presidência do arcebispo de Cantuária liderando enquanto “primeiro entre iguais” da Comunhão Anglicana Global.
Uma fratura com vinte anos

A ordenação como bispo de Vicky Gene Robinson, um homossexual que vivia maritalmente com outro homem, em 2003, esteve na origem de uma significativa fratura da Comunhão Anglicana. Foto © Washington National Cathedral.
Embora os debates sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo existam há décadas, a Comunhão Anglicana sofreu uma significativa fratura em 2003, quando a Igreja Episcopal dos EUA votou a favor da ordenação como bispo de Vicky Gene Robinson, um homossexual que vivia maritalmente com outro homem.
No início de agosto de 2022, a Conferência de Lambeth, que reúne todas as igrejas anglicanas do mundo uma vez em cada década, ficou marcada por fortes divisões sobre o tema da homossexualidade e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. No termo da “cimeira” mundial da Comunhão Anglicana, a 8 de agosto, o arcebispo de Cantuária procurou apaziguar as partes, afirmando a manutenção da doutrina tradicional como fora formulada pela Conferência de Lambeth, em 1998 [ver 7MARGENS], isto é, que “o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é permitido” e que “as relações entre pessoas do mesmo sexo não têm suporte bíblico”. Contudo, na mesma ocasião, Welby não deixou de reconhecer que na Comunhão Anglicana existe “uma pluralidade de pontos de vista” sobre o tema e há “Províncias a abençoarem e a acolherem a união/casamento entre pessoas do mesmo sexo”.
Esta posição que se queria conciliatória, reafirmando os princípios doutrinais sem deixar de constatar a realidade existente, não terá deixado nenhuma das partes satisfeita. Desagrado que se aprofundou com a decisão tomada este mês pelo Sínodo Geral da Igreja Anglicana, ainda que o arcebispo Welby tivesse tentado, de novo, conciliar as partes, afirmando que, apesar do que fora votado, ele próprio “em prol da unidade da Igreja Anglicana global, não abençoaria casais do mesmo sexo”.
Também no campo da Igreja Católica têm-se multiplicado os pedidos de revisão dos princípios doutrinais sobre a sexualidade e a homossexualidade e vários padres e bispos na Europa Ocidental têm acolhido e abençoado casais do mesmo sexo. A Conferência Episcopal da Flandres publicou mesmo [ver 7MARGENS] uma proposta de texto para um ritual de oração com casais do mesmo sexo que pretendem a bênção do seu compromisso no seio da Igreja.
Este último documento foi emitido já depois da Congregação para a Doutrina da Fé ter, em março de 2021 e com o consentimento do Papa Francisco, decidido que a Igreja Católica não pode abençoar as uniões entre pessoas do mesmo sexo porque o “desejo sincero de acolher e acompanhar pessoas homossexuais” não pode levar a Igreja a “abençoar” o que Deus identifica como “pecado”.