
O presidente da CEP, José Ornelas (centro), com o vice-presidente (bispo de Coimbra, Virgílio Antunes, esquerda) e o secretário, padre Manuel Barbosa, no início da conferência de imprensa. Foto © António Marujo/7Margens
“Uma mão cheia de compromissos” para medidas que hão-de ser anunciadas nos próximos tempos. “Para nós não é uma mão cheia de nada, é uma mão que vem cheia de compromissos, porque não podiam ser hoje anunciadas decisões”, porque estas têm outros interlocutores.
Este foi o modo como o bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), definiu a disposição dos bispos, no final da assembleia plenária extraordinária que decorreu nesta sexta-feira, 3, em Fátima, para analisar o relatório sobre os abusos sexuais, apresentado dia 13 de Fevereiro. Para já, é preciso ver em que “direcções é preciso trabalhar”.
No comunicado final da reunião, os bispos remetem para cada diocese as decisões sobre o que fazer com os abusadores (e encobridores), sugere que as vítimas serão apoiadas por cada diocese mas não diz as formas concretas sobre como o fará, fala da criação de um “grupo específico” para atender as vítimas mas não esclarece se isso será uma nova comissão independente.
“Não estamos no fim de um processo”, diria o presidente da CEP aos jornalistas, depois da apresentação do comunicado final da assembleia, para explicar o passo dado nesta assembleia. “Estivemos de manhã a receber e dialogar com a CI” e, à tarde, a “delinear linhas de orientação para pontos concretos, que necessariamente terão de ser negociados não só entre nós, mas também com outras entidades com as quais queremos trabalhar”, acrescentou.
“Muito decepcionada”, confessou uma vítima de abusos, que tomou a iniciativa de contactar o 7MARGENS depois da conferência de imprensa, que decorreu ao final da tarde desta sexta-feira, comentando as linhas de orientação a que o presidente da CEP se referira. “Achei tudo muito vago, confuso, nada conciso e concreto, com medidas insuficientes”, acrescenta a mesma pessoa, que apresentou também o seu caso na CI, depois de o ter apresentado à comissão diocesana respectiva. “O que eu já suspeitava: cada bispo a tomar conta dos seus casos, o que vai fazer com que não haja uma linha comum. E se é pela sensibilidade de cada bispo, o meu continuará a não assumir consequências.”
Nuno Caiado, que dinamizou a carta que, em Novembro de 2021, pressionou os bispos no sentido de criar uma comissão para o estudo dos abusos sexuais na Igreja, também alinha por uma visão pessimista do que foi anunciado: “Comecei com um sentimento positivo; ao contrário de outras pessoas, o memorial assentou-me bem”, afirma ao 7MARGENS. “Mas a partir daí é um pouco desastroso: tudo muito vago, com confusão conceptual entre prevenção e acompanhamento, sem metodologia nem estratégia”.
O documento traduz o “compromisso entre diferentes sensibilidades”, afirma Caiado, que assinou também a carta dirigida esta semana aos bispos. Não apresenta “metodologia, nem calendário, nem responsabilização”. Não há “moral nem ética, apenas um refúgio na norma jurídica”, critica.
“Humildade” em reconhecer culpas

Menos pessimista está Luísa Ribeiro Ferreira, professora de Filosofia da Universidade de Lisboa, que também subscreveu a carta desta semana. Confessando-se “confusa” pelas dificuldades técnicas iniciais da conferência de imprensa e “por alguma dispersão nos esclarecimentos, resultante do carácter errático das perguntas dos jornalistas”, a também cronista regular do 7MARGENS diz que ficou tocada “pela humildade” expressa no comunicado em reconhecer as culpas da Igreja, pedindo perdão às vítimas e solidarizando-se com a sua dor.”
“Restituiu-me a esperança ao encorajar os ofendidos a que quebrem o silêncio”, acrescenta a professora catedrática. “Deu-me confiança numa Igreja que admite os pecados cometidos e que pretende repará-los recorrendo à justiça. Penso que este episódio tristíssimo poderá dar fruto se abrir caminho para que se repensem as vocações e se discutam os problemas que a Igreja realmente enfrenta, nomeadamente o celibato dos padres e a ordenação das mulheres.” E manifesta um desejo: “Espero firmemente que o processo de reflexão com que termina o comunicado seja tão breve quanto possível.”
O padre João Eleutério, professor de Teologia na Universidade Católica Portuguesa, que coordenou o livro Anatomia do Poder Eclesiástico, em que a questão dos abusos é central, prefere sublinhar o lado positivo de o comunicado começar “por manifestar atenção às vítimas”, seguindo depois as preocupações dos grupos de católicos que se manifestaram nas duas cartas surgidas. No lado oposto, aponta a falta de um “agradecimento à comunicação social” e a manifesta “incompetência do episcopado, salvo honrosas excepções, em gerir e lidar com esta situação”.
O comunicado desta 105ª assembleia plenária da CEP começa por reiterar o “profundo agradecimento” dos bispos “a todas as vítimas que deram o seu testemunho ao longo do último ano e, em muitos casos, a um silêncio guardado durante décadas”. E acrescenta: “Sem vós, não teria sido possível chegar ao dia de hoje. Obrigado.”
“Grupo específico” ou nova comissão independente?
O documento faz, depois, apelo a quem ainda não falou: “Queremos também deixar uma palavra de coragem a todas as vítimas que ainda guardam a dor no íntimo do seu coração para que possam ‘dar voz ao silêncio’.”
É nesse passo que o comunicado anuncia a criação de um “grupo específico”, em articulação com a coordenação nacional das comissões diocesanas, “para acolher” a “escuta” das vítimas. Este pode ser o embrião de uma nova comissão que recolha testemunhos de vítimas de abusos e que foi sugerida pela CI, nas recomendações que fez no final do relatório entregue há quase três semanas.
Nas respostas aos jornalistas, o bispo Ornelas disse que esse novo “grupo específico” se articularia com a coordenação nacional das comissões diocesanas, tal como a anterior CI se articulava com a CEP. Sem nunca concretizar o que será este novo organismo, nem quem o constituirá – “se já determinássemos tudo, a independência poderia ficar comprometida” –, o presidente do episcopado garantiu que ele terá “independência” e que deverá garantir “credibilidade perante as vítimas”, até porque serão pessoas que não fazem parte da hierarquia da Igreja.
Nuno Caiado considera que o que foi anunciado manifesta ainda alguma “indefinição”. Recorda que, em 2021, os bispos começaram por falar num “ponto de escuta” que depois passou a ser uma CI; agora falam de um organismo “que parece ser uma subcomissão da coordenação nacional das comissões diocesanas”, duvida.
Apoios, sim, mas como?
No comunicado, os bispos afirmam que “as feridas infligidas às vítimas são irreparáveis” e garantem que, quem assim o deseje, terá o acolhimento da hierarquia católica, que disponibilizará “o devido acompanhamento espiritual, psicológico e psiquiátrico”. O documento explica que “as estruturas já existentes, criadas em cada diocese e a nível nacional, serão o local para acolher e acompanhar” as vítimas nessas circunstâncias “e as dioceses assumem o firme compromisso de dar todas as ajudas necessárias para que tal aconteça”.
“O que se diz é o princípio absoluto de que vamos assegurar apoio às vítimas”, esclareceu o bispo José Ornelas nas respostas aos jornalistas. “Isso é uma prioridade para nós. Ninguém vai deixar de ter acesso a tratamento por falta de meios”, garantiu. Isso passará por “estabelecer parcerias” com diferentes entidades e fazer com que “a ninguém falte apoio concreto”. Mas serão sempre as dioceses as responsáveis por esse acompanhamento. E fica claro que não serão serviços católicos a prestar essa ajuda. “Cada pessoa tem possibilidade” de escolher. Os modos de funcionamento ficaram ainda por clarificar.
No capítulo dos apoios, José Ornelas fez questão de afirmar que “precisamos de cuidar não só das pessoas abusadas, mas também dos abusadores”. É necessário “encontrar soluções” no país, mas este é um tema “consensual” entre bispos e congregações religiosas. E algumas destas têm recursos que podem ser utilizados para esse fim, sugeriu o presidente da CEP.
Que lista, afinal?

A lista com o nome dos alegados abusadores foi entregue de manhã pela CI e terá agora “o devido seguimento por parte” dos bispos e dos superiores das congregações “segundo as normas canónicas e civis em vigor”, referia ainda o comunicado.
Nas respostas aos jornalistas, o presidente da CEP disse que os alegados agressores não serão afastados sem que haja alguma investigação. “Só temos nomes, é muito difícil. Para termos os elementos necessários para dar andamento é evidente que precisamos de ter dados e essa lista que nós recebemos só tem nomes. Às vezes é só um Jacinto, um Albino, assim não dá. Não posso tirar alguém do ministério [de padre] só porque alguém o acusou, é preciso haver uma base sólida”. De qualquer modo, será “nome a nome” que a investigação será feita.
“Se houver outros documentos que nos cheguem para identificar quem é o eventual abusador e o que fez de errado, tomaremos as devidas medidas”, garantiu D. José, apesar de recear que possa haver padres no activo a colocar crianças em risco: “Receio, mas não posso tirar uma pessoa do ministério porque chegou alguém que disse ‘Este senhor abusou de alguém’. Quem foi que disse? Em que lugar? Quando? Tirar um padre do ministério é uma coisa grave”.
Questionado pouco depois em Lisboa, o coordenador da CI cessante, Pedro Strecht, afirmou que “caberá à Igreja decidir e pensar sobre os dados que tem, que obviamente são importantes e significativos”, Falando à saída da reunião da Comissão com as ministras da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, Strecht disse que a lista é um dos elementos do que cada diocese já sabe. “Esses dados foram trabalhados também pelo grupo de investigação histórica na pesquisa que foi realizada nos arquivos históricos e secretos, portanto não vejo assim motivo para preocupação”, disse, citado pela Lusa, num despacho reproduzido pela Renascença.
O médico pedopsiquiatra acrescentou: “Há vários mecanismos de que a Igreja dispõe e que certamente poderá usar mesmo dentro do direito canónico. (…) Senão não fazia nenhum sentido que a própria Igreja tivesse pedido este estudo há cerca de um ano e obviamente não fosse capaz de lidar com esses dados. Vai com certeza ser capaz de lidar com esses dados.”
Encobridores, perdão e memoriais

Sobre eventuais encobridores, o presidente da CEP também foi prudente: “Não pactuamos com situações dessas, mas também não embarcamos em qualquer acusação de encobrimento”, afirmou, recusando a ideia de com isso estar numa “posição defensiva”. Trata-se sempre, antes, de “ver a verdade dos factos”.
“A própria noção de encobrimento no direito português é difícil de encontrar”, acrescentou. E, sobre a questão ética ou moral que pode estar presente nestes casos, Ornelas insiste na necessidade de “uma base sólida também para julgar a moralidade e a ética das decisões que se tomaram”.
Já sobre a questão da confissão – momento em que muitos abusos ocorreram, de acordo com o relatório –, os bispos admitem que ela deixe de acontecer “em ambientes fechados, isolados”, e passe a ser em “local acessível para que não haja ocasião para novos abusos”. Acabar com o segredo de confissão, no entanto, “não está nem nunca estará sobre a mesa.”
O comunicado promete um “gesto público” de pedido de perdão, em Abril, em Fátima, no decorrer da assembleia plenária da CEP, que manifeste o “firme propósito de tudo fazer para que os abusos não se voltem a repetir”. Como “sinal visível deste compromisso, será realizado um memorial no decorrer da Jornada Mundial da Juventude”.
Este último pretende ser uma “chamada de atenção para toda esta questão, fundamental em Portugal e em todo o mundo”. De qualquer modo, o bispo não esclareceu, a uma pergunta do 7MARGENS, se o gesto de Abril e o memorial na JMJ sucederão a encontros de bispos com algumas vítimas. Isso terá de ser “combinado” e não pode ser noticiado, disse, pois “o recato é fundamental” e terá de ser garantido que haja “vítimas que concordem” em fazê-lo.
Indemnizações e agradecimentos

Para o presidente da CEP, é claro que, “se há um mal que é feito por alguém, é esse alguém que é responsável”, referindo-se à possibilidade de indemnizações. Apesar de em outros países terem sido as dioceses ou as instituições onde os abusos ocorreram a suportar esses custos, José Ornelas diz que a questão “é clara, tanto no direito canónico como no direito civil”. Será necessário “um processo civil” e alguém que o accione, disse.
Outro ponto do comunicado referem “o trabalho imprescindível das comissões diocesanas” e da respectiva equipa de Coordenação Nacional. Os bispos propõem que aquelas “devem ser constituídas apenas por leigos competentes nas mais diversas áreas de actuação, podendo ter um assistente eclesiástico”.
Além de agradecer às vítimas, os bispos reconhecem também o trabalho da CI. E estará a CEP grata aos católicos que, em 2021, pediram uma investigação sobre o tema ou os que, esta semana, pediram medidas concretas? – quis saber o 7MARGENS. “Quando falamos de outras instituições eclesiais e sociais, estamos a incluí-los aí. Todas as iniciativas que se fizeram, vigílias, etc,. são muito bem-vindas. Estamos num ambiente onde é preciso criar cultura de respeito”, afirmou. “Podemos ter sensibilidades diferentes, mas nos objectivos fundamentais, de respeito e defesa de vítimas inocentes, não podemos ter divisões.”
Nuno Caiado diz que “teria sido inteligente estabelecer pontes e diálogo com quem sugeriu alguma coisa aos bispos”, referindo-se às duas cartas de católicos já surgidas. “É pena se não são capazes de dialogar com os seus”, lamenta.
Finalmente, em relação às críticas de alguns padres ou outros católicos ao relatório da CI, o presidente da CEP é taxativo: “Quem não quer assumir, é porque fecha os olhos. Estamos muito gratos” pelo relatório, que é “uma peça importante que refere o carácter dramático desta situação”.