Assembleia em Fátima sexta-feira

Bispos decidem que caminhos tomar para afrontar abusos

| 2 Mar 2023

Caminho de Santiago. © António José Paulino.

O caminho a trilhar pelos bispos é ainda incerto No final da tarde desta sexta-feira ficaremos a conhecer as decisões tomadas. Foto © António José Paulino.

 

É imprevisível o que pode sair da assembleia plenária extraordinária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que decorre esta sexta-feira, 3 de Março, em Fátima, após quatro dias de retiro. Os bispos encontram-se para decidir que medidas tomar na sequência do relatório da Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica em Portugal, mas as diferenças de opiniões internas não permitem antecipar cenários seguros. Às 18h, o presidente da CEP e bispo de Leiria, José Ornelas, falará aos jornalistas.

A assembleia conta, no início, às 10h, com a participação dos membros da CI, que se deslocarão a Fátima num dos seus últimos actos antes de cessar funções em definitivo. Aos bispos, os membros da CI entregarão a lista sistematizada dos padres que, ainda no activo, são suspeitos de terem abusado de crianças. À tarde, já em Lisboa, farão entrega da mesma lista na Procuradoria-Geral da República e reunirão depois com as ministras da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho.

Os bispos estarão confrontados com alguns temas centrais e mais imediatos, tendo em conta as recomendações da CI. Entre eles, estão a criação de uma nova comissão independente de âmbito nacional, que assegure o acolhimento de novas vítimas que queiram testemunhar; o acompanhamento psicológico ou psiquiátrico dos sobreviventes de abusos; e a forma de um pedido de perdão público e solene. A carta de mais de duas centenas de católicos (pessoas individuais e alguns grupos e movimentos), que o 7MARGENS noticiou na noite de quarta-feira, dia 1, que tinha sido enviada aos bispos horas antes, insistindo naqueles e noutros temas e propondo mesmo um calendário para as decisões, constitui mais um elemento de pressão no sentido de que saiam decisões concretas da assembleia deste dia 3.

Não será um processo fácil, no entanto. Isso foi notório no caminho já percorrido e continua a ser assim. Apesar de a decisão de criar a CI ter sido tomada em conjunto, ela foi claramente assumida por alguns bispos e aceite com resistência ou resignação por outros. A pressão pública, mesmo do interior da Igreja, fez com que a CEP decidisse, em Novembro de 2021, criar a Comissão Independente (CI), que começou a trabalhar em Janeiro seguinte e apresentou o relatório final em 13 de Fevereiro último. O papel do presidente da CEP será importante: o bispo Ornelas e vários outros membros da CEP conseguiram convencer os seus pares, em Novembro de 2021, da importância de criar a CI; nesta sexta-feira, estará em questão a capacidade de o mesmo grupo levar por diante a vontade de prosseguir o trabalho iniciado.

 

“Vai doer-nos a todos”

Conferência Episcopal Portuguesa

Os bispos reunidos em assembleia: trata-se de recuperar “credibilidade e confiança”. Foto © Agência Ecclesia/PR

 

Antes do retiro iniciado segunda-feira, um dos bispos portugueses dizia ao 7MARGENS o que, na sua opinião, é necessário fazer para recuperar” credibilidade e confiança”: uma nova comissão independente, seguir o exemplo do Papa no acolhimento às vítimas, ouvindo as suas histórias, fazendo em seguida uma celebração litúrgica de carácter nacional de pedido solene de perdão; e dar apoio (psicológico, psiquiátrico, monetário) às vítimas que o solicitem.

“Vai doer-nos a todos, mas temos de fazer com que este problema seja uma oportunidade de purificação da Igreja”, dizia um dos bispos ouvidos pelo 7MARGENS antes da reunião. Uma outra opinião manifestada apontava numa direcção mais vasta: “Está em causa a formação que se faz nos seminários: é precisa mais presença feminina, devemos ter psicólogos”. E justificava este responsável: “Às vezes, os candidatos levam para o seminário problemas familiares, afectivos, de identidade sexual, etc., pensando que chegam ao seminário e resolvem tudo.”

Com esta análise coincidia já, quatro dias depois da apresentação do relatório, o padre Miguel Almeida, provincial dos jesuítas: a formação do clero e a mudança na moral sexual da Igreja necessitam de reforma, dizia. “Há um modo de fazer as coisas que tem de mudar. O Papa Francisco está a fazer essa mudança estrutural na Igreja com o Sínodo”, acrescentava.

Outro bispo acentua o caminho positivo que o episcopado já fez em conjunto. Em relação às vítimas, manifesta a ideia de que cada caso é importante. “Cada pessoa é um drama, não é o número o que mais importa”, diz, repetindo aliás uma ideia que o próprio presidente da CEP, o bispo José Ornelas já afirmou.

“As vítimas têm de estar no centro do nosso horizonte”, manifesta outra opinião no interior do episcopado. Há um trabalho a fazer pelas comissões diocesanas, insistem vários membros da CEP, mas elas não asseguram tudo. Por isso, este é um tema central também no debate desta sexta-feira.

Na semana passada, nas declarações aos jornalistas depois da vigília promovida por um grupo de católicos diante dos Jerónimos, o patriarca de Lisboa pareceu remeter para estas comissões a solução do problema. Mas dois dos bispos ouvidos pelo 7MARGENS dizem que já se percebeu que elas não são suficientes. E nesta quinta-feira, à margem da celebração de um protocolo entre a Jornada Mundial da Juventude e a Associação de Apoio à Vítima, o bispo auxiliar de Lisboa, Américo Aguiar, disse que a “tolerância zero e transparência total” em relação aos abusos terá de ser efectiva na assembleia que decorre em Fátima.

 

Os negacionismos

Hermes Mangialardo, Papa Francisco, abusos sexuais

Ilustração © Hermes Mangialardo para o vídeo do Papa de Março 2023, sobre os abusos sexuais.

 

“O trabalho só agora começou”, diz outra opinião. “Este é um problema nosso, como sociedade. E quando se vê o aumento de abusos, casos de violência doméstica e outros fenómenos do género, percebemos que tudo isto está ligado.”

“Agora é preciso estudar, assumir o relatório e tomar decisões”, diz um dos bispos, sobre o próximo futuro, “até porque este tema toca na identidade da Igreja”. Mas outra voz alerta: “Os que não aceitam este estudo e as vozes de vítimas que ele trouxe nem imaginam o mal que fazem às vítimas, que sentem que mais uma vez não acreditam nelas.”

Não será fácil o debate, repita-se. À resistência de alguns bispos, notória ainda durante o ano de trabalho da CI, somou-se a contestação de vários padres, grupos e outros católicos ao relatório e às suas conclusões mais importantes. A estimativa – muito por baixo, referiu a Comissão – de que 4815 pessoas foram abusadas por membros do clero, entre 1950 e 2022, tem sido criticada em artigos de carácter negacionista.

O primeiro sinal foi a publicação, logo no dia 14 de Fevereiro – um dia depois da apresentação do relatório na Gulbenkian, em Lisboa –, de um texto com o título “Os estranhos números do estudo português sobre abusos: 4800 vítimas ou apenas 34 testemunhos?” Publicado no site espanhol Religión em Libertad (REL), o texto contestava todas as principais conclusões do trabalho da CI, nomeadamente o cálculo das 4815 vítimas, ao qual se teria chegado “com matemáticas mais ou menos criativas e mais ou menos duvidosas” e dizendo que os formulários preenchidos na Internet eram “inverificáveis”.

Uma carta anónima de “um grupo de fiéis católicos”, enviada nas últimas duas semanas a padres pelo menos do Patriarcado de Lisboa – vários confiaram o texto ao 7MARGENS – afina praticamente pelos mesmos argumentos do REL para concluir que “estamos também perante mais uma campanha bem orquestrada para ferir gravemente a Igreja e o seu clero”.

 

A Igreja como vítima

Alice, abusos sexuais, Coração silenciado

“Alice”, vítima de abusos sexuais por um padre, e criadora do site Coração Silenciado, numa imagem de reportagem da RTP: há quem continue a menosprezar o testemunho das vítimas. 

 

Com argumentos diferentes, vários artigos na imprensa ou declarações em homilias também seguiram a lógica de “um só caso é grave, mas…”, colocando no “mas” todas as objecções ao relatório da CI. Foi o caso, entre outros, do padre Gonçalo Portocarrero de Almada, que no Observador concluía que a Igreja Católica portuguesa “não só não foi cúmplice dos abusadores, como foi sua vítima” e que “se a CI apresentasse resultados muito aquém da expectativa gerada pela enorme pressão mediática, é provável que fosse questionada a sua isenção e seriedade”. Mafalda Miranda Barbosa, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, também publicou um texto onde criticava os números e falava da “tentativa de demonização da Igreja” e do seu clero, para concluir: “Tudo isto, por si só, é suficiente para garantir que o relatório da comissão só tem um destino: o lixo.”

Estes vários textos e artigos insistem na ideia de que a vítima é a Igreja e o seu clero e nunca, ou quase nunca, referem as vítimas de abusos.

Na apresentação do relatório, a CI insistiu em que a estimativa feita era grosseira, mas “por defeito”. Os testemunhos, até hoje, não foram postos em causa na sua veracidade – apenas aparecera reacções ao facto de terem sido apresentados na sua crueza e com a linguagem usada pelas vítimas. Na apresentação do relatório, a Comissão explicou o método usado para chegar às 4815 vítimas. Na pergunta sobre se a testemunha “conhecia outras crianças que tinham sido vítimas do mesmo abusador”, os números eram sempre contabilizados por baixo; assim, quem respondia por exemplo “conheço mas não sei quantos”, contabilizava-se um; se dizia “pelo menos duas”, eram duas que se contavam; “duas ou três” ou “quatro ou cinco”, tomava-se o número mais baixo; “mais de dez” contavam-se 11; e assim sucessivamente, chegando a 4303 que, somado aos 512 testemunhos recolhidos (no questionário preenchido e nas entrevistas presenciais), totalizava as 4815 vítimas, que seriam, como insistiu a CI, a “ponta do icebergue”.

A fiabilidade dos testemunhos recolhidos no inquérito digital também foi posta em causa em vários destes textos e posições. No REL espanhol, dizia-se que “não há forma de assegurar que esses formulários sejam fidedignos”. Mas também desde o início a CI explicou a forma de, internamente, ter perguntas de verificação em diferentes momentos do questionário. E os seus membros defenderam sempre que o anonimato da resposta é obrigatório nos questionários das ciências sociais.

Entre vontade de afrontar o problema, as resistências e os negacionismos, saberemos nesta sexta-feira, ao final da tarde, o que querem os bispos.

 

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