
Funeral na aldeia de Genabe, estado de Makurdi-Benue (Nigéria), em 2018, depois dos ataques no início do ano, quando mais de 80 pessoas foram mortas, incluindo mulheres e crianças, e milhares tiveram de deixar as suas casas. Quatro anos depois, a tragédia repete-se. Foto © ACN Portugal
O último episódio de violência na Nigéria, com contornos políticos, económicos e religiosos, descreve-se ainda com dados inconclusivos, mas calcula-se que, pelo menos, duas centenas de pessoas perderam a vida na primeira semana de Janeiro no estado de Zamfara, Nigéria, após vários ataques de grupos de homens armados a uma dezena de aldeias. Há bispos católicos a sugerir caminhos concretos para pôr fim à violência no país, um dos que registam violações graves da liberdade religiosa.
Citando meios de comunicação locais, a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), informa que “centenas de homens armados” que se fizeram transportar em motocicletas atacaram aldeias dos distritos de Anka e Bukkayum, disparando de forma quase indiscriminada sobre os civis.
O Nordeste do país tem sido muito atingido pela violência terrorista do Boko Haram desde 2009. Neste caso em concreto, os ataques provocaram um número elevado de deslocados, calculando-se que mais de 10 mil pessoas tenham fugido das suas aldeias, temendo agora regressar a casa.
De acordo com o portal de notícias do Vaticano, os ataques podem ter ocorrido em resposta a acções do Exército que, logo no dia 3, terão provocado a morte de 100 combatentes dos grupos armados.
Em entrevista ao Vatican News, o cardeal John Olorunfemi Onaiyekan, arcebispo emérito de Abuja, afirmou que o facto traduz a “maldade de terroristas” que matam pessoas “sem qualquer justificação”.
Os ataques foram também condenados pelo Presidente nigeriano Muhammadu Buhari, de acordo com a mesma fonte: “Asseguro às comunidades sitiadas e a todos os nigerianos que este Governo não os abandonará à sua sorte e que estamos mais do que determinados a livrar-nos dos extremistas”.
Uma boa notícia surgiu no meio desta situação: ao fim de sete meses de cativeiro, 30 alunos e um professor sequestrados no Estado de Kebbi foram libertados.
A par dos ataques como os dos últimos dias, o sequestro de crianças é uma das principais formas de violência que tem assolado a Nigéria. Desde o ano passado, mais 1400 foram vítimas de rapto e cerca de 200 ainda estão desaparecidas.
O cardeal Onaiyekan olha no entanto para a libertação agora anunciada e relativiza-a: continua a ser “inaceitável”, diz, que os terroristas “mantenham centenas de crianças e seus professores na mata” e que “nem a polícia, nem os serviços de segurança, nem o Exército nigeriano” consigam localizá-los. “Estes 30 alunos e o seu professor não foram libertados, houve alguém que pagou um resgate, acusa o cardeal. “Ainda há muitas vítimas de sequestros e seus pais e parentes não têm como pagar o que é pedido.”
No final de 2021, também o padre Luka Adeleke foi assassinado no estado de Ogun, na sequência de uma tentativa fracassada de rapto para a extorsão de dinheiro, de acordo com informações das autoridades citadas pela AIS.
Há crianças desaparecidas já há mais de um ano e mesmo algumas há ainda mais. Leah Sharibu, sequestrada depois de um ataque de grupos armados à sua escola em Dapchi, a 19 de Fevereiro de 2018, é um exemplo disso. Na altura, os sequestradores levaram 110 meninas. Um mês mais tarde, todas foram libertadas com excepção de Leah, que tinha 14 anos de idade: era a única cristã do grupo e terá recusado converter-se ao islão, como os terroristas queriam – o Boko Haram e os grupos derivados reivindicam essa pertença. O paradeiro de Leah continua desconhecido.
Apesar da presença desse factor religioso da violência, o cardeal recusa considerá-lo como decisivo: “Rezo por todos os meus confrades católicos e cristãos, e rezo também por todos os meus conterrâneos muçulmanos que estão nas mãos de terroristas há anos”, diz Onaiyekan.
No topo da lista negra

Abrigos provisórios em campos de refugiados improvisados em Ichwa (Makurdi-Benue), Nigéria. Foto © ACN Portugal/IPIC
A Nigéria é um dos países com problemas mais graves de violação de direitos humanos e de liberdade religiosa. A par de questões económicas e políticas, tribais e sociais, o factor religioso apareceu como mais um. O último relatório sobre Liberdade Religiosa no Mundo de 2021, publicado pela AIS em 2021, situa o país entre os 26 com o mais grave índice de violação da liberdade religiosa, contribuindo para que 51% da população mundial (ou seja, perto de quatro mil milhões de pessoas) sofram graves limitações aquele direito – seja por perseguições do Estado, conflitos violentos ou guerras civis, discriminações ou outros factores.
Também em Maio do ano passado, o Departamento de Estado dos EUA, no seu relatório sobre o mesmo tema elaborado a partir das informações recolhidas pelos diplomatas norte-americanos espalhados pelo mundo, incluiu a Nigéria na lista dos países classificados como de grave preocupação. Essa lista inclui ainda, entre outros, a China, Coreia do Norte, Paquistão, Síria, Myanmar (Birmânia), Eritreia, Irão, Tajiquistão, Turquemenistão e Vietname, bem como a Rússia, a Índia e a Arábia Saudita.
A par dos grupos com ligações internacionais como o Boko Haram ou o autodenominado Estado Islâmico da África Ocidental, a violência na Nigéria tem também origem no conflito entre os pastores de etnia fulani, na sua maioria muçulmanos, contra os camponeses, predominantemente cristãos.
Apesar do aparecimento do factor religioso entre os que levam à violência na Nigéria – com terroristas que se reivindicam do islão a perseguir cristãos, mas também muçulmanos que não desejam a guerra nem a violência –, outro bispo católico, Wilfred Chikpa Anagbe, da Diocese de Makurdi, diz que é importante promover o diálogo e a reconciliação.
O bispo Anagbe confessa sentir “raiva profunda e indignação” pelos vários casos de perseguição a que os cristãos no seu país foram sujeitos nos últimos anos, mas considera que se deve apelar ao diálogo com os muçulmanos e ao estabelecimento de um programa de justiça e reconciliação para promover a paz e o perdão.
Num encontro no Burkina Faso, realizado no início de Dezembro, o bispo de Makurdi referiu o caso da sua própria diocese, com mais de 1,7 milhões de pessoas deslocadas e muitas pessoas assassinadas – incluindo dois padres e 17 paroquianos que, em 25 de Abril de 2018, foram mortos enquanto celebravam a missa e mais 72 pessoas mortas numa outra aldeia. Apesar disso, referiu, as estruturas católicas continuam a apoiar as vítimas dos ataques com alimentos e vestuário.
Raiva e indignação – mas é preciso vencer o mal com o bem

Wilfred Chikpa Anagbe, bispo de Makurdi, tem defendido o perdão e o debate sobre a presença pública dos cristãos e muçulmanos, como caminhos para a paz. Foto © ACN Portugal.
“Sinto uma grande indignação, uma raiva profunda dentro de mim. Sim, devemos ficar indignados com a perseguição religiosa no nosso país, senão seremos mergulhados na anarquia total por causa de uma hipocrisia piedosa e politicamente correcta, mas sem sentido”, afirmou. Para acrescentar: “Como cristão e católico, a minha religião ensina-me – e a minha experiência espiritual exige-me – a vencer o mal com o bem. Não esquecemos as vítimas, mas não o fazemos por desejo de vingança ou como incentivo ao ódio.”
A intervenção do bispo Wilfred Anagbe no Fórum da Vida Pastoral e Segurança, que discutiu a perseguição dos cristãos na África Ocidental teve de ser lida por outra pessoa, dado que o próprio bispo se viu impedido de participar, por causa da situação no seu país.
Como bispo, dizia Anagbe, o seu dever é incutir esperança ao povo, uma missão difícil desde que, em 2002, o Boko Haram começou a atacar sobretudo populações cristãs do Nordeste da Nigéria. É difícil haver “um dia sem que se tenham notícias tristes de ataques trágicos à população cristã, muitas vezes às mãos de homens e mulheres mal orientados e mal guiados que querem destruir os alicerces da nossa existência comum através do uso da religião”, dizia o bispo, de acordo com o resumo do seu discurso fornecido pela AIS ao 7MARGENS.
“Como líderes, o desafio que enfrentamos é tomar medidas precisas de fé para curar e restaurar a esperança das pessoas. Além disso, devemos demonstrar a tenacidade necessária para acabar com a humilhação dos nossos irmãos e irmãs, cuja dignidade e direitos são constantemente espezinhados por grupos empenhados em exterminá-los só porque pertencem a outra religião”, afirmou ainda o responsável católico.
Para o bispo Anagbe, o caminho para melhorar a situação na Nigéria e em vários outros países da África Ocidental, passa por colocar cristãos e muçulmanos a falar abertamente sobre o papel da fé na sociedade. “A nossa sugestão é que os nossos irmãos e irmãs muçulmanos examinem cuidadosamente o conteúdo teológico da sua pregação, pois acreditamos que alguns dos seus ensinamentos promovem a violência”. Ao mesmo tempo, deve procurar-se “um diálogo a nível nacional sobre as causas do fundamentalismo islâmico e do terrorismo” e promover um programa de reconciliação que procure a verdade e a justiça, que deve ser facilitado pelos líderes religiosos do país.