O catolicismo vive uma crise profunda, apesar de continuar a ser para muitas pessoas um espaço vital de busca de sentido e experiência de fraternidade. As situações de abusos de poder e violências sexuais vieram evidenciar problemas sistémicos. Em Portugal, depois de terem criado uma Comissão Independente (CI) para estudar os abusos sexuais sobre crianças, os bispos ficaram na indefinição sobre o que fazer com o panorama posto a nu pelo relatório da CI. Perante a perplexidade que tomou conta da sociedade e de muitos crentes, o 7MARGENS convidou católicos a partilhar leituras da situação e propor caminhos de futuro, a partir de três perguntas:
- Quais são os pontos que considera centrais nas medidas a assumir agora pela Igreja, para ser fiel ao Evangelho e ser testemunho de Jesus Cristo na sociedade? A quem cabe concretizar e liderar a aplicação de tais medidas?
- Considera que faria sentido que os batizados se encontrassem e se escutassem sobre essas tarefas e desafios que se colocam à comunidade eclesial, a nível diocesano e/ou nacional? Como? De que formas?
- Que contributo(s) estaria disposto a dar para que a Igreja, os católicos e as suas comunidades adotem um caminho centrado no Evangelho em ordem a superar a prática de abusos?
Nesta nona resposta, Nuno Caiado, um dos subscritores das duas cartas dirigidas à Conferência Episcopal Portuguesa, pergunta sobre qual Igreja se fala e sugere a necessidade de reinventar grupos e comunidades “onde a voz não doa e a expressão das perplexidades possa ensaiar novos futuros”, sempre com a ajuda de teólogos.

Conferência de Imprensa do presidente da Conferência Episcopal acerca do Relatório sobre Abusos Sexuais: “Os bispos, enquanto CEP e muitos deles a título individual (independentemente da idade) deitaram a perder irremediavelmente o respeito da sociedade portuguesa e de uma parcela muitíssimo extensa dos católicos.” Foto © Ecclesia/MC
Qual Igreja?, impõe-se perguntar
O 7MARGENS faz-me uma proposta que me parece, de momento, impossível de satisfazer decentemente, tal a paralisia e desorientação que vem do choque de 3 de Março, esse marco traumático tornado obsceno porque revelador da genuínas insensibilidade e incompetência dos bispos. Estes, enquanto CEP e muitos deles a título individual (independentemente da idade) deitaram a perder irremediavelmente o respeito da sociedade portuguesa e de uma parcela muitíssimo extensa dos católicos.
Porém, porque é na tentativa que se ganham novos limites e possibilidades, eis umas linhas cujo préstimo, sinceramente, parece fraco e insuficiente para a complexidade da tarefa solicitada.
1. Qual Igreja?, impõe-se perguntar. A da hierarquia fracturada (nem sabemos em quantos pedaços), a dos bispos que se comportam como funcionários de uma empresa cujas acções estão em queda, a das equipas de limpeza e contenção e danos que, percebendo o descalabro da violação de linhas vermelhas, se afadiga agora a remediar o irremediável, a dos irredutíveis integristas que militam em blogs conservadores gritando que Francisco é abortista, maçónico e comunista, a dos tridentistas e quejandos que discutem maravilhados as chagas de um beato eslavo ou o milagre da batalha de Ourique, a dos jovens da JMJ que sem um verdadeiro plano de mobilização de consciências continuam a mudar uma cruz de madeira de um lado para o outro como se isso importasse a alguém neste mundo?…
A das igrejas diocesanas, a das ordens religiosas (com a sua grande diversidade), a das muitas dezenas de organizações e movimentos que não soltaram um pio a propósito desta imensa crise, a dos leigos aparentemente neutros a quem nada parece fazer mossa, a dos seguidistas paroquiais do senhor padre e do senhor bispo?
A da massa de crentes revoltados pela vetustez agora tornada bizarra dos bispos paramentados à século XVIII, a da catequista da paróquia que não compreende como se chegou a este ponto e que está fartinha do bispo da sua diocese, a dos perplexos que se manifestaram em vigílias, a da multidão imensa de católicos irritados e envergonhados que se reconhecem na fé e em Deus mas que, por motivos culturais e de identidade, já não aturam as taras eclesiais, o bafio das sacristias, as patetices moralistas e o desprezo que a igreja administrativa nutre pela ciência e pelo mundo – visto como uma ameaça e não como um destino –, a de mais uma geração de vencidos do catolicismo que, ainda fiéis e ancorados no extraordinário Papa Francisco, procuram uma luz na escuridão?
Em rigor, e porque a Igreja é uma organização, é humana e tem um governo e representantes formais, cabe aos bispos tomarem em mãos a correcção dos erros que eles próprios protagonizaram (no limite resignando, o que higienicamente já deveria ter ocorrido com três ou quatro) e ouvir o povo de Deus. Mas a este povo cabe hoje fazer-se ouvir, sendo exigente consigo próprio e com os bispos como nunca antes foi, ajudando-os e interpelando-os incessantemente, exigindo e promovendo ele próprio grandes mudanças, através de iniciativas pessoais e de modo organizado, a partir dos seus movimentos, associações, comunidades paroquiais e grupos formais e informais. Os leigos precisam tomar mais responsabilidades nas suas mãos, realizar mais, exigir mais, responsabilizarem-se mais. Enorme desafio que precisa do apoio maduro de intelectuais e de teólogos que sustentem e orientem as mudanças.
E incidindo em quais pontos, pergunta o 7MARGENS? Na resposta imediata ao problema dos abusos sexuais, há um caderno de encargos muito sensato na carta que os bispos receberam em 1 de Março e que olimpicamente desprezaram (vendo-se agora à saciedade como falharam!). O cumprimento destas propostas – e de outras que pelo caminho inevitavelmente aparecerão – seria um meio realmente eficiente para lidar com o caos dos abusos sexuais. Mas num âmbito para lá da crise actual, há que perceber que esta é a ponta de um grande e ameaçador iceberg que é o modelo de Igreja. A grande ameaça existencial e à relevância da Igreja não é a crise dos abusos sexuais porque esta é tão somente uma das muitas manifestações das distorções sistémicas cristalizadas ao longo de séculos. Precisamos reflectir profunda, serena, mas corajosamente no modo como somos Igreja, como nela é exercido o poder, como nos relacionamos com o mundo e as pessoas, e mudar quase tudo nas nossas vidas.
2. Haverá muitas formas de poder responder ao chamamento, e seria indesejável que se produzisse uma uniformidade de métodos e de pensamento. Todas as formas, locais, regionais, nacionais, transversais ou não, são boas para promover a reflexão e a mudança, desde que sintonizadas com o Papa e a frescura que ele nos propõe.
O que é realmente indispensável é fazer um caminho que ajude o máximo possível de pessoas a reconhecer que este modelo de Igreja é em si mesmo abusivo, que provoca danos e distorce a compreensão do mundo, criando uma religião ideologicamente marcada, controladora e castradora onde Deus é um pretexto para a dominação de consciências e comportamentos, e não uma verdadeira motivação e libertação.
Perguntar Onde está Deus? nisto tudo parece ser uma exigência muito contemporânea, e uma súbita subversão saudável e imperativa que todos podemos fazer nos grupos e comunidades.
Mas atendendo ao conhecido silêncio do catolicismo organizado, possivelmente precisaremos de – a par de o interpelar – reinventar novos grupos e comunidades, onde a voz não doa e a expressão das perplexidades possa ensaiar novos futuros. De novo: os teólogos terão de nos ajudar!
3. Em ordem a superar os abusos sexuais e outros, e todo o iceberg ideológico que lhe subjaz, gostaria de poder pensar com grupos plurais de pessoas inconformadas que desejassem reflectir os evangelhos na vida deste tempo, não abstractamente, mas de modo que tenha impacto directo e concreto na Igreja, forçando mudanças (por exemplo, exigindo que os conselhos consultivos diocesanos em vez de vigários e cónegos, integrem crentes e não crentes qualificados que aconselhem o bispo diocesano), afrontando o bafio das sacristias e paços episcopais e exigindo aos bispos comportamentos dignos e apropriados ao nosso tempo.