“Caminhar pela Vida”? Mas que vida?

| 1 Nov 19

Não tenho exatamente razões para explicar quanto se me torna mais cada vez mais desconfortável, direi mesmo, penoso, ouvir falar das “Caminhadas pela Vida” (ver sucinta notícia do 7MARGENS de 26 Outubro 2019, referindo informação mais ampla da agência Ecclesia):

“Cinco cidades portuguesas acolhem uma caminhada “de defesa da vida”

Aveiro, Braga, Lisboa, Porto e Viseu foram as cidades escolhidas para receber este sábado, às 15h00, a “Caminhada pela Vida”, uma iniciativa que procura contrariar “tentativas de diminuir a sacramentalidade da vida humana” e de “diminuir a sua importância”.

No domingo anterior, tinha estado numa missa repleta de gente e no final, a partir do ambão, alguém anunciou estas manifestações interpelando com convicção, sobretudo os jovens, a tomarem parte nelas. Não posso deixar de relembrar os meus tempos nos Estados Unidos em que o maior número de abortos juvenis no país era cometido por jovens católicas que não usavam contraceptivos e muito cedo se iniciavam na vida sexual, como é tradicional na sociedade americana.

É óbvio que as manifestações tratavam da vida “ameaçada” sobretudo nos seus “extremos”, isto é, antes do nascimento e na morte. Conhecemos bem estas manifestações pela vida que terminam quase sempre num local que seja símbolo da República – no caso de Lisboa, diante da Assembleia da República. Ora estas manifestações são feitas por cristãos expressando-se contra leis e decisões da sociedade civil.

Quero refletir sobre esta questão enquanto cidadã e mulher cristã que defende a vida em todas as circunstâncias (acreditando, pois, na sua “sacramentalidade”), mas uma vida com qualidade para TODOS. Daí falarmos do direito à Vida que sublinha aquilo que está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos ou na Convenção Internacional dos Direitos da Criança.

Ora, o meu desconforto começa aí. Porque misturamos aquilo que são orientações da Igreja Católica – e conhecemos sobejamente as posições dos seus responsáveis – e aquilo que se passa na sociedade civil? Porque somos nós, cristãos, tão contundentes nesta matéria e tão pouco contundentes em relação a outras fases da vida, nomeadamente quanto àqueles que vivem “dentro de portas” connosco, isto é, neste mundo, na nossa civilizada Europa, neste espaço a que chamamos Portugal? Tenho dificuldade em entender este olhar limitado aos dois extremos da vida de um ser humano. Ouvimos nos Evangelhos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

O Papa Francisco bem tem alertado os cristãos para os atentados à vida nos cinco continentes: as guerras, a pobreza, a marginalidade, a imigração forçada, o preconceito (racial, de cultura, de género, de orientação sexual, etc.), o abandono dos mais velhos, a criação de Deus sistematicamente violentada… Não somos todos filhos e filhas de Deus ou alguns são mais do que outros? Neste sentido, o Papa Francisco fala, aí sim, “em pecado”, no “pecado da indiferença”.

Incomoda-me ou melhor, indigna-me, a nossa cegueira face a tantos atropelos à vida. Falo propositadamente na nossa cegueira porque não me excluo dela. No entanto, tenho procurado alargar o meu olhar enquanto mulher crente e cidadã no sentido de me deixar interpelar pelas diferentes dimensões da vida. Contemplo a conhecida fotografia de Oscar e Valeria na fronteira do México com os Estados Unidos. Do outro lado do rio estava a possibilidade de reunião da família, a mãe e outro irmão esperando-os. Olho um pai protegendo de uma forma tão bela a vida de sua filha, levando-a às costas para conseguir nadar melhor naquelas águas turbulentas. Estava em busca de uma vida melhor, qual Moisés e o seu povo em busca da terra prometida. Que mais pungente exemplo do que pode ser uma família unida, literalmente trucidada pelo egoísmo e ausência de solidariedade!

Oscar e a filha, Valéria, mortos depois de tentar atravessar o rio Grande, na fronteira entre o México e os EUA; imagem captada de um fotograma da SIC

 

Que dizer também do olhar ferido, ou melhor, dilacerado, de uma criança curda perdida no meio da invasão da Síria pela Turquia?

Criança curda. Foto: Direitos reservados

 

Buscará a sua família perdida nos escombros? Onde está a solidariedade com as crianças? “E as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim?” diz o poeta.

Estas duas fotografias dizem daquilo que eu penso do direito à vida “desde” o nascimento… ou antes do nascimento. Onde estão os direitos destas crianças e suas famílias? – pergunto-me uma e outra vez.

Que dizemos do cada vez maior aumento, em Portugal, do fosso entre ricos e pobres? Porque razão um país endividado como o nosso produz cada vez mais ricos? E dos índices alarmantes de pobreza infantil?

Que dizemos dos abusos sexuais de crianças perpetrados por sacerdotes e camuflados por um número significativo de bispos em tantos países? Onde está o respeito pela vida destas crianças? Que dizemos ainda da ausência de apoio às famílias que querem ter filhos [ou mais filhos]?…

Volto ao que me fez hoje escrever estas palavras. Relembro mais uma vez o Papa Francisco: “Quem sou eu para condenar?” Porque vive a Igreja Católica obcecada com as questões da moral sexual individual, sendo que a moral sexual é do foro do privado e, segundo a [constituição pastoral] Gaudium et Spes [do II Concílio do Vaticano] pertence à consciência de cada um? Que significado tem o “discernimento” senão trabalhar esta consciência? Que dizemos do belo gesto do Papa Francisco que, pedindo a uma mulher para não abortar, lhe ofereceu a garantia de que cuidaria do sustento e educação do seu bebé? É isso que fazemos quando condenamos o aborto, afirmando que é pecado? Continuo a não entender o anátema que se lança às mulheres (antes da lei da despenalização do aborto elas eram sujeitas a ir para a prisão porque de um crime se tratava) porque são forçadas a abortar sabe Deus por que razões. Não são precisos dois para conceber uma vida? Que responsabilidade atribuímos aos homens?

Como cristã, não sei se alguma vez cometeria um aborto porque o “direito à vida” me é sagrado, mas quem seria eu para afirmar perentoriamente “desta água não beberei”? Apenas tenho a certeza de que viveria um profundo e doloroso dilema, mas em última instância sei que se tratava de uma decisão da minha dilacerada consciência pessoal.

Não sei o que farei no que toca a eutanásia. Mas aceito que seja autorizada pela sociedade civil, apesar (e insisto, apesar) dos riscos que apresenta, exatamente se não aceitarmos o direito a escolher viver e não respeitarmos a decisão individual. Será que não tenho o direito de reivindicar para mim uma morte escolhida e serena, quando o sofrimento for insuportável e a ausência de qualidade de vida me afectar tanto a mim como aos que me rodeiam e que sofrem por me ver sofrer? Não queria morrer em desespero e no meio do maior sofrimento: desejo entrar na plenitude de Deus serenamente, se tal for possível. Desejo ter consciência desta passagem. Já fiz o meu testamento vital. Deus não quer o sofrimento mas deixou-nos livres. Somos limitados, imperfeitos. Deus criou-me para a vida e vida em abundância. Tenho a inabalável certeza de que Deus me fez para a felicidade, apesar das agruras por que passei ou ainda irei passar. Essas agruras fazem parte do meu caminho de busca de uma felicidade profunda, enraizada, solidária, plena, enquanto aguardo a Felicidade Total.

Termino esta reflexão com as palavras de José Tolentino Mendonça: “Começam o dia louvando o imperfeito, o tempo que se inclina para o lado partido (…) e em tudo quanto auxilia o homem no seu ofício louvam o vulnerável e o inacabado.”

 

Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior e membro do Movimento do Graal; Contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com

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