
Nick Cave. Imagem da gravação de Idiot Prayer. Foto: Direitos reservados.
No ano em que Nick Cave se sentou sozinho ao piano, para nos trazer 22 orações muito pessoais, desde o londrino Alexandra Palace para todo o mundo, numa transmissão em streaming, o australiano dedicou-se também à escrita de 12 litanias a convite do compositor neoclássico belga Nicholas Lens.
Nick Cave teve de ir pesquisar o significado de litania, apesar de ter aceitado prontamente a proposta para escrever uma ópera para Lens, para quem já tinha feito um anterior libreto, Shell Shock, sobre os horrores da I Guerra Mundial.
“A primeira coisa que fiz, depois de desligar o telefone, foi pesquisar: ‘O que é uma ladainha?’ Aprendi que uma litania era ‘uma série de preces religiosas’ e percebi que, durante toda a minha vida, escrevi litanias”, contou.
Não é de agora que a religiosidade e a espiritualidade impregnam a música de Nick Cave, e de uma forma mais explícita (e assumida pelo músico) no seu percurso mais recente, marcado pela morte de um dos seus filhos em 2016. Skeleton Tree e Ghosteen são marcas indeléveis dessa jornada entre o desespero e a graça.
Em L.I.T.A.N.I.E.S., o álbum que a Deutsche Grammophon editou nos últimos dias do ano de 2020, as palavras de Cave transportam a música de Lens por uma improvável paixão de Cristo, minimal e contida de palavras e frases que se repetem como numa ladainha, por vezes hipnótica, quase sempre melancólica.
“Eu estava confinado, a minha digressão mundial tinha sido cancelada e sentia uma estranha inquietação, tanto apocalíptica quanto monótona. Nicholas ligou-me e perguntou se eu poderia escrever doze litanias. Eu concordei alegremente.”
O registo é menos operático e a composição de Nicholas Lens remete-nos antes para música de câmara, onde a tensão das cordas, sopros, teclados e percussões com as vozes tinge o silêncio destes tempos de pandemia. Este é um álbum que não esconde os dias em que nasceu: o confinamento de Lens em Bruxelas, o silêncio que se ouvia na capital belga, cruzaram-se com uma experiência de Nicholas no Japão, onde ouviu um conjunto zen que conseguiu “transformar uma tristeza vaga e avassaladora numa promessa calorosa”.
Para gravar o disco, por causa do distanciamento físico exigido, Nicholas Lens rodeou-se de um pequeno ensemble de câmara (viola, violino, violoncelo, clarinete, fagote, flauta, saxofone, percussão e teclados), músicos também eles confinados, cada um em sua casa, e das vozes da sua filha, Clara-Lane Lens, da sua própria (assinando com o seu nome, Nicholas L. Noorenbergh), da soprano Claron McFadden e da do tenor Denzil Delaere.
Esta paixão abre com Litany of Divine Absence, com o piano a marcar o compasso e uma voz sussurrada que pergunta Where are You?, a criatura a questionar o Criador, “onde estás?”, como uma criança perdida no escuro, ou um filho de Deus cheio de dúvidas no Monte das Oliveiras.
É por esta jornada que Nick Cave nos transporta, em textos também eles muito minimalistas, num jogo de repetições e evocações, lengalengas que parecem de embalar, como em Litany of the First Encounter ou em Litany of Blooming, onde se ouve: “I was the child/ Raised to be/ I was the child/ Raised to be/ The world arranged itself around me” (Eu era a criança/ Criada para ser/ Eu era a criança/ Criada para ser/ O mundo organizou-se à minha volta.) Ou no breve encantamento que é Litany of The Forsaken, o abandonado do título maravilha-se perante o mundo mas cedo se apercebe que nada permanece – “Love comes to pass/ Nothing ever lasts/ Never lasts for long” (O amor chega ao passado/ Nada dura/ Nunca dura por muito tempo) –, embora Nick Cave nunca aponte a desesperança como fim.
Por algum motivo, o libreto começa com a Litany of Divine Absence e termina com a Litany of Divine Presence (“I see you”, canta a voz). E neste caminho há lugar à transformação, também pelo amor, outro tema omnipresente na escrita do australiano: “And I’ll watch you die and I’ll save you/ Am full of language, but do not speak/ I am holding you and I need you/ I am holding you and I need you/ I need you” (E vou ver-te morrer e vou salvar-te/ Estou cheio de linguagem, mas não falo/ Estou a segurar-te e preciso de ti/ Estou a segurar-te e preciso de ti/ Preciso de ti.)
É Nick Cave que nos diz, por estes dias, em mais uma das suas cartas aos fãs, na qual fala sobre o cristianismo, que “atos de compaixão, bondade e perdão podem acender [o] espírito de bondade dentro de cada um e no mundo”. Tal como em L.I.T.A.N.I.E.S., onde nos conduz entre o desespero e a graça, Cave aponta para a redenção que também ele procura. “Pequenos atos de amor que se estendem e trazem socorro a esse espírito animado, o Cristo suplicante, tão necessitado de reabilitação.”
L.I.T.A.N.I.E.S. vive essa experiência e pede que nos deixemos levar nesse mesmo conflito. Se durante toda a sua vida, Nick Cave escreveu litanias, vale então a pena perscrutar Idiot Prayer, o tal registo do australiano a solo (“alone at Alexandra Palace”, diz-nos em subtítulo a capa do disco de 2020), que despe 22 das suas canções e poemas de artifícios e nos apresenta o seu universo em voz e piano. E onde encontramos uma resposta para estes dias de pandemia: é o mistério, a incerteza e o conflito que alimentam a fé de cada um (e fé é duvidar sempre). Como em todas estas litanias e orações.
(Sobre Nick Cave, ver também, no 7MARGENS, o texto sobre a sua centésima carta aos fãs)