Os leigos católicos (incluindo as mulheres) devem participar na liderança das comunidades e na nomeação dos bispos e presbíteros que os servem. A Igreja em Portugal deve debater o papel da Universidade Católica na investigação de novos modelos económicos e sociais, em coerência com os valores do Evangelho. A liturgia deve ser enriquecida e comunidades de países diferentes devem geminar-se para concretizar uma Igreja universal comprometida no cuidado de todos.
Estas são algumas das sugestões da comunidade da Capela do Hospital de Santa Marta, em resposta à maior auscultação alguma vez feita à escala planetária, lançada pelo Papa Francisco, para preparar a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023. Esse coro imenso de vozes não pode ser silenciado, reduzido, esquecido, maltratado. O Espírito sopra onde quer e os contributos dos grupos que se formaram para ouvir o que o Espírito lhes quis dizer são o fruto maduro da sinodalidade. O 7MARGENS publica alguns desses contributos, estando aberto a considerar a publicação de outros que queiram enviar-nos.

Baptismo na Capela do Hospital de Santa Marta: “A linguagem e a estética litúrgicas devem buscar a simplicidade, a par de uma participação mais concreta de todos.” Foto © Capela do Hospital de Santa Marta.
- Somos os círculos sinodais que se reúnem em torno da capela do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, onde celebramos a eucaristia. Como uma pequena comunidade que congregou baptizados que se sentiam em diáspora, vivemos a experiência da sinodalidade como um «tempo favorável» de verdadeira comunhão na autenticidade das partilhas, nas divergências e buscas de consenso, nas dificuldades e esperanças, alegrias e tristezas de que somos feitos. Essa dinâmica encorajou-nos a resistir, a não nos deixar dominar pelo desencanto, a não desistir de sonhar com a Igreja que queremos e ainda não somos. Nessa tensão, em virtude da nossa função profética, assumimo-nos protagonistas, aprofundando um estilo participativo, comunitário e missionário, que reclama uma permanente atitude de escuta, diálogo e inclusão de cada um na inteireza da sua história. Juntos, redescobrimos a consciência do mistério de Deus e da sua presença, a beleza da fé, o poder da escuta e da oração, o mistério e o fascínio pelos Evangelhos, a riqueza da vida em comunidade no acolhimento e integração de quem não se sente incluído.
- Acreditamos que a sinodalidade é o caminho para a Igreja de hoje, inspirando as comunidades numa dinâmica de aproximação, responsabilização e participação de cada um de nós. No entanto, existe um grande peso de uma tradição na Igreja, distante dos modos de vida contemporâneos, sendo fácil de constatar que, muitas vezes, os que “caminham juntos” são apenas os que têm e/ou julgam ter condições para cumprir os preceitos estabelecidos. Não cremos que seja uma forma sinodal de caminhar. Esta experiência diz-nos que é necessária uma transformação da organização das comunidades, dos seus agentes pastorais (leigos, consagrados e clérigos), das mentalidades e comportamentos pessoais e comunitários, em vista a uma real «comunhão, participação e missão» de todos. Se a sinodalidade nos pôs a caminho, fez-nos ver, de igual modo, que é necessário colaborar em processos de reforma ao nível da instituição, da lei canónica, dos modelos pastorais e das formas de vivência e expressão concreta da fé. Neste sentido, concluímos que seria oportuno aprofundar «perspectivas de mudança» em ordem a «imaginar um futuro diferente para a Igreja» (DP, 9).
Uma Igreja comunitária de todos, com todos e para todos
- O exercício do poder nas comunidades deve ser descentralizado, democratizado e desclericalizado, valorizando a inteligência e a consciência como instâncias de participação, legitimidade e autoridade; traduzindo-se numa estrutura horizontal, com maior transparência e responsabilidade partilhada de leigos e clero nas decisões da Igreja. A participação dos leigos deve ser exercida de forma orgânica, dinâmica e diversa, respondendo às diferentes sensibilidades e necessidades dos crentes. Para valorizar a dimensão sacerdotal dos baptizados, deve haver uma real paridade entre os vários elementos do Povo de Deus; importa que os leigos deixem de ser apenas executores das decisões tomadas pela hierarquia, antes participem na liderança das comunidades e na nomeação dos bispos e presbíteros que os servem. Também o clero deve ter uma dinâmica orgânica, ultrapassando uma estrutura, mais usual, excessivamente hierárquica e rígida. Existindo diferentes ministérios, consideramos que devem ser exercidos em função do carisma e não do sexo, sendo evidente a necessidade de convocar mulheres para lugares de liderança. À semelhança de outras tradições cristãs, sugerimos a criação de estruturas sinodais contínuas, que permitam e promovam a participação e a codecisão de todos os baptizados.
- Para lá da actual lógica da territorialidade, o paradigma comunitário deve ser reproposto como modelo eclesial privilegiado na sociedade contemporânea, em novas formas de vida comunitária evangélica, inspiradas em modelos de pequenas comunidades de encontro e proximidade, de promoção de fraternidade e de inclusão, escuta e refúgio das pessoas sem voz, das minorias e dos pobres, atentas à diversidade dos carismas e situações de vida. Devem tornar evidente a autonomia e a comunhão, na simplicidade, na sustentabilidade, no serviço e na partilha de bens. Desejamos uma Igreja comprometida no cuidado de todos, fundada na oração, silêncio e leitura do Evangelho, capaz de interpretar cada situação concreta, individual ou colectiva.
- Sugerimos que aumente o número de dioceses e comunidades geminadas entre países diferentes, que concretizem uma Igreja universal com maior proximidade e comunhão entre diferentes comunidades cristãs, capazes de dar resposta a situações de pobreza, discriminação, violência e destruição dos ecossistemas. Que se promovam práticas de partilha da fé e celebrações comunitárias em maior interacção entre diferentes contextos sociais, culturais e económicos.
- A linguagem e a estética litúrgicas devem buscar a simplicidade, a par de uma participação mais concreta de todos, valorizando os espaços de celebração eucarística como pontos de encontro com Jesus e momentos de partilha pessoal e comunitária. Que haja um esforço por tornar os textos e os gestos compreensíveis, credíveis, próximos e inclusivos. Deve envolver-se toda a comunidade, desde a preparação à participação, nos diferentes momentos da celebração, como por exemplo, a leitura do Evangelho, a homilia, a comunhão, a oração universal. Para fugir à frieza da repetição mecânica e enriquecer criativamente a liturgia, propomos a realização de encontros para repensar a disposição dos espaços, a qualidade dos textos e escolhas de materiais sustentáveis.
- Os processos formativos e catequéticos das crianças, jovens e demais baptizados devem promover uma educação sem discriminação, atenta às suas preocupações e inquietações espirituais, tendo como primeiro objectivo acolher e não converter, propor e não impor – o que implica multiplicar os tempos e os espaços de construção de comunidade e de estudo e partilha de conhecimento teológico. Por outro lado, importa repensar a formação nas ordens religiosas e nos seminários diocesanos, passando a favorecer uma educação sinodal, holística e mista, aberta à mudança, nomeadamente na sua componente humana, que promova o autoconhecimento dos candidatos e os prepare para saber interpretar os desafios da sociedade, para abandonar a arrogância de ter respostas antes da escuta e para saber acolher e perceber as pessoas sem as julgar. Do mesmo modo interessa repensar a obrigatoriedade do celibato do clero.
Uma Igreja no mundo aberta e em diálogo – práticas ancoradas no II Concílio do Vaticano

- Habitados pelo Espírito, cada um de nós, na sua singularidade, é um vitral que recebe a luz de Deus e a reflecte de forma original. Esta diversidade é uma riqueza. Neste sentido, desejamos que se passe de uma Igreja moralista, do dever-fazer, para uma Igreja que nos dê a alegria da pertença, do poder-ser. Mais do que propor uma doutrina, devemos praticar o apostolado da escuta atenta à vida concreta das pessoas na sua fragilidade, em particular das diferentes periferias. Porque a diversidade não é uma ameaça para a Igreja, consideramos que a inclusão plena implica o acolhimento de todas as pessoas, independentemente do seu género, etnia, proveniência ou orientação sexual, integrando pastoral, litúrgica e sacramentalmente as diferentes realidades pessoais e familiares, entre as quais, pessoas e/ou famílias LGBTQIA+, pessoas divorciadas, famílias monoparentais, casais em novas uniões. E, visto que a «realidade é superior à ideia» (EG,231), defendemos uma revisão do Catecismo em relação à afectividade e à sexualidade humana, em linha com o conhecimento científico. Queremos uma Igreja atenta às questões do séc. XXI, que viva simultaneamente com a emoção e a razão, o sentimento e o pensamento, aprofundando uma tradição teológica assente no amor de Deus e ao próximo, na construção do Reino, e não no medo, na culpabilidade, no pecado e no cumprimento de preceitos morais.
- A Igreja necessita de reconhecer que não detém o exclusivo do Espírito, por isso deve estimular a prática do diálogo com todos, dentro e fora do seu universo, ousando a criatividade e a inovação na procura de novas formas e vivências da fé. Sintonizados com o II Concílio do Vaticano, advogamos o aprofundamento de uma atitude de acolhimento dialogante com o mundo, a sociedade, a cultura e a ciência, através da abertura aos novos desafios e interpelações da contemporaneidade, especialmente no diálogo com crentes afastados e não-crentes. Sugerimos a criação de novos espaços de encontro e debate nas cidades, onde se dinamize uma leitura actual do Evangelho, a interpretação dos sinais dos tempos e o encontro da Igreja com os movimentos e culturas contemporâneas. Propomos o diálogo ecuménico e inter-religioso mais frequente, em ordem a um crescente e mútuo conhecimento, através não só de momentos de oração, como de intervenções comuns junto de populações vulneráveis.
Uma Igreja ao serviço da Casa Comum – responsabilidade social, política e ambiental
- Acreditamos que a Igreja cresce assumindo, com coragem e humildade, processos de reconciliação, para que exponha as suas sombras e cuide das suas vítimas, se necessário com a devida reparação psicológica, emocional, social e económica.
- A opção preferencial pelos pobres supõe rever o poder financeiro e político da Igreja, em todos os níveis, colocar o seu património ao serviço do bem comum e dar testemunho de despojamento e de partilha de bens. Isto exige transparência económica e financeira das suas instituições, movimentos e organismos, inclusive nas relações laborais que estabelece, bem como um discernimento comunitário na definição de prioridades nos investimentos.
- Em Igreja temos por obrigação fomentar a investigação e a inovação na procura de estratégias políticas, sociais, económicas, ambientais e culturais que concorram para a justiça social, a sustentabilidade ambiental e a regeneração do Planeta, inspirados pelo que nos é proposto na Laudato si’. A Igreja em Portugal deve abordar com seriedade o papel da Universidade Católica na investigação e implementação de novos modelos económicos e sociais, em coerência com os valores do Evangelho, e deixar de ser mais uma universidade, igual a tantas outras ou até mais elitista e neoliberal. Devem os líderes promover a participação política e a cidadania activa dos crentes, opondo-se à simplificação das questões que fomentam polarização, exclusão, discriminação e violência. A Igreja assume-se profética ao defender e dar prioridade à integração e emancipação dos grupos e populações vulneráveis em termos sociais, económicos, ambientais e culturais. Em Igreja temos de ser porto de abrigo de todos os refugiados e migrantes, promovendo uma cultura de paz à luz da Fratelli Tutti.
- Como fruto desta experiência, reconhecemos o significado do caminho sinodal e estamos empenhados em prosseguir, para discernir a Igreja que temos e não queremos, a Igreja que temos e queremos e a Igreja que queremos e ainda não temos.
Comunidade da Capela do Hospital de Santa Marta
Lisboa, 25 de Março de 2022