
Cardeal Marc Ouellet admite os atos, mas nega quaisquer gestos inapropriados. Foto © Direitos Reservados
O cardeal Marc Ouellet veio a público “negar categoricamente” as acusações de violência sexual, de que está a ser alvo no Canadá. Ao mesmo tempo, o modo como o processo foi conduzido no Vaticano está a levantar burburinho, nomeadamente no país em que os factos terão acontecido.
“Tendo tomado conhecimento das falsas acusações contra mim feitas pela queixosa (F.), nego categoricamente ter tido gestos inapropriados sobre a sua pessoa e considero difamatórias a interpretação e divulgação dessas acusações enquanto agressões sexuais”, declarou Ouellet na edição em italiano do Vatican News, esta sexta-feira, dia 19.
O cardeal adianta que, “se for aberto um inquérito civil, pretendo participar ativamente para que a verdade seja apurada e minha inocência reconhecida”.
Esta posição segue-se à decisão do Papa, anunciada na última quinta-feira e publicada no 7MARGENS, de não abrir um processo canónico sobre este caso, considerando que “não subsistem elementos suficientes” para assim proceder.
Esta decisão do Vaticano não tem, naturalmente, eficácia do ponto de vista do direito civil, visto que a ação judicial coletiva, que um juiz de Montréal já aceitou, irá continuar. Esta ação judicial envolve mais de uma centena de vítimas e perto de nove dezenas de padres. As alegações em que o cardeal aparece envolvido são apenas uma delas.
Entretanto, começam a levantar-se perguntas e críticas sobre o comportamento dos órgãos do Vaticano neste caso. A falta de resposta é uma delas. A agente de pastoral (F.) apresentou as suas denúncias de factos ocorridos entre 2008 e 2010 à comissão diocesana sobre abusos, da arquidiocese do Québec em janeiro de 2021, na sequência de um ‘avanço’ que tinha acabado de ter por parte de um pároco, entretanto suspenso. O seu depoimento seguiu para o Vaticano e ela foi contactada no mês seguinte, pelo padre jesuíta Jacques Servais, que o Papa Francisco havia, entretanto, nomeado como inquiridor. Depois de uma única reunião por videoconferência que teve no princípio de março seguinte e que a deixou algo perturbada, nunca mais foi contatada por ninguém. Não se conhece se o padre Servais produziu algum relatório da investigação preliminar que fez; aparentemente, prestou contas a quem lhe encomendou a tarefa, mas quem não mereceu uma resposta foi a vítima.
“Conflitos de interesses” na investigação do Vaticano?
Em reação às declarações do ex-arcebispo do Québec, a vítima já disse manter tudo o que denunciou e pôs mesmo em causa que tivesse havido qualquer “investigação real, feita de forma rigorosa”, por parte do Vaticano
Mais complicado parece ser o facto de o padre Jacques Servais ser alguém que mantém colaboração e relações próximas com o cardeal Ouellet. Segundo a revista canadiana de informação religiosa Présence, “os dois homens conhecem-se bem”, nomeadamente da pertença comum a Associação Lubac-Balthasar-Speyr, a que o jesuíta preside ou na colaboração prestada na organização do Simpósio Internacional “Para uma Teologia Fundamental do Presbítero”, em fevereiro deste ano de 2022, de que o cardeal foi presidente.
Ora, faz notar a revista que, no motu proprio Vos Estis Lux Mundi, em vigor desde 1 de junho de 2019, o Papa Francisco enfatiza a importância de a investigação, particularmente nas situações que envolvem bispos, ser feita “com imparcialidade e sem conflito de interesses” e a obrigação de quem é convidado a fazer este trabalho “se abster e comunicar” os motivos que podem comprometer a “integridade da investigação”.
O presente caso é especialmente melindroso dado tratar-se de uma das figuras mais proeminentes da Cúria romana, tido como “papabile” já desde o último conclave e que, aos 79 anos, continua a ser visto por alguns como potencial sucessor do Papa Francisco. Este canadiano tem estado à frente da Congregação (hoje dicastério) para os Bispos e da Comissão Pontifícia para a América Latina, por nomeação do Papa Bento XVI. De 2003 a 2010 foi arcebispo do Québec e Primaz do Canadá.
No caso em apreço, trata-se de alegado abuso de pessoa maior em situação vulnerável (F. era estagiária e dependia hierarquicamente do putativo perpetrador). Estão em questão gestos e manifestações, sobretudo em lugares públicos, que foram vividas como intromissão indevida, de caráter invasivo, na esfera privada e íntima. Nas suas declarações, o cardeal Ouellet não nega que tenha praticado os atos denunciados pela vítima; nega, sim, que esses atos possam ser tidos por inapropriados e, sobretudo, interpretados e divulgados como “agressões sexuais”.
O cardeal “é um homem caloroso”
Segundo refere o site do operador canadiano de radio e televisão CBC, citando matéria da ação coletiva, quando F. falou com colegas sobre o seu mal-estar, terá sido informada de que o cardeal “é um homem caloroso e que ela não foi a única mulher que enfrentou esse tipo de ‘problema com ele’”.
Cita ainda um padre não identificado, que então trabalhava na Cúria diocesana, o qual diz que já circulavam nessa época rumores sobre o comportamento do cardeal, acrescentando, no entanto que era “muito estranho da parte dele” ter comportamentos inadequados com mulheres”, dado que ele “chegou como um xerife que vinha estabelecer ordem na diocese de Québec”.
Por sua vez, o advogado responsável por esta ação judicial coletiva é citado no site dizendo que “embora as alegações contra Ouellet pareçam menos [relevantes] do que outros casos citados na ação coletiva, o impacto sobre a vítima é, no entanto, fisicamente igualmente importante”.
“É difícil imaginar que alguém com a inteligência dele e na sua posição, não soubesse o que estava a fazer e as consequências que isso poderia ter”, acrescentou.