
Iluminura da autoria de Guglielmo Giraldi (século XV), artista que ilustrou a primeira parte da Divina Comédia para Federico da Montefeltro. Imagem pertencente à Biblioteca Apostólica Vaticana.
A Divina Comédia, de Dante, “pode ser lido também como uma pedagogia poética e espiritual do olhar, como um itinerário de aprendizagem da visão”, afirmou o cardeal José Tolentino Mendonça, na quinta-feira, 23, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. No âmbito da inauguração da exposição Visões de Dante: O Inferno segundo Botticelli, que estará patente na Fundação até 29 de Novembro, o responsável do Arquivo Apostólico e da Biblioteca do Vaticano afirmou que não será um acaso “que a obra de Dante tenha sido objeto de um interesse extremamente amplo, solicitando artistas de primeira grandeza, como Botticelli, Blake, Doré, William-Adolphe Bouguereau, Rodin, Rauschenberg e tantos outros”. E comentou: “É como se pintores, incisores, escultores de épocas e tradições diferentes, se tenham sentido chamados por Dante a ver com ele, através dele, além dele.”
A exposição, que inclui dois desenhos sobre o pergaminho de Sandro Botticelli alusivos ao “Inferno” da Divina Comédia e provenientes da Biblioteca Apostólica Vaticana, prevê um conjunto de visitas presenciais. Ao mesmo tempo, um programa que inclui um colóquio internacional (já neste sábado, 25), debates e um concerto está previsto também para os próximos dois meses.
O cardeal Tolentino começou a conferência citando um excerto do poema de Dante:
Mas mantém pelo ar bem fito o viso,
e verás […]
Então os olhos inda mais abri:
olhei em frente, e vi
Da intervenção, que pode ser vista na página da Gulbenkian no Facebook, o 7MARGENS publica a seguir, por cedência do autor, alguns excertos.
Introdução

Se um clássico é uma obra cuja interpretação jamais se pode dizer concluída, A Divina Comédia, com plena evidência histórica, é um clássico dos clássicos, pois são incontáveis, contrastantes, e em certos casos tumultuosamente inconciliáveis, as perspetivas hermenêuticas geradas ao longo destes sete séculos. Como observou o poeta russo Osip Mandel’štam, que chegou a Dante em vertiginosa contramão, nos anos 30 do século passado, para literalmente sobreviver ao terror de Estaline, a grandeza deste poema inclassificável que é a Comédia reside precisamente na tensão que o atravessa, que o torna uma espécie de luta livre entre registos, instâncias, linguagens e visões. E Mandel’štam explicava que ler Dante é recusar-se a permanecer acorrentado a um determinado presente, já que a sua altíssima poesia nos «desperta em sobressalto» para recordar-nos, para assegurar-nos que estamos «em caminho» ou «a caminho». De facto, a escrita de Dante não visa estabelecer-se (e estabelecer-nos a nós leitores) num padrão rígido, numa racionalidade fechada, num estilo fixo. Pelo contrário, os sentidos intervêm nela como atletas que estão para entrar «na luta decisiva» (30):[1] a verdade do texto (e, do mesmo modo, a verdade da leitura) está na confrontação que gera, na tensão, na suprema intensificação que solicita, numa dinâmica que é de complementaridade e não de alternativa.
(…) Regressar a Dante é fazer explodir os limites da estrita esfera literária para inscrever a literatura num mais vasto plano antropológico, constatando nesta deslocação a prova da sua grandeza não cultural e artística, mas também humana, também espiritual. Regressar a Dante é derrubar os dualismos estereotipados, reconhecendo que natural e sobrenatural não são mundos alternativos, mas formas complementares do nosso estar no mundo; que tempo e eternidade são duas condições do ser em busca de sentido; que o bem e o mal são opções em que o sujeito dramaticamente se define, mas que não são definidas em absoluto por ele. Regressar a Dante é explorar, interrogar e voltar a tecer o universo do humanismo ocidental de que somos herdeiros, nas suas facetas contraditórias, nas suas promessas não cumpridas, nas suas intuições ainda por desenvolver. Regressar a Dante é redescobrir que a arte tem tudo a ver com a moral mesmo quando ambas pretendem desmentir qualquer relação, virando-se mutuamente as costas; é experimentar que a verdadeira espiritualidade não é indiferente à política, que a religião é uma força motriz da história, e a literatura é um lugar de autoconstrução da racionalidade. Regressar a Dante é, em síntese, interrogarmo-nos sobre quem somos, reconhecendo que é nesta interrogação que o homem se torna quem é, não necessariamente através da produção de respostas e conclusões, mas em reais percursos de descoberta e novos começos.
(…) é minha convicção que este poema (…) pode ser lido também como uma pedagogia poética e espiritual do olhar, como um itinerário de aprendizagem da visão. Não será certamente por um acaso de percurso, mas por uma razão consubstancial a esta escritura poética, que a obra de Dante tenha sido objeto de um interesse extremamente amplo, solicitando artistas de primeira grandeza, como Botticelli, Blake, Doré, William-Adolphe Bouguereau, Rodin, Rauschenberg e tantos outros. É como se pintores, incisores, escultores de épocas e tradições diferentes, se tenham sentido chamados por Dante a ver com ele, através dele, além dele. (…)
A Divina Comédia é, por isso, para quem a lê uma verdadeira pedagogia do olhar, porque declina um paciente percurso de aprendizagem da visão, que o próprio protagonista do poema realiza em primeira pessoa sob a guia de vários mestres, e no qual se submete a testes óticos rigorosos, sedimenta talentos visuais inesperados, atravessa situações limite que descolam do sono os seus olhos, reféns como os nossos dos vícios do hábito, das consequências entrópicas da indiferença, dos tentáculos da preguiça e do mal.
Dante vem ao nosso encontro, como que a estimular-nos nesta decisiva empresa, quando textualmente declara, às almas do sétimo círculo do Purgatório, que «voltar a ver», «não ser mais cego» é o objetivo central da peregrinação que ele realiza vivo entre os mortos:
Quinci sù vo per non esser più cieco; donna è di sopra che m’acquista grazia, per che ‘l mortal per vostro mondo reco.Pg XXVI 58-60 |
Aqui vou alto por não ser mais cego:
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(…)
Primeira etapa da viagem. Reconstruir o olhar como relação com o objeto. Atenção, direção, contexto, luz

(…) Quem não sabe olhar, não vê. Quem não sabe escutar, não ouve. Quem não sabe tatear, não toca. Esta ideia novecentista tem em Dante um precursor genial, que constrói toda a sua obra como uma exposição deste princípio, que é paralelamente válido no plano sensorial, intelectual e espiritual:
Allora più che prima li occhi apersi; Pg XIII, 46-47
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Então os olhos inda mais abri: olhei em frente, e vi |
Para ver é preciso abrir os olhos mais do que antes os tínhamos abertos, arriscar escancará-los por inteiro, dirigir o olhar na direção certa, dar-se o tempo necessário para que o olhar se estabilize (“manter bem fito o viso”), aprender a utilizar o indispensável recurso da luz. Toda A Divina Comédia é um relato de tentativas falhadas de ver, o reconhecimento escrito de uma cegueira lentamente sarada, de uma miopia tornada consciente de si e em seguida ultrapassada, de uma obscuridade progressivamente esclarecida, numa sistemática desconstrução da ideia de que ver seja um exercício puramente passivo, inerte receção de uma exterioridade não modulada pela ativação do jogo afinal ascético que representa o olhar. Não, ensina Dante, ver não é simplesmente abrir os olhos, mas abri-los como nunca fizemos antes, escolher para onde os voltar, encontrar uma fonte de luz. É tomar consciência do que fazemos quando estamos a olhar (contemplar é concentrar-se no ver, fazer da própria visão objeto de reflexão, é fazê-la repercutir internamente) e garantir uma justa iluminação para a experiência visual em curso. Ver é uma questão de olhar e de luz, algo que devemos ativamente elaborar, uma tarefa que aprendemos com os outros, com os erros cometidos, as experiências repetidas, os êxitos que se tornam referenciais. (…)
Na verdade, o leitor atento pode decifrá-la desde o início, quando o guia que se oferece ao caminhante perdido no prólogo do poema, um poeta, qualifica a sua missão de resgate como uma viagem cujo objetivo primário é ouvir e é, sobretudo, ver:
e io sarò tua guida, ove udirai le disperate strida, e vederai color che son contenti If I, 113-118 (m.e.)
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e serei teu guia, daqui levando-te a lugar eterno: ouvirás desespero e gritaria, vendo espíritos antigos e dolentes, que cada um segunda morte expia: e verás inda quantos são contentes no fogo, |
(…) Pior ainda do que não ver é convencer-se de ver bem, é enganar-se deliberadamente, afundando-se no ardil da autoilusão. Cegueira não é apenas a incapacidade de ver, mas é o ver distorcido pelo unilateralismo dum olhar que descarta aquilo que não quer acolher; o condicionamento de uma pré-formatação que se torna barreira; imponente obstáculo que impede a perceção do real. (…)
Nesta etapa, peregrino vê, sem ver ainda o que está escondido naquilo que ele vê, sem ver o que o visto realmente é (“Eu a via, mas já não via nela”). O peregrino vê o real apenas como uma superfície indecifrável, um véu que esconde um conteúdo presumido, mas inacessível. O que ele vê é apenas um sintoma (as bolhas que soltava) que denuncia algo de mais profundo, em que o seu olhar não consegue penetrar. (…)
Ver é entrar em comunhão com o mundo, com os outros, com o acontecer do tempo (é saber ler “os sinais do tempo”), é perceber a realidade na complexidade dos seus diferentes aspetos temporais, espaciais, fácticos, maturando a sua diferença e a sua interdependência. É um exercício nada passivo, bem pelo contrário, que requer uma capacidade altamente plástica de relacionar o interior com o exterior, de sair de si mesmo para se re-situar num mundo que não é estase, mas êxodo, andança, que não é homogeneidade, mas descontinuidade, que não é solidão, mas comunidade. Ver é uma questão de atenção, mas também de recetividade, adaptação, boa luz, treino e verificação. A visão certifica-se só na hospitalidade e na partilha, naquele tracejado que acomuna o ver ao que é visto.
Segunda etapa da viagem. Reconstruir o olhar como relação intersubjetiva. A cegueira da solidão

Pelo que até aqui expusemos se compreende que não se recupera a visão sozinhos. Precisamos de guias, educadores, pais espirituais, terapeutas, visionários, poetas, interlocutores que mostrem, corrijam, ampliem, distingam, ensinem. Para voltar a ver, para sair da selva escura da escassa luz e do olhar distorcido pelos fantasmas internos (as feras que assombram e bloqueiam o caminho, empurrando para a treva), o cego tem de ir atrás de alguém que mostra, e que representa um recurso de luz, um lume.[2] (…)
Esta dimensão comunitária da visão emerge progressivamente na consciência do aprendiz do olhar ao longo da sua caminhada, tornando-se prática e destino explícitos na segunda etapa, no purgatório.
No primeiro trecho da viagem, no inferno, a obscuridade emparelha com o isolamento. O mal é o território da separação radical do sujeito, encerrado em si mesmo, desprovido da luz da verdade, do bem, e dos outros. (…) O mal não é escolher o mundo em vez de Deus, mas quebrar aquela comunhão com o mundo e com os outros que se dá em Deus, para absolutizar-se a si mesmo. O mal é uma forma de cegueira, porque isola o homem em si, torna-o incapaz de ver além dele mesmo, precipita-o numa abissal e impenetrável indisponibilidade ao outro:
Oscura e profonda era e nebulosa If IV, 10-13
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Escuro e profundo era e nebuloso, tanto que, por volver o rosto ao fundo, lá nada distinguir era forçoso. «Ora desçamos pois ao cego mundo». |
(…) Confiar em alguém é individuar uma direção de saída na obscuridade profunda e nebulosa do mal; é o passo imprescindível para sair do inferno, para voltar ao contacto da luz. Nesse sentido, o ver é também da ordem do dom, gratuita dádiva que recebemos, não simples competência, não pura habilidade e potência. O treino do olhar passa, paradoxalmente, pela disponibilidade a desistir dele, a fechar os olhos. (…) Ver em detrimento do outro, ver contra o outro, é uma distorção do olhar que só pode ser corrigida por uma impotência que nos remeta integralmente para a posse do outro,[3] ensinando-nos que sem o outro não se vê:
quel fummo ch’ivi ci coperse, Sì come cieco va dietro a sua guida m’andava io per l’aere amaro e sozzo Pg XVI, 5, 7-15
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esse fumo [que] ali já nos cobria [era tão denso] que o olho estar aberto não sofria; e a fiel escolta minha já sabida, o ombro me encostando oferecia.Tal como atrás do guia o cego lida, para não se perder nem dar topada que o magoe ou talvez lhe tire a vida,ia eu pela aura amarga e enfumada, escutando o meu mestre que dizia «De mim não te separes na jornada». |
Perder a visão e ser obrigado a entregar-se aos olhos de outrem, caminhar junto a ele, agarrado a ele, torna-se a única forma de ‘sarar’ um olhar contagiado pela violência alienante de um eu dominado pela pulsão de morte e pelos fantasmas do seu narcisismo. Escutar (escutando o meu mestre que dizia) torna-se assim um suporte essencial deste processo de reaprendizagem da visão (…). Ver passa também pela palavra, que constrói a perceção sensorial como experiência de conhecimento comunitariamente codificada, comunitariamente produzida. Não há olhar sem escuta, não há visão sem palavra. Não há eu sem nós. Não enxergar isso, é não ver. Não praticar isso, é não ver.
Terceira etapa da viagem. Reconstruir o olhar como relação amorosa. Ver é amar

Esta dimensão intersubjetiva do olhar, aprendida ao longo da segunda parte da viagem de saída da cegueira, não é, contudo, unicamente racional e moral. No cume do purgatório, Virgílio, o poeta que encarna a luz da razão natural, cede o lugar de guia e educador a Beatriz, a mulher amada por Dante, figura da razão enriquecida pela fé: a inteligência não é suficiente para ver, para chegar à visão em que o sujeito encontra a plenitude do próprio desejo, deixando a contínua inquietação por novidades[4] para se sentir finalmente cumprido, inteiramente saciado, integralmente em comunhão com o ser, definitivamente ‘visto’ na sua verdade, na sua beleza, na sua bondade.[5]
Na fronteira do purgatório, naquele limiar entre terra e céu, entre natureza e eternidade que é o Éden, o paraíso terrestre, o reencontro com a mulher amada regenera a visão do peregrino, dotando-a de uma capacidade incondicionada de acolher o bem. Se a travessia da noite do inferno o tinha posto em condição de rever as estrelas, a subida do purgatório torna-o capaz de subir até elas, de se colocar no próprio seio da luz:
Io ritornai da la santissima onda puro e disposto a salire a le stelle Pg XXXIII, 145- 148
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Eu regressei assim da santa onda Refeito como plantas novas pelas Renovadas visões de nova frondaPuro e disposto a me elevar às estrelas |
(…) Na terceira e última parte da viagem, ao contrário, só há luz: onde o amor reina, a visão triunfa, finalmente livre, certa, plena, num crescimento de intensidade e júbilo em que o olhar se reconhece uma única coisa com o amor. Ver e amar manifestam-se como duas faces da única relação do sujeito com o ser, em que a comunhão profunda do eu com o outro se torna força de vida inquebrável, eternidade, existência inextinguível, exuberância que transfigura a identidade em processo:
Trasumanar significar per verba Pd I, 70- 72
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Trasumanar, o sentido que observa por palavras se exclui; o exemplo baste a quem a graça experiência reserva. |
(…) O eu, que nas primeiras duas etapas da viagem emergia como fardo de perdição e lugar de tentação a purificar, na luz do paraíso recupera finalmente a dignidade absoluta que lhe confere o facto de ser amado e a capacidade de amar. O eu deixa de constituir um problema a combater ou a reconfigurar nas suas patologias epistémicas e morais, mas é riqueza acolhida e acolhedora; não está simplesmente em diálogo, mas é diá-logo, processo de união com o outro de si, regeneração comum:
così de li occhi miei ogne quisquilia onde mei che dinanzi vidi poi; Pd XXVI, 76-79
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Assim dos olhos meus toda a quisquilia desfez Beatriz cum seu raio veloz, que refulgia a mais de milhas mil e aque bem melhor do que antes vi após; |
Também a esta revelação final o peregrino não chega sozinho. Depois de o ter guiado na descoberta da matriz amorosa do olhar, Beatriz entrega o discípulo ao magistério místico de um novo guia, São Bernardo, para que o leve ao culmine do destino da aprendizagem: “E ele: «Por tua ânsia concluir, / do meu lugar ela me fez desvio»” (Pd XXXI 65-66). O papel de São Bernardo é de mediar o desejo de Dante até Maria, medianeira universal dos desejos dos homens junto do Filho, por sua vez mediador escatológico do desejo humano junto do Pai. Esta cadeia de mediações transitivas, tornando-se cada vez mais decisivas, explicita que a visão que se reconhece autenticamente como amor não é erótica apropriação do objeto, ‘imediata’ gratificação do eu, mas relação na reciprocidade, união amorosa gerada como processo de sentido, opção de liberdade, e não mero resultado de uma causalidade mecânica. (…)
Tal como a heterogeneidade do universo não é anulada, mas recapitulada na unidade suma onde o amor tem o seu primado, assim o eu finito não é apagado na união com o amor infinito, mas regenerado num percurso que o mantém íntegro na sua subjetividade e na plena consciência de si, na noção da exterioridade do mundo como diferença e não como separação, na memória do percurso partilhado, na gratidão do dom recebido de todos os que o acompanharam na sua reconstrução moral, cognitiva e espiritual.
Conclusão

O facto de as palavras não serem suficientes para exprimir a plenitude da experiência em que amor e visão se manifestam como uma coisa só não as torna menos necessárias. O facto de que as mediações sejam superadas no momento final, não as torna dispensáveis. Nada do percurso efetuado para chegar ao destino é considerado inútil ou perdido. Nenhuma das lições aprendidas, nenhum dos guias que acompanharam a viagem resta esquecido no registo deste percurso de construção de um olhar sarado, jubiloso e cheio de amor que a Divina Comedia nos dá. (…)
Vivemos numa época saturada de imagens: abrimos os dispositivos tecnológicos de que todos abundamos e somos submersos por sucessivas avalanches. O risco concreto é que em vez de intensificar o nosso olhar, estas imagens transbordantes o apaguem, ao se pretenderem seus substitutos mecânicos e repetitivos. É fácil desistir de maturar uma visão própria, importando produtos visuais pré-fabricados que se tornam de facto barreiras entre nós e o mundo. A escola do olhar transmitida pela Divina Comédia, este poema cheio de coisas antigas e novas, solicita-nos a nos libertarmos desta ilusão, a tomar consciência deste perigo, a pôr-nos a caminho e a ativar, a treinar, a purificar, o nosso próprio olhar. Pobre de quem lê A Divina Comédia apenas como um repositório de imagens belíssimas, terrificantes, poderosas, extravagantes, inesquecíveis. Lembremo-nos mais uma vez de Osip Mandel’štam, quando observava que este poema, ao treinar o olhar do leitor, é ao mesmo tempo uma máquina de desintegração das imagens, dos substitutos visuais, das visões feitas.[6] Deixemos, por isso, que A Divina Comédia destrua as imagens que nos cegam e nos ajude a construir as nossas próprias visões – novas, livres, jubilosas, porque geradas pelo amor e do amor geradoras. Dante tem razão. Todos somos chamados a construir visões.
Notas:
[1] Extraio e traduzo todas as citações de Osip Mandel’štam da edição italiana da sua Conversazione su Dante (1933), Adelphi, Milano 1921.
[2] Beatriz é um “lume entre a verdade e o intelecto” (Pg VI, 45), diz a Dante Virgílio, que por sua vez (cf. infra Pg IV, 30) é invocado pelo discípulo como doce lume (Pg XIII, 16), através do qual ele consegue finalmente ver claramente:
Ond’ io: «Maestro, il mio veder s’avviva Pg XVIII, 10-12
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Onde eu «Mestre o meu ver ora se aviva Tanto ao teu lume, que eu já vejo claro Quanto tua razão traz ou deriva.» |
e l’un sofferia l’altro con la spalla, Così li ciechi a cui la roba falla, Pg XIII, 59-63
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e um a outro nos ombros amparava e a escarpa os sustentava em tais apertos:assim os cegos que a miséria agrava vão nos perdões pedindo sua esmola a cabeça de um no outro encrava |
[4] O olhar é constitutivamente curioso, sedento de novidade, lembra o poeta, descrevendo o próprio contento perante a variedade das visões do X giro do Purgatório:
Li occhi miei, ch’a mirare eran contenti Pg X, 103-104
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O meu olhar que a ver era contente por novidades ver na ânsia que indague [de que é sedento] |
Così la mente mia, tutta sospesa, A quella luce cotal si diventa, però che ‘l ben, ch’è del volere obietto, Pd XXXIII, 97-105
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Assim a mente minha, já represa, mirava fixa, imóvel e atenta e sempre de mirar se punha acesa.Aquela luz assim tanto acrescenta, que dela desviar por outro aspeito consenti-lo impossível se apresenta;porque sendo o querer ao bem sujeito, Todo se acolhe a ela, e fora dela É defectivo o que é aí perfeito. |
[6]É “da natureza de Dante fazer oscilar os significados, desintegrar a imagem” (op.cit., 60). No entanto, não é possível “deixar de mencionar as formas pelas quais o olho é treinado para perceber coisas completamente novas. A preparação expande-se, torna-se uma verdadeira dissecção anatômica: Dante pressente a estrutura em camadas da retina: de tona em tona …” (Ib.,74). Mandel’štam cita aqui uma tercina do Paraíso:
E come a lume acuto si disonna Pd XXVI, 70-73 |
E como, a aguda luz, se desensona pelo espírito visivo que recorre ao esplendor que vai de tona em tona, |