
O bispo Carlos Azevedo no Vaticano, no início do mês, durante a entrevista. Foto © 7Margens.
É preciso rever a forma de organização da Igreja, diz o bispo Carlos Azevedo, delegado do Dicastério para a Cultura, do Vaticano, a propósito do seu novo livro Entre Vaticano e Portugal – Questões de governo e de pastoral (séculos XVII a XX), que nesta sexta e sábado será objecto de apresentação em Lisboa e Porto.
A questão do poder eclesiástico e da sua relação com o Estrado atravessa os dez estudos que unem esta “recolha de dados sobre personagens, instituições e épocas, iluminada pelas fontes arquivísticas do Arquivo Apostólico Vaticano sobre temas portugueses”, como escreve o autor na apresentação da obra (ed. Paulinas). “As grandes questões abordadas respeitam o governo de dioceses. As relações entre a Sé Apostólica, geralmente apelidada Santa Sé, e Portugal constituem o contexto basilar destes trabalhos.”
Em entrevista conjunta ao 7MARGENS e à TVI/CNN Portugal, Carlos Azevedo fala deste livro e, sobretudo, do episódio em que Portugal esteve quase três décadas sem novos bispos nomeados, por causa do poder de Espanha junto do Papa e do Vaticano. Mas a Igreja, “desde que tenha discípulos de Jesus, mantém-se”, diz o bispo que quer estudar a forma de organização das primeiras comunidades cristãs, para perceber até que ponto “pode ser diferente também nos nossos dias”.
O livro terá duas sessões: dia 2 (sexta), às 21h30, no auditório da Igreja do Campo Grande (Campo Grande, 244), em Lisboa, com o historiador Paulo Fontes, do Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica Portuguesa; dia 3 (sábado), às 21h30, na cripta da Igreja da Senhora da Conceição (Praça do Marquês), pelo bispo auxiliar do Porto, Pio Alves de Sousa.
CARLOS AZEVEDO (C.A.) – É um livro que recolhe estudos que foram sendo feitos ao longo destes anos e que retira do arquivo do Vaticano muitas fontes de informação sobre Portugal. Geralmente são esclarecedores de várias fases das relações entre Portugal e o Vaticano.
O primeiro texto diz respeito ao século XVI.
Sim, num momento curioso, que poucos têm presente: depois da Revolução de 1640, a Espanha não permitia que houvesse bispos nomeados e Portugal esteve sem bispo em nenhuma diocese, seja no continente, seja nas colónias. Não havia nenhum bispo. Só um auxiliar de Lisboa foi quem [se manteve] desde 1661 até 1668, quando se fez um acordo entre Espanha e Portugal e depois foi nomeado um núncio, que foi para Lisboa em 1670 e retomaram-se as relações e todas as delegações que Portugal mandava.
Foi o único momento da história em que Portugal não teve bispos?
Nessa situação, com as 15 dioceses que existiam na altura – seja de Portugal, seja das colónias – sem bispo, sim. E esse era o peso parlamentar aqui em Roma. A Espanha era muito forte: depois da Guerra dos Trinta Anos, no equilíbrio europeu, tinha um poder enorme. Perante o poder fragmentado dos países protestantes e a segurança da Espanha católica, o Papa tinha muito medo das ameaças de corte de relações que a Espanha fazia, se viesse a nomear bispos para Portugal. D. João IV era visto por Espanha como um invasor, um tirano e um perjuro – eram os termos usados – por ter retomado a independência de Portugal.
Com que criatividade sobreviveu a Igreja sem os bispos?
Eram os legados capitulares, os cabidos que governavam. Mas isso trouxe muitas consequências negativas também, porque ficava à mercê de ser um vigário capitular que ia governando a diocese com alguma capacidade pastoral; se não, era o aproveitamento das amizades e de tudo o que é o jogo do poder que é perigoso quando está nas mãos de alguém assim…
A Igreja sobrevive sem bispos?
A Igreja, desde que tenha discípulos de Jesus, mantém-se. A questão é a organização dos serviços, desde as comunidades primitivas – que acho muito interessante, talvez seja o meu próximo estudo a fazer. É preciso percebermos como é que a Igreja viveu nos três primeiros séculos, antes de Constantino, para vermos como pode ser diferente também nos nossos dias, em que a forma de organização da Igreja está muito questionada e é preciso revê-la.
Mais povo, menos estrutura?
Mais atender à realidade e às necessidades das comunidades. Os ministérios e a organização estão ao serviço da vida das comunidades cristãs. E isso é que importa salvaguardar. Não é manter uma estrutura que está a impedir o exercício do crescimento das comunidades cristãs.
É nessa altura quando nasce a ideia do patriarcado em Lisboa?
Sim. A junta de teólogos que o rei D. João IV reuniu dizia: cria-se um patriarcado em Lisboa e o patriarca nomeia os bispos, independentes de Roma, e desse modo resolve-se a questão. Mas D. João IV foi prudente em não quebrar a questão canónica com essa sugestão. Mas é curioso todo esse momento.
O livro vem até 1918, por coincidência com a restauração da diocese de Leiria, que não teve nada a ver com os acontecimentos de Fátima em 1917…
A diocese tinha sido suspensa em 1880, depois de existir desde o século XVI. Houve sempre um movimento que nunca aceitou isso e foi lutando para que ela [fosse restaurada]. Conseguiu isso em 1917, no dia 30 de Abril, exactamente quinze dias antes das primeiras visões de Fátima. O que significa que não foi o fenómeno de Fátima que implicou a criação da diocese, porque já havia decisão. Há um telegrama que encontrei, do secretário de Estado [do Vaticano] para o núncio [em Lisboa] a dizer: “Está decidida a restauração da diocese, veja-se a melhor data para o anunciar.” Foi anunciada só Janeiro de 1918 e o bispo nomeado em 1920.

A questão de Espanha e do patriarcado remetem para a questão do poder. O poder atravessa os vários estudos deste livro ou há outras constantes?
Há a questão do poder, permanentemente, e há muitos cortes de relações. Na introdução ao livro, faço um apanhado de 1640 até 1910, da evolução das relações Igreja-Estado. E por isso também do corte de relações: várias vezes o próprio D. João V cortou relações com a Santa Sé porque o núncio apostólico não foi nomeado cardeal. O núncio era muito incompetente e os cardeais não queriam nomeá-lo. Reagiram, mas o rei tanto insistiu que levou a melhor e lá o nomearam cardeal [para manter as relações].
O Marquês de Pombal também interrompeu as relações porque o núncio não acendeu as candelárias no casamento da princesa do Brasil. Há coisas muito curiosas que jogam com a força do poder.
Outros estudos têm mais a ver com o governo pastoral. Por exemplo, um monge cartuxo – o único dos cartuxos que foi bispo, D. António São José de Castro – que foi bispo do Porto e depois patriarca eleito. Nunca tomou posse como patriarca, porque foi na fase das invasões napoleónicas, com o Papa submetido a Napoleão e o rei de Portugal fugiu para o Brasil. Foi nomeado para patriarca mas nunca [tomou posse].