Este domingo, 15 de maio, o Papa Francisco preside à canonização de Carlos Foucauld, figura inspiradora das Irmãzinhas e Irmãozinhos de Jesus, entre várias congregações religiosas.
O padre José Manuel Pereira de Almeida, pároco de Santa Isabel, em Lisboa, e que tem acompanhado a presença das Irmãzinhas e Irmãozinhos de Jesus em Portugal, traça aqui um perfil biográfico e espiritual do novo santo católico.

Cruz adornada com o símbolo de Charles de Foucauld carregada pelas Irmãzinhas de Jesus, em Mulhouse, França. Foto © Christine Hart L’AlsaceMAXPPP.
No fim do seu testamento, feito em Dezembro de 1911 na montanha de Asekrem, cinco anos antes da sua morte, Carlos de Foucauld indica dois nomes a quem pede que se avise do seu falecimento: «Tenho dois incomparáveis amigos», escreve. Um deles é um amigo de juventude, conhecido desde os tempos de liceu em Nancy. O outro é um amigo da idade madura, Henri Laperrine, na altura coronel, depois general do exército francês, com quem trabalhou muito no Saara, para os Touaregs[1].
O amigo de juventude é Gabriel Tourdes; vivem juntos esses anos em que se sonha transformar o mundo; os livros que lêem alargam-lhes os horizontes e confirmam-nos nas suas buscas; grandes autores (Montaigne, Voltaire…) povoavam a riquíssima biblioteca do avô de Carlos (o avô que o recolheu, com 5 anos de idade, quando fica órfão de pai e mãe). Anos em que eles deixaram juntos a sua fé cristã para abraçarem o racionalismo e o agnosticismo triunfante. «Juntos desaprendemos a rezar», escreverá um dia Carlos a Gabriel. Perder-se-ão de vista depois… Gabriel torna-se magistrado. Carlos explorou mundos exteriores e interiores: converteu-se, tornou-se trapista e, depois, ermita em Nazaré. A 7 Março de 1902 Carlos quer retomar esta sua relação. Está em Beni Abbès (às portas de Marrocos), padre secular da Diocese de Viviers: quer levar o Evangelho lá onde, enquanto não-crente, vinte anos antes, tinha feito uma importante exploração. Queria partilhar com Gabriel o que lhe aconteceu. Fala-lhe entre outras coisas do choque que viveu no momento da sua ordenação sacerdotal, nove meses antes: «Senti-me logo chamado a ir ter com as ‘‘ovelhas perdidas’’, com os mais perdidos». Reconhece-se uma alusão à parábola de Jesus sobre o bom Pastor que deixa, no redil, as noventa e nove ovelhas para ir, lá fora, à procura da centésima que está perdida. Mas Foucauld, narra-a de modo diferente: para ele, há noventa e nove ovelhas do lado de fora, que se perderam, e uma só que ficou dentro; para ele, os que não conhecem e não vivem a fé cristã – chama-lhes «os irmãos de Jesus que O ignoram» – são noventa e nove, são a imensa maioria; e é ao encontro deles que quer ir.
Porquê? Porque quer convencê-los a converterem-se como ele se converteu? Porque quer que o redil se volte a encher? Não. A verdadeira razão é dada claramente nesta carta ao amigo Gabriel que permaneceu não-crente, agnóstico; vai partilhá-la com «o amigo dos primeiros anos e de todos os anos», como escreveu na primeira linha da sua carta: «É o segredo da minha vida: perdi o meu coração por esse JESUS de Nazaré crucificado há 1900 anos».
«Perdi o meu coração por esse JESUS de Nazaré». Este homem de quarenta e três anos, que não é dado a palavras ocas, que não é um sentimental, abre o seu coração ao seu «incomparável amigo», e fá-lo desta maneira: «perdi o meu coração». A expressão toca-nos. É pouco comum. O que significa para ele? Se dissesse “dei o meu coração por esse Jesus de Nazaré”, teria sido muito mais fraco do que este «perdi o meu coração» que indica um movimento absoluto, que vai até à perda de si próprio no seu todo.
Uma radicalidade doce
Lembremo-nos que, depois da sua conversão, ele só quer viver para Deus; e citando Bossuet, declara então que quer viver assim para sempre: «exalar-me diante de Deus em pura perda de mim»[2]. Há, aqui, no «perdi o meu coração» uma radicalidade doce, que já não tem o tom abstracto e absoluto da conversão: trata-se de dar a Jesus todo o amor do seu coração. É outra coisa que o «viver só para Deus».
É que justamente, em 15 anos, da conversão à sua ordenação, Foucauld fez um caminho de amor: ele perdeu pouco a pouco o seu elevado voluntarismo para chegar, em 1901, a um amor muito humilde, quotidiano, agora virado para os que se encontram mais longe, «os irmãos de Jesus que O ignoram», que ignoram que são amados por Jesus. O amor é um caminho: primeiro um passo, depois outro passo; é uma procura, um ir mais longe ainda; nunca acabamos de amar. O que Carlos compreendeu. Teve, de resto, uma bela escola: o padre Huvelin morreu a dizer baixinho: «Nunca amarei que chegue».
Mas como era o coração de Carlos de Foucauld? Antes de perder o coração por Jesus de Nazaré, já o tinha perdido alguma vez? Pode dizer-se que tinha um grande coração e que já tinha amado muito: era muito afectivo, tinha uma maneira simples de contactar as pessoas, uma arte muito particular de conversar com cada pessoa num “tête-à-tête”. Era um coração secretamente vivo, que sofreu muito por perder a sua mãe e o seu pai com a idade de cinco anos e meio; depois, aos dezanove anos, o avô que o tinha recolhido. Mas este apaixonado de grande fôlego tem uma vontade de ferro; nunca perde o controlo de si mesmo, vai sempre até ao fim.
Perde o coração. E por um “ausente”, esse Jesus de Nazaré! Como pôde ele perder assim o coração? Qual é a maneira de amar de Carlos de Foucauld?
Querer amar

“Ele encontrou Jesus de Nazaré no caminho, viu-O nas pobres ruas de Nazaré, na sua peregrinação à Terra Santa.” Foto: Direitos reservados.
Tudo parte deste Jesus de Nazaré e do seu Evangelho (que é onde Ele fala e age). Aí encontra a sua fonte, dia após dia: seguir Jesus, ser o mais possível, amorosamente, um outro Jesus, ser um Evangelho vivo. E é a única coisa que ele pede àqueles e àquelas, padres e leigos, os baptizados que começam a constituir a sua pequena “confraria”, a União fundada por ele em 1909, sete anos antes da sua morte: ser outros Jesus, outros Evangelhos, lá onde se encontram, na Nazaré de cada um deles. O artigo I dos estatutos da União diz que os irmãos e as irmãs da União «tomarão por regra o perguntar-se em todas as coisas o que pensaria, diria, e faria Jesus naquela circunstância. Eles farão esforços contínuos para se tornarem semelhantes a Nosso Senhor Jesus, tomando por modelo a sua vida de Nazaré, que apresenta exemplos para todos os estados. A medida da imitação é o amor».
O que significa para ele «a vida de Nazaré»? O essencial é o desejo, o querer imitar Jesus em amor. Na realidade, ele encontrou Jesus de Nazaré no caminho, viu-O nas pobres ruas de Nazaré, na sua peregrinação à Terra Santa; viu-O também, vivo, no coração de algumas pessoas à sua volta e particularmente duas pessoas (também eles com uma vida de amor por Jesus): o padre Huvelin e a prima Marie de Bondy. É assim que ele encontra o Coração de Jesus. E o seu coração, diante desta chama viva de amor que é Jesus, fica perdido; ele quer perder-se no Coração de Jesus (este Coração que ele revelou particularmente a Marie de Bondy). Perder-se, não é passivo: é lançar-se por completo numa realização de amor: tornar-se, pouco a pouco, um Jesus vivo.
Foucauld pensou, a seguir à sua conversão, que devia tornar-se religioso na ordem mais estrita possível, ficando longe daqueles que amava. Vontade de ascese extrema; mas o essencial, era o coração atrás desta determinação: o do Padre Huvelin. Numa carta a um abade beneditino onde ele apresenta Foucauld, que procura o seu caminho, escreve que se trata de «um bom cristão, que fez da religião um amor». O essencial não é que ele queira entrar na vida religiosa, mas este homem de trinta anos é um homem de amor, apaixonado por Deus, o Deus de Jesus Cristo.
Entre a conversão de Foucauld e a sua morte vão trinta anos de vida escondida, quer dizer, de amor cada vez mais forte. Um amor sem nenhum êxtase nem iluminações; pelo contrário, marcado pelo cansaço e o pelo quotidiano, pelo deserto e pela noite. Este pano de fundo permanece até ao fim; e é preciso lembrarmo-nos desse horizonte, que ele viveu durante esses trinta anos. Horizonte indicado logo dez anos depois da sua conversão (6 de Junho de 1897): «Secura e trevas: tudo me é difícil: a santa comunhão, orações, tudo, tudo, mesmo o dizer a Jesus que O amo. É preciso que me agarre à vida de fé. Se ao menos eu sentisse que Jesus me ama! Mas Ele nunca mo diz».
Doze anos mais tarde, a 30 de outubro de 1909, a Luis Massignon – outro amigo muito especial – ele vai mais longe e escreve: esta «secura» faz do amor uma «prova de amor»: O amor não existe, diz o poeta Jean Cocteau, só existem provas de amor. Foucauld quer dar a Jesus, que lhe provou o seu Amor, provas de amor. Quatro meses antes da sua morte, diz a L. Massignon, em 15 de Julho de 1916: «quanto ao amor que JESUS tem por nós, Ele provou-nos suficientemente para que nós o saibamos sem o sentir. Sentir que nós O amamos e que Ele nos ama, seria o céu: e, salvo raros momentos, raras excepções, o céu não é cá para baixo…»
Nenhum gozo sensível, nenhum mesmo. Aceitação contínua, fiel ao longo deste caminho interminável, de amor silencioso de Jesus. A Louis Massignon, seu irmão leigo que tinha trinta e três anos, seu discípulo mais próximo, ele escreve, na mesma carta de 15 de Julho, o que é estar apaixonado por este Jesus: «O amor consiste, não em sentir que se ama, mas em querer amar: quando queremos amar, amamos». «Querer amar» está sublinhado. No dia da sua morte, escreve, a Marie de Bondy: «Sentimos que sofremos, não sentimos sempre que amamos e isto é mais um grande sofrimento! Mas sabemos que queremos amar, e querer amar é já amar. Nunca amamos que chegue; é verdade, nunca amaremos o suficiente».
“Paz, confiança e esperança”

“Foucauld no Saara, nos seus anos tão duros, era uma pessoa cheia de alegria.” Foto: Direitos reservados.
É preciso perceber o que quer dizer «querer», para Carlos de Foucauld, tal como para Teresa de Lisieux. Não se trata de um voluntarismo (que, por isso, procura o resultado). Em amor, nunca nos encontramos no resultado; quando amamos uma e outra vez nunca acabaremos de amar. Amar é ir mais longe; é querer amar, ou seja desejar, desejar amar melhor, amar ainda; o querer, em amor, é extremamente humilde, senão não é amor. Então, e é um grande sinal, somos invadidos por qualquer coisa de indizível, vindo do Espírito Santo: a alegria, a alegria profunda. Foucauld no Saara, nos seus anos tão duros, era uma pessoa cheia de alegria. «Deus é amor» declara o quarto evangelho. A grande revelação que Jesus nos faz do Pai, do Abba, do Deus de Amor. Havemos de amar a Deus e a todas as criaturas de Deus. «Creio que não há outra palavra do Evangelho – diz-nos Foucauld na carta de 1 de Agosto de 1916 a Massignon – que me tenha causado tanta (e profunda) impressão e mais tenha transformado a minha vida que esta: ‘‘Tudo que fizeste a um dos meus irmãos mais pequeninos, é a Mim que o fizeste’’».
Como Foucauld diz ao seu amigo Gabriel, é a partir de um olhar para Jesus de Nazaré tornado o último dos últimos, «crucificado há 1900 anos» como ele diz. No seu voluntarismo da primeira parte da sua vida de convertido, Foucauld quer ir até «ao último lugar»; ouviu, no entanto, uma palavra do padre Huvelin na sua homilia: «Jesus Cristo tomou de tal modo para si o último lugar que ninguém mais o poderá ocupar». Mas Foucauld, no seu ardor primeiro, só pouco a pouco irá aprender, concretamente, que um só amou até ao fim do amor: Jesus de Nazaré crucificado; quanto a cada um de nós, trata-se de nos pormos a caminho até este último lugar, ocupado para sempre por Jesus de Nazaré, Morto e Ressuscitado. Uma das maneiras de o fazer é dar o seu coração aos outros, começando pelos últimos, repetia muitas vezes Massignon: simples, humilde, quotidiano, lá onde nos encontramos, onde vivemos, na nossa Nazaré.
Concluo com uma última palavra de Foucauld onde se exprime todo o seu itinerário espiritual. Ele tinha começado, na sua conversão, por esta resposta a Deus: «só querer viver para Ele»; foi compreendendo, pouco a pouco, que se tratava de amar como Jesus de Nazaré, de amar com um amor pobre, simples e quotidiano, sempre renovado. Tinha admiravelmente captado no Saara que o amor a Deus e à Humanidade era um só. Ele diz a Louis Massignon no 1º de maio de 1912: «É amando os homens que aprendemos a amar a Deus. O modo de obter a caridade para com Deus é praticá-la para com os homens». E, recordando-se talvez das palavras que lhe tinha dito, em 1909, o padre Huvelin – “Confiança, esperança” –, diz-lhe de modo fraterno: «Paz, confiança e esperança». São estas três palavras que queria deixar-vos por ocasião da canonização de Carlos de Foucauld.
José Manuel Pereira de Almeida é padre católico e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa. Redigiu a nota introdutória do livro Meu Deus, Como És Bom, publicado agora pela Paulus Editora.
Notas:
[1] «J’ai deux incomparables amis: Gabriel Tourdes, magistrat à Saint-Dié (Vosges), ami d’enfance: ses parents et grands-parents étaient amis de mes parents et grands-parents; ma sœur le connaît bien; et Henri Laperrine (maintenant colonel du 18º Chasseurs à Lunéville, bientôt général, je pense). Écrivezleur que le Bon Dieu a mis fin à mon pèlerinage, et lorsque l’occasion s’en présentera, faites leur connaissance.»
[2] «m’exhaler devant Dieu en pure perte de moi»: Méditation à Nazareth, 8 de novembro de 1897.