A capa de Cartas de um teólogo a um jovem de hoje

A capa de Cartas de um Teólogo a um Jovem de Hoje

Os jovens perguntam e querem respostas francas; os jovens reconhecem o seu valor e desejam que seja ratificado no concreto; os jovens sabem que são uma preciosidade para a Igreja e sonham que esta os vislumbre como tal com toda a efetividade. O autor deste livro está plenamente em sintonia com eles nisso tudo, e ao longo de anos, foi tentando mostrar isso mesmo, enquanto cristão e teólogo, nas suas aulas de Mundividência Cristã na Universidade Católica Portuguesa. Foi fruto de tudo o dito anteriormente, e pegando em perguntas reais que lhe foram feitas no decurso de tais aulas e entretanto entretecidas com respostas numa curva narrativa previamente estabelecida, que foram sendo elaboradas as Cartas de um Teólogo a um Jovem de Hoje, agora reunidas em livro. Uma obra que, note-se, tem em tais respostas um conteúdo pensado para um público mais alargado do que o do mero meio académico (jovens mais novos, jovens com mais juventude acumulada, pais, agentes de pastoral juvenil, etc.) – um hino à juventude de hoje.

No prefácio da obra, o padre e professor Eduardo Duque, responsável da Pastoral Universitária a nível nacional, refere que “o autor destas Cartas encostou os seus ouvidos ao chão e ouviu os gritos de muitos dos jovens a clamar por um sentido de vida, por um mundo melhor e mais justo, mas não enveredou por diálogos nihilistas”. 

Temas como o prazer, a pedofilia e o sínodo católico, o cânone bíblico, a ginefilia feminina e outros que tocam inquietações muito frequentes resultantes dos traços mais comuns dos jovens da “Geração Z+C” (a Geração Z que atravessou a covid-19) – o fracasso, o medo do futuro e da morte, a dependência virtual, etc. –, são abordados neste livro. 

Numa das cartas, dirigida aos rapazes, o autor escreve: “É devido ao que escrevi antes que te parece estares sempre a pensar em mulheres. Eu compreendo perfeitamente o que dizes. Eu também passei por isso, e se te dissesse o contrário estaria a habilitar-me a ganhar o presunto reservado para a maior mentira do século. Trata-se de algo natural e, se não nos levar a ímpetos, interiores ou exteriores a nós, que nos degradem ou degradem aquelas, não deve ser reprimido, sob pena de, um dia, explodir ou implodir desta ou daquela maneira que poderá ferir muita gente.

“Mas repara que nós não somos apenas mecanismos biológicos. Nós também somos isso e muitas vezes quando dizemos eu, infelizmente e no que é imensamente prejudicial para o nosso crescimento pessoal e espiritual, não estamos senão a fazer eco desses mecanismos. Todavia, e como já disse, somos muito mais do que isso: somos, como já poderás ter ouvido dizer, seres elevados a um patamar espiritual e, assim, capazes de gerir esses mesmos mecanismos, fazendo deles, quando possível, um trampolim para o nosso evoluir humano.”

Pelo interesse da obra, o 7MARGENS publica a seguir o seu prefácio. 

 

Um golpe de dom silencioso (Prefácio, de Eduardo Duque) 

O selo que leva as cartas na capa do livro: é preciso “apagar, limpar, laminar, ou até rasgar para fazer passar uma corrente de ar vinda do caos, que nos traz a visão”.

O selo que leva as cartas na capa do livro: é preciso “apagar, limpar, laminar, ou até rasgar para fazer passar uma corrente de ar vinda do caos, que nos traz a visão”.

 

Gilles Delleuze e Félix Guattari, em O que é a Filosofia?, escrevem que nenhum pintor “pinta numa tela virgem, nem o escritor escreve numa página branca, mas a página ou a tela estão desde logo de tal modo cobertas por ‘clichés’ preexistentes, preestabelecidos, que é necessário antes de mais apagar, limpar, laminar, ou até rasgar para fazer passar uma corrente de ar vinda do caos, que nos traz a visão”.

Ao escrever este prefácio tentei despir-me da minha pele, limpar, ao jeito de Delleuze e Guattari, a força que me move, para deixar entrar uma lufada de ar fresco e pôr-me no lugar de um jovem de hoje. E, de imediato, ocorreram-me um par de perguntas: que sentido haverá em torno destas Cartas a um jovem de hoje? Que verdade nelas se propõe? Será universalmente válida? Os jovens dos nossos tempos encontrarão motivos para as ler? 

Não encontraremos facilmente respostas para estas questões, mas, deixando de lado o problema hermenêutico – não porque não nos interesse, mas porque o momento não é oportuno –, de uma coisa sabemos: quem se confrontar com a leitura destas Cartas, delas não sairá igual. Isto porque são Cartas que interpelam, que convocam sentimentos, que apelam a um olhar profundo da vida; Cartas que provocam a alma, que estimulam a ver mais longe e voar mais alto; valores estes que, como o leitor compreenderá (recorro aqui ao estilo interpelativo das Cartas), se identificam totalmente com a matriz cristã que inspira e conforma a construção do edifício deste livro. 

A nossa cultura está cada vez mais centrada na dimensão técnica da vida, na experimentação e quantificação, no pensamento analítico e matemático, na inteligência artificial e na física quântica. Assenta fundamentalmente no saber científico, tecnológico e económico, saberes estes que disfrutam do respeito e prestígio dos cidadãos e das mais diferenciadas organizações e instituições. O problema não está nestes saberes, até porque todos temos fruído das suas vantagens. O problema está na forma como eles são venerados e como impõem modelos que implicam uma forma muito própria de entender o ser humano e o seu destino.

 

O ser humano como um todo

Foto génerica sobre criação de vida. Foto © Hal Gatewood / Unsplash

“A cultura técnico-científica está em alta; porque vive de perguntas.” Foto © Hal Gatewood / Unsplash

 

Por detrás desta nossa cultura há um profundo desconhecimento do ser humano como um todo, que o reduz a partes, que podem ser medidas, controladas e calculadas. É aquela questão de irmos a um médico de clínica geral e ele mandar-nos para as especialidades, tantas que acabamos por não saber o problema ou por saber que se sofre de todos os problemas. 

Esta nossa cultura exalta de forma extraordinária os valores do poder, do controlo, e do domínio. Tudo passa a ser controlado pelo ser humano, pelo que, numa cultura assim, não há espaço para Deus, nem tão pouco para a Verdade, porque a verdade, essa, é reduzida à distinção. Quem souber distinguir claramente os processos, esse, acede à verdade. Não acede à Verdade do Pai, mas acede à verdade dos factos e do cálculo, aquela verdade que, hoje, facilmente se acede. Quando assim é, todas as propostas de verdade não são mais do que isso mesmo, propostas, alternativas que implicam o consenso. Mas isto não é a Verdade e esquecê-lo, é esquecermo-nos do guarda-chuva, pior do que isso, é perder o guarda-chuva, algo muito típico da nossa sociedade que relativiza todas as perdas.

Portanto, o problema fundamental da contemporaneidade é esquecer que existe uma gramática que conjuga outros verbos e tempos diferentes dos saberes técnico-científicos; de que há algo mais do que a racionalidade científica, há pneuma e mitos, e, portanto, há silêncio e mistério fazedores de história.

Quando retiramos o mistério à vida, a história ensina-nos, como em Barioná de Sartre, a ver a vida como uma derrota e, consequentemente, a ter uma visão nauseabunda da nossa própria existência, das relações humanas, ou da natureza. 

Quando a cultura de um povo, as suas tradições e memórias, e a ciência não se encontram nem se conjugam, é sinal de que estamos a semear uma cultura que não está ao serviço do ser humano e da vida. 

Os jovens foram envolvidos nesta cultura. Não conhecem outra, pelo que esta basta e conforta, mas também desconforta porque não preenche. É demasiado light – dizem alguns – e pouco exigente esta cultura. Não há risco; e os jovens gostam de arriscar, de desafios, de perguntas e de não terem tudo já feito e respondido! É por isso que a cultura técnico-científica está em alta; porque vive de perguntas. Porém, não obstante serem perguntas importantes, são perguntas que não respondem ao que verdadeiramente interessa à vida e, por isso, são perguntas que rapidamente secam o interior da pessoa. As metáforas do conhecimento lógico-científico tornam-se, assim, na nossa cultura, uma casca vazia que, em vez de libertar as pessoas, particularmente os jovens, os enreda e aliena num ritmo alucinante que lhes golpeia a capacidade de espanto, de admirar o bem e o belo.

Terão estas pessoas interioridade?

oracao ecumenica WCC Photo Albin HillertWCC

Momento de oração: “Estas Cartas ajudam a este encontro, a olhar para dentro da pessoa.” Foto © Albin Hillert/WCC-CMI

 

Do que é capaz uma sociedade que aposta tudo no desenvolvimento científico, no poder da técnica e das inteligências artificiais? Terá esta sociedade, como diria Aristóteles na Física, alma? Terão estas pessoas, como referia Georges Poulet, interioridade? Preocupar-se-ão com quem nasceu em contextos menos favorecidos, teve menos oportunidades de crescer, ou menos forças para lutar? Mas de que é capaz a humanidade sem amor? Lamentavelmente conhecemos bem a resposta. Quando falta a capacidade de amar ou o espírito contemplativo, o ser humano degrada-se e a obra desmorona-se. 

A sociedade em que vivemos, com extraordinários avanços científicos, não se pode fechar sobre ela própria. Deve ser uma ciência que reconhece os seus fracassos, que dialoga com os outros saberes, que se abre, no limite, ao mistério da vida, porque lhe reconhece valor e sentido. Esta ciência é a ciência do “conhece-te a ti mesmo” do oráculo de Delfos, que auxilia o ser humano e as sociedades a irem mais longe. 

As novas gerações devem poder ter a oportunidade de conviver num mundo melhor, com modelos sobre os quais possam configurar a sua própria escala de valores sem lhes induzir padrões viciados. Modelos que propiciem experiências que conduzam ao encontro com as grandes verdades; encontro que pode chegar a ser a chave para fazer nascer e salvar a vida da pessoa. 

Estas Cartas ajudam a este encontro, a olhar para dentro da pessoa, a conhecer os seus limites e desejos; ajudam a dar nomes aos fracassos, a interpretá-los e a conviver com eles; ajudam a descobrir os sentimentos produzidos que se vivem quando se fazem experiências radicais e ajudam a descobrir o sentido mais profundo da vida. Porém, estas Cartas, lidas assim, poderiam ser entendidas como mais um livro de autoajuda e desenvolvimento pessoal e, possivelmente, também o poderão ser, mas a sua grande diferença para com a maior parte desses livros, a sua grande virtude, é a largueza oceânica em que todos os diálogos se ancoram, que é em Cristo. 

Encostar os ouvidos ao chão 

Rémi écoutant la mer. Rémi escutando o mar. Edouard Boubat

Rémi écoutant la mer. Paris 1995. Foto © Edouard Boubat/Wikimedia Commons

Digamo-lo claramente e sem medo: o autor destas Cartas encostou os seus ouvidos ao chão e ouviu os gritos de muitos dos jovens a clamar por um sentido de vida, por um mundo melhor e mais justo, mas não enveredou por diálogos nihilistas, que não se sentem determinados por nada, a não ser pela sua própria vontade autónoma, nem fundamentou os seus diálogos numa interpretação sentimental do amor e da compaixão de Cristo separada da verdade, mas mostrou, através de histórias com lições de vida, que o amor e a compaixão verdadeiros implicam e comprometem radicalmente a pessoa, precisamente porque são inseparáveis da verdade, que é a única, como refere S. João, que nos torna livres. 

Nestas Cartas, o leitor, particularmente o jovem, é convidado a entrar numa cultura de diálogo, pelo que não encontrará motivos que reprimam o que pensam, o que dizem, ou que fazem. Naturalmente, porque se trata de diálogos, não se pode impedir a uma das partes que proponha à outra os valores em que acredita e o que faz viver. E a outra parte tem sempre a possibilidade de retorquir, de não aceitar aquele entendimento da vida, porque a base com que se tecem os diferentes diálogos partem da liberdade e da consciência da pessoa.     

Finalmente uma nota em relação ao estilo das Cartas. É um estilo realista, fecundo, de quem olha de frente os problemas da sociedade em que vivemos, que não foge aos temas difíceis, até bem pelo contrário, procura-os e aborda-os sem a tendência da atitude de “fuga mundi”, como acontece em muitas abordagens do género.   

Nestas Cartas não só encontramos movimentos de esperança e confiança para curar feridas abertas – e, neste sentido, como diria Derrida, são “um golpe de dom silencioso” –, como também a certeza de que sem verdade não se alcança o belo. Ciente disto, e de que as nossas sociedades entram em processos de decadência sempre que se distanciam da verdade, o autor, direta e indiretamente, vai propondo, ao jovem com quem conversa, os três componentes mais importantes da vida do ser humano para se tornar numa melhor pessoa: a bondade, a beleza e o bem; transcendentais estes que ajudam a crescer, a perdoar e a amar. 

Eduardo Duque é professor da Universidade Católica Portuguesa

 

Pin It on Pinterest

Share This