Análise

Manifestação a favor do casamento homossexual: há bispos, padres e outros católicos que querem debater de forma mais profunda as realidades homoafetivas com que a Igreja tem de lidar. Foto @Ian Taylor | Unsplash
Não há muito tempo, quando Roma falava e decidia, os debates terminavam (Roma locuta, causa finita). Agora, em muitos casos, de um lado e de outro das causas que se discutem, o pronunciamento vaticano não só não encerra o assunto, como pode mesmo incendiá-lo. Assim aconteceu com o Responsum a uma dúvida (cuja origem não é revelada), a que a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), do Vaticano, decidiu responder. Com a anuência do Papa, o texto foi publicado no início da semana passada.
Recorde-se a pergunta: “A Igreja dispõe do poder de abençoar as uniões de pessoas do mesmo sexo?” A resposta foi taxativamente negativa. Os motivos são três: a) a natureza da bênção, que exige “consonância de vida” relativamente àquilo que ela significa e gera; b) a realidade a abençoar, que envolve “prática sexual fora do matrimónio”; c) analogia possível entre a bênção e o sacramento.
Foram de vários tipos as muitas reações e tomadas de posição sobre o documento, esmagadoramente de incomodidade, inquietação e recusa. Vieram de coletivos LGBT de dentro e fora da Igreja Católica, de leigos (referência para a ex-presidente da Irlanda e canonista Mary McAleese), de padres (com destaque para os movimentos que se geraram na Áustria, Irlanda e Alemanha) e até de bispos, sobretudo da Bélgica e Alemanha.
O Responsum foi criticado de forma particularmente viva nos países ditos desenvolvidos, com destaque para a Europa e Estados Unidos. E foi-o essencialmente por duas ordens de razões: linguagem crua e até para alguns “cruel”a contida na página e meia de justificações; mas, sobretudo, pelo fechamento total da CDF, com potenciais consequências significativas, no plano da vida de várias igrejas locais e das realidades homoafetivas com que lida.
A lei e a doutrina

Vários cardeais considerados próximos do Papa vieram a terreiro defender o pronunciamento da Congregação e a posição oficial do Vaticano. “A Igreja tem um ensino muito claro sobre o casamento que precisa de ser proclamado”, disse Sean O’Malley, arcebispo de Boston (EUA), durante um painel de discussão online organizado pela Universidade de Georgetown, citado pela agência Associated Press. A Igreja Católica – acrescentou – não pode abençoar uniões do mesmo sexo porque Deus “não pode abençoar o pecado”.
No mesmo dia, O’Malley juntou-se ao cardeal Peter Turkson, prefeito do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, num outro ato público. Ambos chamaram a atenção para o alcance da ação pastoral do Papa Francisco relativamente a gays e lésbicas, mas reafirmaram a posição da Igreja quanto aos casais homossexuais.
Mais enfático ainda foi o cardeal Kevin Farrell, prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, explicando que “cada paróquia do mundo é chamada a acompanhar todos, inclusive as pessoas que não podem ter uma participação plena na vida da Igreja”, como já acontece com casais heterossexuais recasados ou que coabitam sem serem contraído matrimónio.
E sobre a bênção, Farrell explicou que se trata de uma ação sacramental relacionada com o sacramento do matrimónio que a Igreja ensina que só pode ser celebrado entre um homem e uma mulher.

A sexualidade e a bênção
Marcelo Barros, frade e teólogo brasileiro, distancia-se desta leitura, sublinhando a distinção entre o sacramento e a bênção. “Padres abençoam casas, abençoam carros e antigamente abençoavam animais. Mas, a pessoas humanas que vivem o amor homoafetivo não podem dar a bênção (…). Negar uma bênção é negar dizer o bem a alguém. É negar uma palavra de amor. Jesus nunca faria isso”, criticou. “A Igreja Católica – interroga ainda – não tem o poder de dar a bênção a casais homoafetivos? Não têm o poder de abençoar. Tem o poder de amaldiçoar, discriminar, legitimar a violência quotidiana do mundo contra eles?”
Olhando para a prática pastoral, merece referência o bispo Peter Kohlgraf, da diocese de Mainz (Mogúncia), na Alemanha. O mesmo que, há cerca de um mês, segundo o La Croix International, tinha assumido, numa coluna do semanário diocesano Glaube und Leben (Fé e Vida), da sua diocese, a existência de várias modalidades de bênção, quando chegou à diocese. Essas bênçãos, no entanto, “não seguem o modelo das cerimónias litúrgicas de casamento católicas, nem pretendem alcançar uma liturgia padronizada. Os padres que acompanhavam esses casais abençoam o que há de bom nas suas vidas”, explicou. Perante o documento agora emanado de Roma, mostra-se incomodado e compreende as críticas que lhe chegam do seu rebanho.
De resto, o problema da Igreja, na Alemanha, é bastante mais profundo e sério, na medida em que o Caminho Sinodal em que a Igreja se encontra atualmente tem esse tipo de bênçãos e outras modalidades de atenção pastoral às muitas uniões homossexuais como um dos seus pontos de agenda.
Daí que o presidente da Conferência Episcopal do país, o bispo Georg Bätzing, tenha reagido logo no dia da publicação do Responsum, questionando indiretamente a contundência do texto e dizendo que perante a complexidade do problema “não há respostas fáceis”.
Este responsável, que ainda em dezembro último se mostrou um defensor da bênção dos casais, reconhece que a posição da CDF reflete a doutrina oficial da Igreja, mas contextualiza: “Na Alemanha e em outras partes da Igreja em todo o mundo, tem havido discussões há algum tempo sobre a maneira como este ensino e o desenvolvimento doutrinário em geral podem ser promovidos com argumentos viáveis, com base nas verdades fundamentais da fé e da moral, na reflexão teológica progressiva e também na abertura aos resultados mais recentes das ciências humanas e às situações de vida das pessoas hoje.”
Proximidade, compaixão e ternura

Parece, assim, claro que a dúvida que a Congregação vaticana quis esclarecer levantou mais problemas do que aqueles que eventualmente resolveu, até porque, em rigor, não trouxe nada de novo. Estes problemas parecem ser de natureza teológica, pastoral e cultural e seria empobrecedor pretender encerrar assim o debate. Mas são também de atitude e de estilo.
Ao assumir uma atitude condenatória, a CDF dá a impressão de querer fazer valer uma lógica de ação discrepante da atitude do Papa Francisco que ainda no Angelus deste domingo se referia aos que hoje querem “ver Jesus” e que precisam de encontrar, da parte dos cristãos e da Igreja, “proximidade, compaixão e ternura”.
“Trata-se – explicou Francisco – de lançar sementes de amor não com palavras que voam para longe, mas com exemplos concretos, simples e corajosos, não com condenações teóricas, mas com gestos de amor. Então o Senhor, com a sua graça, faz-nos dar fruto, mesmo quando o terreno é árido devido a desentendimentos, dificuldades ou perseguições, ou pretensões de legalismos ou moralismos clericais. Este é terreno árido”.
É evidente que as situações com que as igrejas locais se debatem, nesta matéria, são muito diversas e todos estarão de acordo que não é fácil encontrar uma solução que tenha em conta as especificidades de cada contexto. A tentação, que alguns analistas sublinharam nestes dias, é a de recorrer à lei, esquecendo as pessoas e as suas relações. Uma perspetiva que o conhecido teólogo leigo italiano Andrea Grillo considera “tipicamente pré-moderna”, que “responde a um paradigma que não é mais o nosso”.
Numa série de textos publicados nos últimos dias no seu blog Come se non (em italiano, mas parte deles traduzidos na página do brasileiro do Instituto Humanitas da Unisinos), Grillo propõe uma reflexão em torno de aspetos como “uma leitura do sexo que não o reduza à função de geração” e se alargue à dimensão da sexualidade; e, por outro lado, o “direito do sujeito” de ser reconhecido pelo que é e pelo bem que pode viver e testemunhar.
“Reconhecer o bem que existe – e também poder abençoá-lo – em vez de focar apenas no bem máximo a ser imposto a todo custo, não é “relativismo”, mas princípio da realidade e primado do real sobre o ideal” – defende o autor.
Percebe-se, enfim, que faz falta mais trabalho teológico, com mais atenção às realidades pastorais e ao vivido das pessoas e das comunidades, bem como mais diálogo com o adquirido das ciências sociais e humanas. É isso que parece faltar no pronunciamento da Congregação da Doutrina da Fé.