Católicos e abusos: olhos nos olhos, escutar e conversar

| 22 Mai 2023

Infância. Abusos. Série "Childhood Fracture" (V), de Allen Vandever

Série “Childhood Fracture” (V), de Allen Vandever. Reproduzido de Wikimedia Commons

 

A reflexão sobre o tema dos abusos deve, em meu entender, ter como premissa a realidade eclesial portuguesa; caso contrário, poderá tornar-se um ensaio meramente retórico, alheado da realidade concreta da esmagadora maioria das comunidades cristãs portuguesas – a maior parte das quais se situa, geograficamente, no território apelidado carinhosamente, pelos urbanos, como província.

É na referida província que ainda subsiste uma parte do resto fiel, que procura, a seu modo e na medida das suas possibilidades, viver e transmitir a fé recebida. É claro que esta transmissão hoje é uma tarefa um pouco inglória: os poucos que ainda resistem em aí viver, têm outras solicitações atraentes, bastante mais fáceis e deveras mais promissoras para o imediato da vida.

As igrejas vazias aí não se devem em primeiro ao abandono da fé, mas à desertificação humana que, teimosamente, continua a existir por essas terras. Não há crianças na catequese, não há jovens nas celebrações, porque já não os há nesses lugares. Os casais são poucos, porque não os há. As igrejas tornaram-se lugares escuros, vestidas de penumbra, as celebrações são rotineiras e sem chama, porque quem ainda aí vive, são essas pessoas que heroicamente resistiram a abandonar as suas terras e que agora se encontram no crepúsculo da sua existência. Que poderemos pedir a estas pessoas? Que renovação poderá haver aí? Sabe Deus e os poucos que por carolice continuam à frente dessas comunidades, a ginástica financeira que têm de fazer para conseguir pagar a conta da luz, da água e dar um sustento rudimentar a quem vai anunciar o Evangelho e presidir à Fração do Pão.

Depois…, depois há os meios urbanos, para onde as pessoas “tiveram” de ir viver, para poderem subsistir e a sua vida ter algumas oportunidades, difíceis de atingir no meio rural. É, talvez, na urbe cosmopolita, que se colocam os grandes desafios à organização da sociedade em geral e da Igreja em particular.

Perguntemos e reflitamos. Quantos centros urbanos cosmopolitas existem em Portugal? Quantas urbes há, em que a diversidade cultural é verdadeiramente visível? Quais as regiões de Portugal onde a sociedade é composta por pujantes e vitais comunidades identitárias?

Não me parece que abundem neste nosso cantinho periférico da Europa. Não temos de ter complexos pela realidade que somos. Somos quem somos e estamos onde estamos. Para o bem e para o mal, aqui nos encontramos para assumir desafios e procurar viver, na fidelidade criativa, as provocações do Evangelho.

 

2. Centremo-nos agora nas questões propostas no recente debate sugerido pelo 7MARGENS.

As medidas centrais a assumir pela Igreja que está em Portugal neste tempo da história, para ser fiel ao Evangelho e ser testemunha de Jesus Cristo, hão-de ser as de ontem, como serão, certamente, as de amanhã.

Cada tempo terá a sua criatividade, mas também terá de ter fidelidade. Quando nos pomos a inventar e nos entendemos como estrelas iluminadas, capazes de tirar da cartola soluções para os problemas que hoje enfrentamos, corremos o risco de borrar tudo e esfrangalhar o edifício débil que habitamos e ao qual pertencemos.

A pergunta que coloco é esta: queremos trabalhar com, ou queremo-nos substituir aos que foram revestidos em promover a unidade e a comunhão entre todos?

Será que estamos a cair na tentação de querer fazer comunhão apenas com aqueles que pensam e têm a mesma sensibilidade que nós ou, pelo contrário, dispomo-nos a fazer comunhão com todos?

Não esqueçamos a advertência de São Paulo: “nós somos cooperadores de Deus…segundo a graça que Deus me deu, como bom arquiteto, lancei o fundamento; outro constrói por cima. Mas cada um veja como constrói. Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo.” (1 Cor 3, 9-11)

É importante e necessário que cada um, como batizado e discípulo, faça a avaliação quanto ao modo como constrói e qual é o seu fundamento, assim como as motivações.

Sobre ser testemunhas, parece-me ser necessário sermos prudentes, para não cairmos num legalismo que, de alguma forma, todos rejeitamos. Afunilar e remeter para uma forma ou modo de ser testemunho, poderá tornar-se um constrangimento à ação do Espírito de Deus. Permitamos que o Espírito atue livremente, para que também nós possamos permanecer livres. Ainda assim, acredito firmemente que o nosso testemunho há de passar pela nossa amabilidade, delicadeza e capacidade de diálogo.

 

 3. Claro que faz sentido os batizados sentarem-se frente a frente, olharem-se olhos nos olhos, conversarem e escutarem-se. Vamos mal quando não somos capazes de o fazer. Escutarmo-nos desarmados. Cristãos que se escutam e que desejam fazer caminho em conjunto. Ser simplesmente cristãos, independentemente da tarefa ou missão que desempenhemos na comunidade eclesial.

Tenho as minhas reservas a que esses encontros tenham uma base territorial, embora acredite que possam funcionar quer a nível diocesano quer a nível nacional. Parece-me, no entanto, que a realidade social e eclesial é diferente em Cós de Alcobaça e no Campo Grande em Lisboa (para dar dois exemplos de uma mesma diocese), como também serão diferentes as problemáticas e os desafios em Freixo de Espada à Cinta dos de Cascais. E, apesar de tudo, todos são Igreja de Jesus.

 

 4. Sendo importante alguns encontros de maiores dimensões, fundamentais são os encontros de pequenos grupos, onde não sejamos diluídos na massa anónima. Grupos de encontro, partilha e de procura, onde haja escuta e interpelação, onde aprendamos a conviver com a diferença e a pluralidade, que nos interpelem e nos ponham a mexer. Participar nestes pequenos grupos, poderá ajudar-nos a cultivar o sentido de pertença, com os quais nos identificamos e, porventura, dar-nos-ão identidade. Será aí que percebemos que na comunidade cristã também acontecem coisas belas e profundas.

 

António Ribeiro está aposentado e é cristão católico; contacto: amvribeiro@sapo.pt.

 

Os silêncios de Pio XII foram uma escolha – e que custos teve essa opção?

“A Lista do Padre Carreira” debate

Os silêncios de Pio XII foram uma escolha – e que custos teve essa opção? novidade

Os silêncios do Papa Pio XII durante aa Segunda Guerra Mundial “foram uma escolha”. E não apenas no que se refere ao extermínio dos judeus: “Ele também não teve discursos críticos sobre a Polónia”, um “país católico que estava a ser dividido pelos alemães, exactamente por estar convencido de que uma tomada de posição pública teria aniquilado a Santa Sé”. A afirmação é do historiador Andrea Riccardi, e surge no contexto da reportagem A Lista do Padre Carreira, que será exibida nesta quarta-feira, 31 de Maio, na TVI, numa parceria entre a estação televisiva e o 7MARGENS.

Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC

Breves

 

JMJ realizou em 2022 metade das receitas que tinha orçamentado

A Fundação Jornada Mundial da Juventude (JMJ) Lisboa 2023 obteve no ano passado rendimentos de 4,798 milhões de euros (menos de metade do previsto no seu orçamento) e gastos de 1,083 milhões, do que resultaram 3,714 milhões (que comparam com os 7,758 milhões de resultados orçamentados). A Fundação dispunha, assim, a 31 de dezembro de 2022, de 4,391 milhões de euros de resultados acumulados em três anos de existência.

Debate em Lisboa

Uma conversa JMJ “conectada à vida”

Com o objectivo de “incentivar a reflexão da juventude” sobre “várias problemáticas da actualidade, o Luiza Andaluz Centro de Conhecimento (LA-CC), de Lisboa, promove a terceira sessão das Conversas JMJ, intitulada “Apressadamente conectadas à vida”.

“É o fim da prisão perpétua para os inimputáveis”, e da greve de fome para Ezequiel

Revisão da lei aprovada

“É o fim da prisão perpétua para os inimputáveis”, e da greve de fome para Ezequiel novidade

Há uma nova luz ao fundo da prisão para Ezequiel Ribeiro – que esteve durante 21 dias em greve de fome como protesto pelos seus já 37 anos de detenção – e também para os restantes 203 inimputáveis que, tal como ele, têm visto ser-lhes prolongado o internamento em estabelecimentos prisionais mesmo depois de terminado o cumprimento das penas a que haviam sido condenados. A revisão da lei da saúde mental, aprovada na passada sexta-feira, 26 de maio, põe fim ao que, na prática, resultava em situações de prisão perpétua.

Especialistas mundiais reunidos em Lisboa para debater “violência em nome de Deus”

30 e 31 de maio

Especialistas mundiais reunidos em Lisboa para debater “violência em nome de Deus” novidade

A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) acolhe esta terça e quarta-feira, 30 e 31 de maio, o simpósio “Violence in the Name of God: From Apocalyptic Expectations to Violence” (em português, “Violência em Nome de Deus: Das Expectativas Apocalípticas à Violência”), no qual participam alguns dos maiores especialistas mundiais em literatura apocalíptica, história da religião e teologia para discutir a ligação entre as teorias do fim do mundo e a crescente violência alavancada por crenças religiosas.

Agenda

There are no upcoming events.

Fale connosco

Autores

 

Pin It on Pinterest

Share This