
Série “Childhood Fracture” (V), de Allen Vandever. Reproduzido de Wikimedia Commons
A reflexão sobre o tema dos abusos deve, em meu entender, ter como premissa a realidade eclesial portuguesa; caso contrário, poderá tornar-se um ensaio meramente retórico, alheado da realidade concreta da esmagadora maioria das comunidades cristãs portuguesas – a maior parte das quais se situa, geograficamente, no território apelidado carinhosamente, pelos urbanos, como província.
É na referida província que ainda subsiste uma parte do resto fiel, que procura, a seu modo e na medida das suas possibilidades, viver e transmitir a fé recebida. É claro que esta transmissão hoje é uma tarefa um pouco inglória: os poucos que ainda resistem em aí viver, têm outras solicitações atraentes, bastante mais fáceis e deveras mais promissoras para o imediato da vida.
As igrejas vazias aí não se devem em primeiro ao abandono da fé, mas à desertificação humana que, teimosamente, continua a existir por essas terras. Não há crianças na catequese, não há jovens nas celebrações, porque já não os há nesses lugares. Os casais são poucos, porque não os há. As igrejas tornaram-se lugares escuros, vestidas de penumbra, as celebrações são rotineiras e sem chama, porque quem ainda aí vive, são essas pessoas que heroicamente resistiram a abandonar as suas terras e que agora se encontram no crepúsculo da sua existência. Que poderemos pedir a estas pessoas? Que renovação poderá haver aí? Sabe Deus e os poucos que por carolice continuam à frente dessas comunidades, a ginástica financeira que têm de fazer para conseguir pagar a conta da luz, da água e dar um sustento rudimentar a quem vai anunciar o Evangelho e presidir à Fração do Pão.
Depois…, depois há os meios urbanos, para onde as pessoas “tiveram” de ir viver, para poderem subsistir e a sua vida ter algumas oportunidades, difíceis de atingir no meio rural. É, talvez, na urbe cosmopolita, que se colocam os grandes desafios à organização da sociedade em geral e da Igreja em particular.
Perguntemos e reflitamos. Quantos centros urbanos cosmopolitas existem em Portugal? Quantas urbes há, em que a diversidade cultural é verdadeiramente visível? Quais as regiões de Portugal onde a sociedade é composta por pujantes e vitais comunidades identitárias?
Não me parece que abundem neste nosso cantinho periférico da Europa. Não temos de ter complexos pela realidade que somos. Somos quem somos e estamos onde estamos. Para o bem e para o mal, aqui nos encontramos para assumir desafios e procurar viver, na fidelidade criativa, as provocações do Evangelho.
2. Centremo-nos agora nas questões propostas no recente debate sugerido pelo 7MARGENS.
As medidas centrais a assumir pela Igreja que está em Portugal neste tempo da história, para ser fiel ao Evangelho e ser testemunha de Jesus Cristo, hão-de ser as de ontem, como serão, certamente, as de amanhã.
Cada tempo terá a sua criatividade, mas também terá de ter fidelidade. Quando nos pomos a inventar e nos entendemos como estrelas iluminadas, capazes de tirar da cartola soluções para os problemas que hoje enfrentamos, corremos o risco de borrar tudo e esfrangalhar o edifício débil que habitamos e ao qual pertencemos.
A pergunta que coloco é esta: queremos trabalhar com, ou queremo-nos substituir aos que foram revestidos em promover a unidade e a comunhão entre todos?
Será que estamos a cair na tentação de querer fazer comunhão apenas com aqueles que pensam e têm a mesma sensibilidade que nós ou, pelo contrário, dispomo-nos a fazer comunhão com todos?
Não esqueçamos a advertência de São Paulo: “nós somos cooperadores de Deus…segundo a graça que Deus me deu, como bom arquiteto, lancei o fundamento; outro constrói por cima. Mas cada um veja como constrói. Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo.” (1 Cor 3, 9-11)
É importante e necessário que cada um, como batizado e discípulo, faça a avaliação quanto ao modo como constrói e qual é o seu fundamento, assim como as motivações.
Sobre ser testemunhas, parece-me ser necessário sermos prudentes, para não cairmos num legalismo que, de alguma forma, todos rejeitamos. Afunilar e remeter para uma forma ou modo de ser testemunho, poderá tornar-se um constrangimento à ação do Espírito de Deus. Permitamos que o Espírito atue livremente, para que também nós possamos permanecer livres. Ainda assim, acredito firmemente que o nosso testemunho há de passar pela nossa amabilidade, delicadeza e capacidade de diálogo.
3. Claro que faz sentido os batizados sentarem-se frente a frente, olharem-se olhos nos olhos, conversarem e escutarem-se. Vamos mal quando não somos capazes de o fazer. Escutarmo-nos desarmados. Cristãos que se escutam e que desejam fazer caminho em conjunto. Ser simplesmente cristãos, independentemente da tarefa ou missão que desempenhemos na comunidade eclesial.
Tenho as minhas reservas a que esses encontros tenham uma base territorial, embora acredite que possam funcionar quer a nível diocesano quer a nível nacional. Parece-me, no entanto, que a realidade social e eclesial é diferente em Cós de Alcobaça e no Campo Grande em Lisboa (para dar dois exemplos de uma mesma diocese), como também serão diferentes as problemáticas e os desafios em Freixo de Espada à Cinta dos de Cascais. E, apesar de tudo, todos são Igreja de Jesus.
4. Sendo importante alguns encontros de maiores dimensões, fundamentais são os encontros de pequenos grupos, onde não sejamos diluídos na massa anónima. Grupos de encontro, partilha e de procura, onde haja escuta e interpelação, onde aprendamos a conviver com a diferença e a pluralidade, que nos interpelem e nos ponham a mexer. Participar nestes pequenos grupos, poderá ajudar-nos a cultivar o sentido de pertença, com os quais nos identificamos e, porventura, dar-nos-ão identidade. Será aí que percebemos que na comunidade cristã também acontecem coisas belas e profundas.
António Ribeiro está aposentado e é cristão católico; contacto: amvribeiro@sapo.pt.