
Manifestação da Amnistia Internacional pela paz na Ucrânia: agora são mais de mil líderes religiosos que pedem uma trégua a propósito do Natal. Foto © Amnistia Internacional Portugal
Com milhares de mortos civis na Ucrânia e dezenas de milhares de soldados que tombaram em quase dez meses de guerra (iniciada em 24 de fevereiro com a invasão da Ucrânia pela Rússia), é tempo de fazer uma trégua, a pretexto das festas natalícias e de fim de ano. Um cessar-fogo temporário é o que pedem mais de mil líderes religiosos, num apelo enviado ao Presidente dos Estados Unidos da América, para que desenvolva diligências que viabilizem a ideia.
A proposta foi dirigida à Casa Branca ainda antes de se saber da visita do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, aos Estados Unidos, mas não houve sinais de que o assunto tenha sido abordado entre os líderes dos dois países.
Segundo a proposta, as armas deveriam calar-se entre este sábado, 24, e o dia 19 de janeiro próximo, quando passam 12 dias sobre o Natal ortodoxo, que é celebrado no dia 7.
Os signatários iniciais da petição incluem, segundo a agência RNS (Religion News Service), o pastor e ativista William J. Barber II, o fundador do Shalom Center, rabi Arthur Waskow, o estudioso e ativista Cornel West e Tarunjit Singh Butalia, diretor executivo da Religions for Peace USA.
Por sua vez, o documento escrito contou com o contributo de representantes de vários grupos de paz, incluindo a Fellowship of Reconciliation, CodePink – Mulheres pela Paz e o National Council of Elders. A recolha de subscritores iniciou-se já em novembro último. Medea Benjamin, cofundadora do grupo CodePink – Mulheres pela Paz, disse, a propósito desta iniciativa, que “o fim desta guerra não pode ser alcançado por mais guerra”, tal como “a negociação não é um eufemismo para capitulação, nem uma racionalização da agressão de Putin”.
A trégua na Guerra 1914-18 como exemplo

Uma cruz colocada em Comines-Warneton (Saint-Yvon, Warneton), na Bélgica, em 1999, para celebrar o local onde se fez uma trégua no Natal de 1914, durante a Grande Guerra 1914-18. Foto © Wikimedia Commons
Esta iniciativa de uma trégua temporária foi inspirada por iniciativa semelhante que ocorreu em 24 de dezembro de 1914, no início da Grande Guerra 1914-18. Então, os líderes dos países envolvidos não acolheram o apelo do Papa de então, Bento XV, de um cessar-fogo oficial na noite de Natal. Contudo, de forma espontânea e informal, as tropas alemãs e britânicas na Frente Ocidental participaram numa trégua, saindo das trincheiras e juntando-se. Segundo relatos dos soldados que tomaram a iniciativa à revelia dos respetivos comandos, entoaram canções natalícias e partilharam cigarros, comida e bebida, consoando por algumas horas.
Na Ucrânia, a agressão russa continua a afetar grande parte da população, através dos ataques a alvos civis, “em flagrante violação das leis humanitárias internacionais”, como ainda esta quarta-feira, 21, denunciava a Amnistia Internacional, em comunicado enviado ao 7MARGENS.
A destruição de infraestruturas de energia, em particular, tornam um tormento a vida das populações de regiões inteiras do país, quando as temperaturas baixam, a neve se acumula e muitas das habitações se encontram destruídas, grande parte delas desde a primeira fase da invasão da Rússia.
Não é apenas o problema da luz que está em causa, mas também a energia para o aquecimento, numa estação que vive dias seguidos com temperaturas negativas, tornando difícil o acesso às escolas, aos serviços de saúde e complicando os abastecimentos de mercadorias.
Pessoas com dificuldades de locomoção ou com alguma deficiência, idosos e pessoas sós, e em geral os grupos de menos recursos vêem-se em situações muito difíceis para se aquecerem, para cozinhar nas poucas horas em que a energia é distribuída e até para saírem de casa por necessidades incontornáveis.
Um Natal na escuridão, buscando a luz

Bispo Oleksandr Yazlovetskiy, de Lviv, Igreja Católica de rito latino na Ucrânia: “Temos medo. Os militares russos atacam especialmente quando há feriados.” Foto © Diocese de Lviv.
No terreno, já com muita neve, o cardeal Konrad Krajewski, prefeito do Dicastério para a Caridade, da Santa Sé, chegou na segunda-feira a Lviv, com 40 geradores e camisolas térmicas destinados às populações de Zaporizhzhia, Odessa, Kiev e outras regiões mais atingidas pela guerra.
“Há filas de até oito ou 15 horas na fronteira, com a temperatura de 15 graus negativos. Graças ao passaporte diplomático, eu posso trazer tudo de forma rápida e direta”, disse o cardeal esmoler pontifício, citado pelo portal de notícias da Santa Sé, Vatican News, de acordo com a Ecclesia.
Numa situação destas, como será o Natal? A pergunta foi feita pela jornalista M. Chiara Biagioni, da agência católica italiana SIR ao bispo auxiliar de Kiev e presidente da Caritas-Spes, Oleksandr Yazlovetskiy. Numa resposta que é sobretudo a de procurar encontrar sentido a partir do desastre e do sofrimento, eis as suas palavras: “Certamente será um Natal diferente dos anos anteriores. As luzes estão a faltar. E falta a mesa cheia de comida, falta o calor nas casas. Mas na escuridão em que nos afundámos, vemos melhor o que é essencial.”
O bispo acrescenta ainda: “Quando tudo está iluminado, quando as cidades se enchem de luzes, música e enfeites de Natal, é difícil ver o verdadeiro significado do Natal que é Jesus. Aqui, no escuro, vivemos o essencial da festa que é o nascimento de Deus na terra. Pelo menos assim o espero, mas vejo muitos à minha volta que estão preparados para viver esta espera de uma forma diferente este ano e que, apesar de tudo, não perdem a alegria do Natal que se aproxima.”
A jornalista perguntou ainda ao bispo se tem medo de organizar as comemorações de Natal devido ao risco de ataques. A resposta é eloquente: “Sim, também porque [os militares russos] atacam especialmente quando há feriados. Estamos com medo. Mas o nosso povo parece ser mais corajoso do que os bispos e padres. Temos procurado, por exemplo, celebrar missas mais durante o dia e, sobretudo, nos feriados de forma a evitar aglomerações. Mas os fiéis querem vir. Nunca falta ninguém nas igrejas”.