
“As pessoas LGTBIQ+ não escapam à realidade dos abusos, mas, como muitas vezes acontece, a Lei de Murphy cumpre-se mais uma vez e, aos abusos “habituais”, acrescenta-se outro com as mesmas consequências nefastas: a chantagem.” Ilustração © Catarina Soares Barbosa
Durante a última JMJ ficou evidente que as pessoas LGTBIQ+ continuam a ser alvo de alguns grupos, cuja alegada e exibida “pureza religiosa” contrastou fortemente com a clareza com que Francisco disse que na Igreja cabem todos, todos, todos!!
Creio que a maioria de nós partilha o que disse Francisco, porque não se pode falar de comunhão se todos aqueles que querem estar na Igreja, porque se sentem e são Igreja, não o podem fazer.
As pessoas LGTBIQ+ não escapam à realidade dos abusos, mas, como muitas vezes acontece, a Lei de Murphy cumpre-se mais uma vez e, aos abusos “habituais”, acrescenta-se outro com as mesmas consequências nefastas: a chantagem.
Ao dar um passo tão decisivo na vida como decidir para onde dirigi-la, ou como viver aquilo a que nos sentimos chamados, iniciar esse processo com uma mentira não é uma boa ideia. Mas isso é o que muitos homossexuais se veem obrigados a fazer se quiserem ser aceites, sobretudo nos seminários. É certo que em alguns seminários – pelo menos – são admitidos, mas também não se faz publicidade disso. Pode igualmente acontecer nas congregações religiosas. As masculinas já deram passos para ir superando essas barreiras estabelecidas; as femininas, praticamente em todo o mundo, caminham mais devagar a esse respeito.
Alguém consegue imaginar como é viver escondendo uma mentira a vida toda? E, o que é pior, podemos imaginar o que é viver com medo de ser descoberto e, neste caso concreto, de ser chantageado?
Deveria fazer-nos pensar muito sobre aquilo que deriva de certas proibições que condenam a viver um inferno em vida e que, em alguns casos, resulta em suicídios de sacerdotes que, pelo menos na Europa, são tratados como mortes “naturais”, embora o contexto em que ocorrem não sustente o que aconteceu. Qualquer explicação que não fosse a verdade levaria a encarar o problema real.
Um suicídio não tem nada de natural e ocultá-lo apenas serve para reforçar negativamente a autoestima dos homossexuais que já formam parte, embora quase de forma clandestina, de alguma estrutura da Igreja.
Quando a chantagem ocorre e conduz ao suicídio, deveria ser analisada uma questão fundamental sobre a qual nunca se insiste o suficiente: o acompanhamento. Como foi acompanhada essa pessoa?
Não podemos olhar para o outro lado porque a vida de muitas pessoas está em perigo. Não quero dizer que todos se suicidem, mas sim que todos sofram espiritual e psicologicamente durante a sua vida.
Esse sofrimento, que raramente se sentirão com a confiança de partilhar, terá também repercussões no seu ambiente pastoral. Algumas vezes julgamos de forma inflexível o comportamento de alguns sacerdotes em relação a alguns temas que expõem em diversas situações, sem ter consciência de que todos temos uma história que, mais ou menos, condiciona a nossa vida. Porquê essa reação? De onde vem esse comentário? Como é que mudou tanto se antes não pensava assim?
Quando analisamos com calma muitos acontecimentos que sucedem diariamente na Igreja, percebemos que, no final, é como uma corrente cujos elos não podem ser separados e alguns desses elos, além de estarem unidos, chegam a fundir-se uns com os outros, fazendo com que a mobilidade da corrente – que já condiciona bastante a vida – seja impossível. Assim, aparece um elemento rígido que condena as pessoas.
Muitas pessoas, muitos sacerdotes, não são rígidos, o que acontece é que se veem obrigados a manifestar-se assim, condicionados por um modo de ser que não escolheram, que os molda como pessoas, e que lhes causa um grande medo que seja conhecido.
Tentemos mudar a nossa forma de perceber a realidade que vemos. O que vemos e o que olhamos nem sempre coincide. Por trás das reações das pessoas, geralmente existe uma causa. Também não esperemos que as pessoas nos contem tudo; no entanto, seria bom se ouvíssemos o que elas nos dizem sem falar.
Por enquanto, pensemos que a lista de abusos que vão completando este flagelo que não acaba, irá aumentando se não decidirmos limpá-lo completamente.
Quando escrevo estas linhas, acaba de se tornar público que seis bispos suíços são acusados de ocultar abusos… Até quando?
Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo da Igreja Católica. Tradução de Júlio Martin.