Integrante do Graal

Christa Anbeek, teóloga da vulnerabilidade

| 1 Nov 2023

Christa Anbeek é uma teóloga holandesa

Christa Anbeek é uma teóloga holandesa inovadora e pouco convencional. Foto: Direitos reservados.

 

Christa Anbeek é uma teóloga holandesa inovadora e pouco convencional, que ocupa, desde julho de 2023, a Cátedra Mulheres Cuidando do Futuro, instituída por iniciativa do Graal — Movimento Internacional de Mulheres Cristãs, na Faculdade de Filosofia, Teologia e Estudos da Religião da Universidade Radboud de Nimega, Países Baixos.

A inauguração da cátedra contou com um discurso da empossada, intitulado Mulheres cuidando do futuro em comunidades com coração: o Graal internacional entrando no seu segundo século. Jovens mulheres de vários continentes, participantes na escola de verão com o mesmo título, realizada na Universidade anfitriã, integraram a audiência deste ato.

Este 1 de novembro, dia de Todos os Santos (e Santas) na liturgia católica, que é também o dia do Graal, é bom pretexto para recuperar alguns contributos que a teóloga e académica Christa Anbeek oferece. O título do seu livro mais recente, por ora apenas em neerlandês (Abraçar a vulnerabilidade – Procurar comunidades com coração) dá o registo dos terrenos e das perspetivas por onde se têm desenvolvido as suas buscas e contributos.

Numa entrevista dada a Lodewik Dros, do jornal Trouw, aquando da saída desse livro, em junho último, ela mostra posicionar-se de uma forma diversa da maioria dos teólogos:

“Procuro conexão com experiências, muitas vezes de mulheres que se perguntam a partir de um sentimento de dependência: o que pode significar uma comunidade? Como se criam o que eu chamo as comunidades com um coração? Aí é possível experimentar a transformação de uma vida perturbada numa vida com sentido, vivida novamente em conjunto.”

O ponto de partida é, assim, a vida das pessoas, os momentos difíceis por que passam e que as levam, com frequência, a lançar-se na procura do sentido. E que tanto podem ser dramas e experiências profundas pessoais, como grandes questões das nossas sociedades, como uma pandemia como aquela que vivemos, as manifestações das mudanças climáticas ou, como estamos a ver diante dos nossos olhos, as guerras destruidoras de vidas e de povos.

 

“Abstrações totais sobre Deus e Cristo”

Christa Anbeek ocupa, desde julho de 2023, a Cátedra Mulheres Cuidando do Futuro

Christa Anbeek ocupa, desde julho de 2023, a Cátedra Mulheres Cuidando do Futuro, instituída por iniciativa do Graal. Foto: Direitos reservados.

Confessa-se “teologicamente disléxica”, explicando que, por um lado, fez o trajeto académico canónico, estudando, no seu doutoramento, o teólogo luterano Wolfhart Pannenberg, mapeando as suas formulações teológicas e confrontando-as com a de outros teólogos. “Mas eu não as senti”, reconhece ela. E esclarece:

“O que é que eu poderia fazer com aquelas abstrações totais sobre Deus e Cristo, morte e pecado, quando meu pai, minha mãe e meu irmão morreram pouco antes? Chorava, sentada com esses livros abertos. Depois de terminar os estudos, livrei-me de quase toda a literatura teológica. Por ser estéril, essa teologia dominante não combinava com as minhas próprias experiências perturbadoras. Tal abstração não me dizia nada.” 

Aqui importa aduzir alguns elementos mais da biografia de Anbeek. Ela pertence à Igreja Remonstrante, uma corrente da Reforma, fundada na Holanda, no início do séc. XVII, inspirada nomeadamente em Jacobus Arminius ((1560-1609), que acredita que a soberania e grandeza de Deus pode ser conciliada com a responsabilidade humana e com o livre arbítrio. Considera, além disso, que Cristo veio para salvar toda a humanidade, e não apenas os eleitos e valoriza a tolerância na vivência da experiência cristã.

Trata-se de uma Igreja com alguns milhares de crentes, distribuídos por várias dezenas de congregações espalhadas pelos Países Baixos, mas que, desde o séc. XIX, criou um instituto de formação superior dos seus ministros, que ainda existe e se encontra integrado na Universidade Livre de Amesterdão. 

Ora, desde 1999, Christa Anbeek é ministra desta Igreja e foi, mais recentemente, professora de Teologia e de Cuidados Espirituais desse instituto e também reitora da instituição (diga-se que a sua colaboração se estendeu igualmente a outras universidades, nomeadamente à Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tilburg , onde lecionou Estudos Religiosos por mais de uma década).

 

“Completanente secos”

Este percurso proporciona-lhe um mapa amplo que a leva a distanciar-se do modelo académico que leva os investigadores e, neste caso, os teólogos, a entregarem-se “com o suor de seu rosto”, a esmiuçar um autor, uma problemática, mas, “além disto, a ficarem completamente secos/as”. 

Comentando a leitura que fez do livro mais recente desta autora, o jornalista que com ela conversa no jornal Trouw, confessa que ela “escreve sobre todos os fluidos corporais, do ranho ao sémen”. E questiona-a sobre o porquê daquela secura, prevalecente, segundo ela, na produção teológica dominante.

 “Isto acontece – observa a teóloga – porque os pensadores modernos costumam fazer uma separação nas suas vidas: de um lado a vida comum e suja, do outro a existência erudita e pura.” 

Essa busca teológica, arrancando da experiência e dando prioridade à vida, incluindo à sua e da sua família, acarretou-lhe incompreensões e críticas na sua Igreja, mas curiosamente, a sua “teologia da vulnerabilidade”, trabalhada num livro de 2019, trouxe-lhe o prémio público de melhor livro espiritual desse ano.

 

Sair do caos e voltar à vida só em comunidade

O que ela é hoje, é, como sempre, resultado de um caminho. No caso de Christa Anbeek, esse caminho foi marcado indelevelmente por duas “conversões”. De acordo com as declarações ao jornal Trouw, a primeira resultou da leitura da obra da filósofa Hannah Arendt, sobre “o ser humano que não vive para morrer, mas para nascer”, o que era o inverso da experiência de vida de Anbeek: “Mudou o meu olhar sobre a morte, o nada, a dúvida, a culpa e os abismos de falta de sentido, para um novo começar.”  

A sua segunda conversão carateriza-a ela como uma “reversão ontológica”. Para olhar o mundo acha inúteis os conceitos teológicos. Prefere perguntar-se: “O que é que o meu corpo sente? O que ouço, vejo, cheiro e gosto? Como me transformo através de encontros?”. Abandonou a terminologia teológica – “Deus, o Infinito, o Bem, a Profundidade do Ser” – porque sentia “obstruírem-lhe o olhar”.

Mais concretamente ela afirma: “No lugar dessa linguagem abstrata coloco nomes e rostos de pessoas, lugares, verbos. Pensar em como podemos caminhar rumo ao florescimento é teologia para mim. Não sei se ainda devemos mencionar Deus. Sei é que não podemos ignorar as forças que podem atrapalhar vidas. Sozinha, uma pessoa é engolida por elas. Somente numa comunidade se pode sair desse caos e voltar à vida. Não consigo fazer isso sozinha e não tenho que fazer isso sozinha.” 

Para ela, a teologia dominante não é apenas abstrata, também é limitada. Limita-se aos humanos e esquece os animais, as plantas, a natureza, o planeta. “Uma teologia terrena é apropriada para a comunidade terrena que formamos. As plantas e árvores, animais e água também podem vir à mesa para conversar connosco. Portanto, a teologia deve aprender a ouvir todos os seres vivos. Nunca fez isso”.

ONU. 75 anos. Fotografia. Maldivas. Natureza. Mar

Para Christa Anbeek, a teologia dominante não é apenas abstrata, também é limitada. Limita-se aos humanos e esquece os animais, as plantas, a natureza, o planeta. Imagem da exposição fotográfica virtual #The World We Want (O mundo que queremos), celebrando os 75 anos da ONU. Foto Aminath Muna, Maldivas.

Um encontro (virtual) com o Papa

O Papa Francisco ficaria, porventura, interessado em conversar com Christa, não necessariamente porque concorde com tudo o que ela defende no campo teológico, mas por haver inquietações comuns a ambos. No momento em que este texto é escrito, Francisco publica uma exortação apostólica sobre a renovação da reflexão teológica, convocando-a para “um ponto de viragem” e “uma mudança de paradigma”. Em vez de “propor abstratamente fórmulas e padrões do passado”, diz o Papa, ele deve buscar “a abertura ao mundo, ao homem, na concretude da sua situação existencial, com os seus problemas, as suas feridas, os seus desafios, as suas potencialidades”.

Para Christa Anbeek, não bastaria a “abertura ao mundo”, mas partir do próprio mundo da vida, das pessoas e dos viventes. Mas em vários campos é essa a atitude que o Papa também tem proposto, a exemplo do próprio Cristo, que se fez um humano e pelos humanos morreu na cruz. Na exortação, ele vem pedir investimento em métodos indutivos, que levem a “partir dos diferentes contextos” em que as pessoas estão inseridas.

Para essa tarefa, as perguntas que têm (pre)ocupado Anbeek, e que constam da sua página e da cátedra que agora dirige podem ajudar outras pessoas a fazer caminho, a partir das “situações disruptivas” da vida:

“O que é preciso para abandonar o caos e a desordem para poder criar algo novo? Que papel podem consequentemente desempenhar as comunidades com coração? O que é que carateriza estas comunidades com coração e como é que podemos criar um modelo?”

 Como ingredientes importantes para as “comunidades com coração”, ela destaca: a coragem de ser vulnerável, o diálogo, a amizade, o jogo e a co-criação.

 

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