
O escândalo dos abusos no Canadá ainda está para durar. Foto © karl-fredrickson | Unsplash
O coordenador da Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica em Portugal, Pedro Strecht, estima que mais de uma centena dos religiosos apontados como alegados abusadores ainda se encontrem vivos, e alguns deles no ativo. Face ao elevado risco de reincidirem no mesmo crime, o relatório pede medidas concretas da parte da Igreja, a começar pelo impedimento de que essas pessoas estejam na proximidade de crianças e jovens.
O número foi avançado pelo médico pedopsiquiatra em entrevista à SIC Notícias, depois de, durante a apresentação do relatório final sobre os abusos na Igreja portuguesa, o mesmo ter explicado aos jornalistas que não era ainda possível fazer uma extrapolação do número total de alegados abusadores, por faltar “cruzar alguns dados”.
Strecht assinalou que o trabalho do Grupo de Investigação Histórica, que analisou os arquivos das dioceses, levou à “descoberta de mais situações desconhecidas, não reportadas à comissão”. “O somatório destes casos e, sobretudo, depois, a percepção de pessoas que estão vivas e ainda no ativo, ou já não… é que nos vai levar ao número final”, disse o responsável, acrescentando que, nesta fase, há apenas um número “aproximado”, que “será, claramente, superior a uma centena”.
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), José Ornelas, havia assegurado algumas horas antes, em conferência de imprensa, que, depois de analisado o relatório e a lista de nomes dos padres agressores que estão ainda no ativo, a qual será partilhada pela CI até ao final de fevereiro, serão tomadas as devidas medidas. Tal deverá acontecer no seguimento a assembleia extraordinária dos bispos, agendada para o dia 3 de março, precisamente com o objetivo de debater as conclusões deste relatório.
“Temos protocolos” para agir em relação a esses casos, explicou o bispo de Leiria-Fátima: “Se há denúncia, o bispo deve fazer uma investigação sumária para averiguar a sua plausibilidade. Os casos são depois enviados para a Santa Sé, que tem mecanismos de averiguação”. Ao mesmo tempo, acrescentou, são enviados ao Ministério Público. A mesma lógica será seguida em relação a eventuais casos de encobrimento.
Comissão pede supervisão externa de todos os religiosos em contacto com crianças

Importa “assegurar uma supervisão continuada, preferencialmente externa e de qualidade profissional, de todos os membros da Igreja que se encontram em lugares profissionais de proximidade direta com crianças”, defende a Comissão Independente. Foto © Clara Raimundo.
A CI dedica um capítulo do relatório a “recomendações específicas à Igreja Católica portuguesa”, no qual sublinha ser necessário, “perante a lista de alegados abusadores ainda vivos” e “sabendo-se do risco comum de perpetuação do mesmo tipo de crime por esse tipo de alegados abusadores”, estudar “caso a caso, diocese a diocese, depoimentos que os referem e, sempre que necessário, atuar dentro do previsto na Lei Canónica e/ou Lei Penal”.
A comissão refere ainda a necessidade de “reforçar a prevenção do abuso sexual de crianças, adotando um conjunto de medidas”, nomeadamente impedindo “que aqueles sobre quem recaia alguma suspeita nesta matéria sejam destacados para atuar na proximidade de crianças e de jovens”.
Importa também, acrescenta o relatório, “assegurar uma supervisão continuada, preferencialmente externa e de qualidade profissional, de todos os membros da Igreja que se encontram em lugares profissionais de proximidade direta com crianças e/ou dirijam estruturas de acolhimento, educação ou atividades diversas, desde as religiosas a outras, bem como a todos os outros que, na sua dependência direta, exerçam o mesmo estatuto ou papel em locais geridos por membros da Igreja Católica”.
A comissão considera que se “impõe uma análise periódica da verdadeira vocação religiosa e uma avaliação psicológica externa em caso de dúvidas vocacionais e/ou de comportamentos que indiciem risco no campo dos abusos sexuais de menores”.
O relatório alerta ainda para o facto de os padres viverem frequentemente sozinhos e de isso se traduzir muitas vezes em “sentimentos de grande solidão”, o que pode conduzi-los a comportamentos de risco (do ponto de vista da sua saúde física e mental). É, por isso, “indispensável a Igreja cuidar das condições de vida dos seus sacerdotes e membros de ordens religiosas que lidam, no dia a dia, com grande sobrecarga de trabalho e atividades de elevada intensidade emocional”. Nesse sentido, “criar espaços de convívio e partilha entre sacerdotes no seu quotidiano, onde as experiências são contadas e integradas, é um passo importante”, defendem.
O relatório destaca, por fim, que “a CEP deve proceder a uma reflexão/avaliação sobre o funcionamento efetivo das Comissões Diocesanas já que, independentemente dos Regulamentos existentes, a sua concretização é desigual: desde logo quanto a prioridades e foco da sua atuação, mas também quanto ao protocolo de boas práticas que deve nortear a sua conduta junto das vítimas (como responder a quem faz a queixa, capacidade de escuta e empatia, celeridade das respostas, necessidade de manter contacto, etc.)”.