
A última conferência de imprensa da Comissão Independente antes da publicação do relatório final. Foto Agência Ecclesia/OC.
A Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja em Portugal apresentará o seu relatório no dia 31 de Janeiro de 2023, e nele serão incluídas várias recomendações: a eventual mudança dos prazos previstos na lei para a prescrição dos casos de abuso pode ser uma delas, a par de uma celebração especial de pedido de perdão às vítimas de abuso e de propostas para o acompanhamento psicológico das vítimas, na área da prevenção ou do diagnóstico precoce, entre “muitas outras”, admitiu o coordenador da Comissão, Pedro Strecht.
“As vítimas esperam um pedido de perdão directamente formulado por parte dos próprios abusadores, bem como da hierarquia da Igreja Católica”, afirmou aquele responsável. Nesta linha, a Comissão sugeriu já à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) a materialização deste acto, contactando para tal o arquiteto Siza Vieira tendo em vista a elaboração de um projecto que exprimisse de forma simples e simbólica esta ideia, sendo que o mesmo de imediato se disponibilizou para o executar ‘pro bono’.” Esta proposta foi já entregue aos bispos, que agora a deverão aprovar ou decidir por uma alternativa.
Na conferência de imprensa – a última da Comissão até à divulgação do relatório final –, o pedopsiquiatra fez o ponto de situação do trabalho realizado até agora: há 424 testemunhos validados (entre os quais oito enviados pelas comissões diocesanas de protecção de crianças), que sugerem um “número significativo” de pessoas que abusaram de crianças, entre 1950 e 2022 – mas este número não se pode ainda quantificar; a maior parte das situações está juridicamente prescrita, mas há 17 casos já enviados ao Ministério Público e outros 30 que estão em análise e poderão seguir o mesmo caminho; quanto mais para trás no tempo se recua, mais se verifica que o fenómeno assumiu “proporções verdadeiramente endémicas, atingindo crianças de ambos os sexos, quase todas então católicas e praticantes, com maior proporção de rapazes do que raparigas, de todos os pontos do país e englobando as diversas realidades e grupos sociais”.
A Comissão reconhece, no entanto, que os sectores sociais menos instruídos e mais desfavorecidos, bem como as zonas geográficas mais interiores e desertificadas não estão tão representadas no estudo.
Outra das conclusões do trabalho desenvolvido até agora é que haverá “um número significativo de membros da Igreja Católica referidos como alegados abusadores ao longo do período compreendido entre 1950 e 2022”.
Cruzando esse dado com os que resultam da pesquisa nos arquivos da Igreja, conclui-se que “o problema não só ocorreu, mas que também atingiu uma grande expressividade, repetindo-se alguns padrões que têm de ser evitados no futuro”, acrescentou Pedro Strecht. O que leva a Comissão e o seu coordenador a sublinhar a importância das recomendações finais do relatório para “todas as estruturas da Igreja e da própria sociedade civil que se interessem pelo bem-estar das crianças e adolescentes (como, aliás, já acontece em algumas delas)”.
Até 31 de Outubro, a Comissão receberá ainda testemunhos de vítimas que queiram depor (através do telefone 917 110 000, do endereço electrónico geral@darvozaosilencio.org ou do inquérito disponível na página da Comissão www.darvozaosilencio.org). Depois daquela data, continuará a receber testemunhos que eventualmente apareçam, mas que apenas serão referidos estatisticamente no relatório e já não estudados. Em anexo ao documento final, seguirá a lista de todos os membros da Igreja Católica acusados de abusos e, para o Ministério Público, os nomes de quem ainda esteja vivo.
No final, a Comissão fará também uma estimativa de pessoas potencialmente abusadas, explicou a socióloga Ana Nunes de Almeida. Por exemplo, se uma vítima refere que na sua turma todos os colegas foram abusados, será tomado o universo máximo e mínimo de alunos para poder inferir quantas pessoas poderiam estar naquele caso.
“Coragem pioneira” dos bispos, que elogiam Comissão

O coordenador da Comissão elogiou ainda a “coragem pioneira” dos bispos na criação da Comissão e o respeito do episcopado pela independência do organismo: não houve “qualquer limitação ou entrave” dos bispos ao trabalho da Comissão, o grupo de investigação histórica está a “reforçar a base da informação” com a sua pesquisa nos arquivos diocesanos e de institutos religiosos, e as entrevistas aos bispos e aos superiores religiosos ajudaram a contextualizar vários pormenores.
Aliás, os elogios são recíprocos: nesta terça de manhã, o conselho permanente da CEP, cujo presidente é o bispo José Ornelas (Leiria-Fátima), voltou a exprimir um “pedido de perdão às vítimas”, a par da determinação de “tudo fazer para que, no futuro, tais crimes não se voltem a repetir”, mas acrescentando que “é urgente ver envolvida toda a sociedade” nessa “determinação”. No comunicado divulgado no final da reunião que teve em Fátima, o organismo de coordenação dos bispos manifestou o seu apreço pelo trabalho da Comissão Independente, elogiou o papel da comunicação social “no combate a este crime”, sublinhou a “necessidade de não condenar publicamente pessoas ou instituições, a partir de suspeitas não provadas” e reiterou ainda a vontade de tomar a sério as propostas da Comissão.
No balanço do trabalho feito, os membros da Comissão destacaram a ideia de que “se os crimes prescreveram, o sofrimento das vítimas persiste”. E as práticas de ocultamento e de transferência de presumíveis abusadores de um sítio para outro mostram a necessidade de uma atitude “claramente preventiva”. “Durante muito tempo, houve claramente ocultação desses abusos”, afirmou o juiz conselheiro Álvaro Laborinho Lúcio, referindo-se à necessidade de a Igreja decidir se os abusos devem ser considerados cometidos “na Igreja” (se se impuser a vontade de resolver o problema) ou se eles passam a ser abusos “da Igreja” (se tal vontade não existir).
“A ocultação é inerente aos abusos”, acrescentou o psiquiatra Daniel Sampaio. “Houve ocultação da hierarquia, mas também das famílias das vítimas” ou de outras pessoas como colegas do seminário. “É natural que haja ocultação, mas é importante torná-la menos pesada”, afirmou, pedindo também a atenção dos jornalistas para a vulnerabilidade das vítimas.
Às mesmas vítimas se fica a dever muito do apuramento da verdade, disse Pedro Strecht. “Sabemos também que estas mais de quatro centenas de adultos não vieram sozinhas. Com as suas histórias de vida marcadas por abusos sexuais na infância, trouxeram consigo muitos mais, mas mesmo muito mais que, como eles, viveram dramas idênticos, percebendo que não estavam tão sós como supunham.” E acrescentou: “Pela coragem e força da sua voz, já conhecemos melhor onde, como e quando aconteceu, tal como sabemos de nomes, perfis, e modo habitual de actuação dos alegados abusadores e das respostas que, em redor e dentro da própria Igreja, não existiram ou foram demasiado frágeis para conseguir travar essas pessoas de os repetir, responsabilizando-as e levando-as, no mínimo, a pedir perdão pelos crimes cometidos.”
Recordando que no dia de hoje se completavam 60 anos sobre a abertura do II Concílio do Vaticano e as mudanças que o acontecimento provocou, Strecht concluiu: “Agora que se faz um pouco mais de luz sobre o passado, reforce-se a esperança num renovado futuro.”