
A negação do acesso à habitação é, para as comissões Justiça e Paz do país, particularmente grave “no caso das pessoas sem abrigo que vivem na rua (sem teto), no das pessoas sem abrigo em alojamento temporário (sem casa) e no das pessoas em alojamento temporário partilhado. Foto © Ozias Filho.
É necessário “estabelecer uma relação frutuosa entre habitação (a casa, o alojamento), habitat (o bairro, o lugar) e o “habitar” (o mundo humano e planetário), levando em conta a diversidade de situações e de grupos sociais envolvidos” considera a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) em nota intitulada Uma casa para cada família, sobre a “gravidade da situação atual do nosso país no que ao acesso à habitação diz respeito”.
O documento resulta da reflexão alargada em que participaram, além da CNJP, uma dezena de comissões justiça e paz diocesanas e que contou com a contribuição do geógrafo e antigo (2005-2009) secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades, João Ferrão. O texto pretende “alertar para a necessidade de uma visão completa“ e aprofundada de um “problema cuja complexidade” os dirigentes daquelas instituições “não ignoram”, mas do qual não se querem alhear e por isso mesmo vêm “dar o seu contributo para o diálogo, reflexão e ação em torno desta questão”, mais do que “indicar soluções concretas” para a resolver.
A negação do acesso à habitação é, para as comissões Justiça e Paz do país, particularmente grave “no caso das pessoas sem abrigo que vivem na rua (sem teto), no das pessoas sem abrigo em alojamento temporário (sem casa) e no das pessoas em alojamento temporário partilhado, em alguns casos em condições desumanas de sobrelotação (sobretudo imigrantes, mas também estudantes e outras).” Mas há também outras duas situações que são identificadas como perigosas: “a dependência financeira grave (juros elevados de empréstimos bancários, taxas de esforço não suportáveis pelas famílias); e a “expulsão” direta (despejos; não renovação de contratos de arrendamento), ou indireta (aumento não suportável do valor das rendas), do local de residência atual”.
Para além desta negação do acesso à habitação, “o acesso a habitação digna é negado pela ausência de infraestruturas básicas (saneamento), pelo mau ou péssimo estado de conservação física dos edifícios e pela baixa qualidade da construção (pobreza energética, baixos níveis de conforto térmico)”. Finalmente, outras situações relevam da negação do acesso a uma habitação adequada por “superlotação”, por “desadequação entre as necessidades e/ou capacidades de idosos”, ou ainda por ter dimensões impróprias para permitir, por exemplo, “o trabalho à distância a partir de casa”.
Na relação da habitação com o habitat, as comissões apontam o crescimento das distâncias “entre o local de residência e o local de trabalho/estudo, o que promove uma crescente dissociação entre habitação e lugar, com a consequente perda de espírito e sentimento de pertença ao lugar e o desenraizamento em relação à comunidade local”, concluindo que “o direito ao lugar (por exemplo, como critério urbanístico, de realojamento, etc.) tem um reconhecimento social e político insuficiente”. Nesta perspetiva, o “habitar” (o mundo) permite pensar “a habitação como espaço familiar, o habitat como espaço comunitário e o “habitar” como exercício vital da família humana que corresponde a uma vida humana plena e digna, ao desenvolvimento humano integral”.
Referências fundamentais
Há muitos anos que um documento da CNJP não vinha a público coassinado por tantas comissões diocesanas e resultando de uma reflexão conjunta alargada. O seu título foi recuperado de uma intervenção do Papa Francisco, em 2014: “Já o disse e repito-o: uma casa para cada família. (…) Mas um teto, para que seja um lar, deve ter também uma dimensão comunitária: o bairro, e é precisamente no bairro que se começa a construir esta grande família da humanidade”. E os “princípios que podem” constituir referências “na busca de respostas à crise do acesso à habitação, que atinge hoje entre nós uma inédita gravidade” foram retirados da Doutrina Social da Igreja Católica.
Sobre esses princípios, as comissões Justiça e Paz sublinham que “o direito à habitação é um direito fundamental da pessoa e da família” e que “sem acesso à habitação está comprometida a integral realização da pessoa e não será possível a formação de jovens famílias que enfrentem o também grave problema da queda da natalidade”. Para tornar realidade este direito, “há que respeitar o direito de propriedade privada sem esquecer a função social desta”, ou seja, “o direito de propriedade privada deve facilitar a concretização do direito à habitação do seu titular e sua família, mas facilitar também (e não impedir ou limitar) o exercício do direito à habitação de outras pessoas” através, nomeadamente do “arrendamento a preços justos e não especulativos”.
Mas a estes princípios é ainda necessário juntar “os princípios da solidariedade e da subsidiariedade”, não esperando que “a completa solução do problema” seja dada pela “autonomia do mercado”, ou apenas pela “intervenção do Estado”. Esta intervenção “impõe-se para suprir as imperfeições do mercado, que hoje se revelam notórias, sem a pretensão de o substituir”, mas há que “apoiar de várias formas iniciativas do setor social e cooperativo.”
O documento termina reafirmando que os seus autores pretendem “acima de tudo salientar a necessidade de, face à extrema gravidade do problema, encontrar tais respostas de modo prioritário e urgente, apoiadas no diálogo, na concertação e no estabelecimento de compromissos claros e duradouros.”