Onde esta autora* se permite aventurar, com a audácia dos ignorantes, em variados campos da vida e do saber que não domina, num possível exercício de psico-espiritualidade chinfrim. Arriscando o merecido espalhanço em grande estilo, mas sem por isso dar a jornada por perdida.
A relação entre a vida espiritual e – à falta de melhor termo – a emocional ou psicológica tem sido um tema recorrente de oração e reflexão nos últimos anos. Embora distintas, são duas dimensões da vida interior intimamente ligadas e é importante ter consciência dessa ligação justamente para não as confundir, dado que podemos precisar de acompanhamento numa delas ou ambas. Só que directores espirituais e psicoterapeutas complementam-se, não se substituem. E bater à porta errada pode dar disparate.
Contornando o registo confessional, bastará explicar que as perguntas se foram acumulando e podem resumir-se assim: Eu até me esforço, mas ando qual cão atrás da cauda. Porquê? Conheço-me bem, mas há nós que teimam em não se desatar e empatam. Porquê? Sempre a cair nos mesmos buracos. Porquê? – Começa a cansar, já devias fazer melhor, que frustração. É bem feita, orgulhosa. As minhas estratégias deixaram de funcionar. Porquê? A minha relação com Deus não evolui. Porquê? Não tirava o sono, mas moía.
Estas e outras questões surgirão naturalmente a quem faça um percurso de fé ou de auto-reflexão minimamente consistente e atento à realidade. São um bom sinal e é importante permitir que nos mordam.
Um esquisso de resposta começou a aparecer depois de virar do avesso o que aprendi no meu percurso cristão, mudar gradual, mas radicalmente de método espiritual, e deixar aparecer perguntas novas. Toda essa reflexão levou, inevitavelmente a questionar muita da nossa forma de estar, na Igreja e fora dela.
A proposta para estes textos, que procurarei-mas-não-prometo manter sucintos, é revisitar as questões que todo esse percurso tem suscitado. Resultam de uma dose de reflexão, umas quantas leituras e podcasts, bastantes notas dispersas e pouco legíveis, horas infinitas de conversa paciente e, está bom de ver, muitas sessões de psicoterapia.
E foi preciso andar muito tempo às voltas com a frase que todo o cristão mais ouvirá ao longo da sua vida…
Virar do avesso: Amar o próximo como a si mesmo
“O primeiro [mandamento] é este: ‘Escuta, Israel: O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’. O segundo é este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.”
A frase mais radical e actual de toda a Bíblia. E que, se mal interpretada, tem um enorme potencial para causar grandes estragos.
A cultura cristã é uma cultura de cuidado e de serviço ao outro, e de busca do bem comum e o fundamento dessa atitude estará, entre outras, nesta ideia de amor ao próximo.
No entanto, – e isto terá o seu quê de português –, essa ideia pode facilmente resvalar para um assistencialismo voluntarista, excessivamente focado na satisfação a todo o custo das necessidades alheias e até de negação das próprias. No limite, e sei que caricaturo, levará a uma certa glorificação de uma abnegação que pode ser muito pouco espontânea ou até saudável.
Curioso: esta pseudo-abnegação – que talvez se manifeste de forma diferente nos homens e nas mulheres – terá muito pouco respaldo no que o texto bíblico nos diz sobre Jesus. Muito pouco, não: nenhum. Basta recordar três ou quatro episódios dos Evangelhos para perceber que Jesus se põe, muitas vezes, em primeiro lugar: se precisa de rezar, retira-se para o fazer; se precisa de descansar, expressa-o claramente; se entende dever responder, fá-lo; se entende que os discípulos precisam de ser um tudo nada mais espevitados diz “dai-lhes vós mesmos de comer”; e chora ao saber que Lázaro morreu. Usando uma linguagem actual: reconhece e expressa as suas necessidades, põe limites, e não cria nem habilita dependências. Conhece-se a si próprio. Em síntese: tem consciência de si.
Aliás, se há traço que os Evangelhos acentuam é a profunda consciência que Jesus tem de si e o saber quem é. Aliás, se o propósito do cristianismo é o seguimento de Cristo e uma crescente identificação com a sua figura, chega a ser bizarro que prestemos tão pouca atenção à relação que Jesus tem consigo próprio. Pode ser só conversa fiada, mas esta questão tem, pelo menos, duas implicações.
Primeira: se Jesus não tem consciência de si, a Cruz deixa de fazer sentido, na medida em que passa a ser, na melhor das hipóteses, um desvario místico e, na pior, o resultado das acções de um inconsciente, um acaso das circunstâncias ou um evento pré-determinado. O que nunca poderá ser é o resultado de uma decisão de entrega amorosa livre, consciente e discernida. Então, o fundamento do cristianismo cai por terra.
Segunda: “o amar o próximo como a si mesmo” ganha todo um outro sentido. Vou tentar explicar, apesar de poder ser demasiado óbvio: Jesus parte do princípio de que nos amamos a nós mesmos, porque nos sabemos – como Ele se sabe – incondicionalmente amados por Deus. Sabemo-nos preciosos a seus olhos, chamados pelo nosso nome. Por que razão nos daria este mandamento se suspeitasse por um segundo que nos odiamos a nós mesmos? Nenhuma.
Talvez custe pensar desta forma, mas pode dar-se o caso de Jesus nos ditar isto em parte porque não tem problemas de autoestima. Na medida em que se conhece, tem consciência de quem é, e ao saber-se incondicionalmente amado pelo Pai, Jesus ama-se e aceita-se. De uma forma saudável, note-se. E rir-se-ia se lhe tentássemos explicar o conceito de autoestima.
Olhar para o “amar o próximo” desta forma humaniza-o, retira-lhe a carga normativa que nos habituámos a atribuir-lhe. Não perde um miligrama da sua exigência – antes pelo contrário –, e ganha um dinamismo e uma imprevisibilidade que uma norma nunca terá: amar o próximo volta a ser um processo e não um comando ou uma regra de comportamento. Torna-se, enfim, praticável.
Já menos evidente será o que Jesus não determina, mas deixa implícito: só conseguimos amar o próximo na justa e exacta medida em que nos amamos, nem mais nem menos. Posto de outra forma, a nossa capacidade de amar o próximo é determinada pela nossa capacidade de nos amarmos. Não é uma questão de querer, mas de ser capaz.
O que levanta uma outra pergunta: Amar-nos-emos a sério?
* — Há que assumir que se viu de enfiada Bridgerton, a melhor-pior série da Netflix. Não pode ser tudo sério.
Marta Saraiva é diplomata, exercendo atualmente funções na Missão de Portugal junto do Conselho da Europa.