
A capa do livro Reconstruir o rumor de Deus – Para uma teologia estética da revelação, de Miguel Rodrigues
Reconstruir o rumor de Deus – Para uma teologia estética da revelação é o título do livro da autoria do padre Miguel Rodrigues, da Arquidiocese de Braga, que será apresentado nesta quarta-feira na Igreja Matriz de Vila do Conde, às 21h30. O livro, editado pelo Secretariado Nacional de Liturgia, será apresentado pelo arcebispo de Braga, José Cordeiro, e João Duque, professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, em Braga. A obra corresponde à tese defendida no início do ano pelo seu autor. O prefácio é da autoria do padre Joaquim Félix, que tem dinamizado várias iniciativas no campo da renovação litúrgica – como a construção da Capela Árvore da Vida, por exemplo. É esse texto que a seguir o 7MARGENS reproduz.
“Para mim, a questão que se continua a colocar é saber como vamos reconstruir a catedral.”
(Rui Chafes, Sob a pele, 129)

Do rumorejante habitar
Mais do que sossego, primeiro, sugiro um sobressalto. Saltar por demoras. Isto é, para mergulhar na surpreendente obra com que Miguel Rodrigues nos presenteia. Porque, com ele, somos convocados à suspensão e ao suspense, do pensamento previsível e da chã curiosidade, para, de olhar transfigurado, relermo-nos na sua admirável artesiana textual e epifania imagética. Sem dúvida, este corpus implica-nos. Irá deixar-nos interrogativos e tomados de silente espanto. Para, quem dera, evitarmos a capitulação na ‘heresia’ da indiferença à hospitalidade do diverso, na coragem e delicadeza de encontrar, segundo o convite do Papa Francisco, «os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais, incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente atraentes para os outros» (Evangelii Gaudium, 167).
Por conseguinte, na sua humildade mistagógica, ele nos fará crescer na frescura de páginas tingidas em imagens, por qualificada estética, crepitantes. Imagens que nos deslocam para lugares que ardem sem se consumir, as catedrais. Pois, não será até a ruína a marca edificativa do fogo descido à sua pele e aos seus versos, forros e vasos capilares? E, ainda, piedade do esculpir de ventos e chuvas, como textura do uso exodal (criatural, humano, divino, áptero e alado, nas suas páscoas) e do tempo no lento fruir cósmico? Isto é, o lugar das comparências, no encontro como recíproca hospitalidade, inclusive dos musgos e dos líquenes, das aranhas internas nas suas, quase invisíveis, gelosias? Que fazem as abelhas nas fissuras murais? Será o ninho sinal da casa na casa? Mais do que intensificação pleonástica, acolhe-se a parede aberta, como tarefa, a ajustar ao corpo: o Ruaḥ HaQodesh (santo Espírito) sopra a carne por lume. Poderemos reconhecer tal coabitância?

Aqui se oferecem, a meu modesto ver, ainda em estaleiro de obra, o rumor do processo de aperfeiçoamento do inacabado, na sua carnalidade em transcendência, sem se negar ao efémero, antes, consumando-o. Até que, diga-se, surpreenda a Hora da imensurável deslocação em que, na praça da cidade, o templo se extinga, num incêndio final, por uma outra luz (cf. Ap 21,22). Destas páginas, sentiremos os verbos das heterotopias, no atento mundar a casa-catedral, incarnando-se na poliédrica mediação contemporânea. É o sensível gerúndio do rumorejante habitar. Sim, do habitar nómada, sem temor dos passos da ritual aproximação, nem cerrar as portas da tenda aos peregrinos. É a experiência da exodal transcendência. Com neblinas à flor dessa ‘omni-carne’, e nessa ossatura revestida, será a montanha plana, na orografia da catedral, a escalar ao centro.
Os cuidadores da atenção, repito, beneficiarão deste sobressalto. Uma espécie de atendibilidade, sem grito, que pode calar em nós. Sim, na finíssima fissura no muro da desatenção, ao partir-se a pedra teologal, atendível já debaixo, ou aquém, do som. Constituiria o alicerce, diria, para uma conversão do ouvido que olha. Ali, donde lança a sua hospitalidade, aberta a íris dos tímpanos. Solicita-se, por isso, a conversão ocular, a abertura ao adventício, como escreve João Paulo Costa, no artigo «Entre Advento e Natal, ética da atenção?», para se dar à expectação, ao ressonante e antifonal Ó: «A conversão do olhar e de acolhimento afetivo do Outro que nos chega, que surpreendentemente nos aparece e advém até nós. Atender é tornar-se disponível para o quotidiano e para a sua possível transfiguração. A atenção é uma espera, que «não possuímos, e por isso mesmo esperamos» (Paul Tillich), na surpresa e no espanto de um novum existencial». Entre a espera e o nascimento, irrompe o sinal da sentinela. Ei-lo!
Do rumor da catedral em chamas

A visão auditiva e tátil dos sentidos acesos, entoada nos noturnos da Hora presente, expõe-nos às palavras do Anjo no palimpsesto Livro das revelações últimas: «Vem! Ainda que lentamente, vem! Aproxima-te deste rumor, a pensar. Pergunta. Até que te tornes pura audição, não suspendas o questionamento, nem a dúvida.» E tu poderás responder: «Que se passa? Porque soa o alarme? Procuro o fumo, a sua coluna, e nem chamas vejo. As badaladas dos sinos não dizem o quarteirão. E, todavia, sinto um crepitar longínquo, uma fuga musical na semelhança daquela que urgia Eneias com Anquises e Ascânio, fugindo de Troia, que apaga o rumor, a frequência do divino aproximar-se.» Vígil, o anjo te retorquirá: «Nessa fuga, porque cegam os passos na sombra verde-escura, na máscara de folhas arrancadas? Mas, esconder-te-ás tu, de ti e de passos de passeio, de um encontro por renovar, no atalho de ervas do jardim adentro? Que vislumbras nessa fuga? Que sinal se acende no teu interrogar?».
Miguel Rodrigues ouviu uma pergunta fulgurante, anterior às sirenes de socorro à catedral de Notre-Dame de Paris, atingida por um incêndio, no dia 15 de abril de 2019. Pergunta que, explicite-se, precede todo um outro crepitar, especialmente o póstumo: as acesas discussões sobre o possível colapso da catedral parisiense, as propostas para a sua reconstrução, ou, ainda, o filme «Notre-Dame Brûle» (2022), do realizador Jean-Jacques Annaud. Onde começou o lucernário da sua partida? Por onde se propagaram as suas chamas? Que nos dão elas a ver, a repensar e a sentir? No fundo, que viver proporcionam?
A pergunta de fundo segundo Rui Chafes
![Detalhe numa das portas de bronze (2016), na entrada principal da Basilica Santa Maria degli Angeli e dei Martiri, Roma: [tema il mistero dell’Annunciazione dell’Angelo a Maria Vergine: un Angelo dall’alto (anta sinistra) e Maria in ascolto (anta destra)], do artista Igor Mitoraj Fotografia © Joaquim Félix](https://setemargens.com/wp-content/uploads/2022/07/4-768x1024.jpg)
A expressão de Rui Chafes requer o seu contexto. Ela surge como resposta a uma pergunta de Sara Antónia Matos, nas ‘conversas’ que teve com ele (publicadas, com o título Sob a pele, na parceria entre a Documenta e os Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, em 2015), relacionada com o salto que se está a dar, tanto no âmbito da produção artística, quanto no da curadoria e da museografia. Reconhecendo o processo em curso de «redução e neutralização sistemática das perturbações externas», que dá origem ao modelo autonómico da arte, cujo símbolo mais emblemático é o white cube, numa reiteração da descrença, Rui Chafes pronuncia a tal frase, acima transcrita. Ao que acrescenta, para se explicitar melhor: «Acredito que as obras de arte devem existir no sítio onde fazem sentido. Uma escultura que existe numa igreja, que é um espaço de recolhimento, um espaço separado e, ao mesmo tempo, dentro do mundo, funciona como a voz ou a energia que as pessoas procuram encontrar quando lá entram» (Sob a pele, p.129).

Depois de lamentar o corte de relações entre a arte moderna e a Igreja, não obstante os últimos Papas tentassem reatá-las (nomeadamente Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, quer através de discursos e cartas aos artistas, quer pela via de encontros e, inclusive, encomendas), Rui Chafes conclui: «Dantes, a arte na igreja era uma obrigação; agora é uma escolha, podemos fazer essa escolha. Essa liberdade foi uma conquista dos Românticos e dos Modernos. São campos alargados de possibilidades, não ignoro isso. Mas quando as obras de arte estão no mundo, junto da vida dos seres humanos, no exterior ou na natureza, no sítio para onde foram criadas, têm vida própria e partilham-na connosco, é esse o seu mistério. Ver uma escultura de Tilman Riemensschneider numa catedral, iluminada por velas e acompanhada pelo sussurro das pessoas que rezam no meio do silêncio da perda, não é bem a mesma coisa do que vê-la num museu, iluminada por uma luz fria, num espaço branco e ‘neutro’, sob o olhar entediado do vigilante» (Sob a pele, 130-131).
Que diferença! Seria como visitar Madrid e sentir que tomaram as igrejas e levaram todas as pinturas para os museus do Prado, Reina Sofia e Thyssen-Bornemisza, ou então para a Fundação Lázaro Galdiano. Os enquadramentos até podem cuidar certas proximidades às obras de arte, mas elas, e só elas, serão sempre como que privadas da sua ‘totalidade’ rizomática, num exílio em lugares estrangeiros, longe da sua ubiquidade e cantares, sufocadas na nostalgia. Seria a mesma situação, diz Rui Chafes, «pensar nos frescos de Piero della Francesca». Ao que assoma, numa sensibilidade que lhe é própria: «É por isso que sempre me apaixonei por espaços como as igrejas rupestres de Matera ou o Criptopórtico de Coimbra, onde a pedra e a arquitetura milenar possuem uma potência catalisadora brutal. O meu trabalho sente-se em casa nesses lugares» (Sob a pele, p.131).
Na verdade, não é essa a perceção que se criou, na exposição «Entrate per la porta stretta», em 2011, com as suas 14 obras, inclusive no contexto das igrejas rupestres de Matera, cidade única e inexplicável? Quem não teve oportunidade de visitá-las in loco, pode delas ‘abeirar-se’ pela contemplação das extraordinárias fotografias de Alcino Gonçalves e dos textos do Catálogo. Ou, então, reler o artigo de Isabel Salema «A escultura segundo Pasolini, segundo Jesus Cristo, segundo Rui Chafes» (in Público 7.12.2011), que remete para essa celebração ‘chafeana’, em homenagem, à cidade e à poesia, tanto dos ‘retratos’ de De Chirico, quanto dos poemas de Rainer Maria Rilke, presentes no Livro de Horas, em concreto no Livro da pobreza e da morte.
Relacionada em parte com esta «estreiteza», da porta à escada (cf. escultura ‘Ascensão’ em três peças), recordemos a exposição «Não te faltará a distância», que se realizou na igreja de S. Cristóvão, na Mouraria, em Lisboa, com esculturas concebidas para o lugar, e nele instaladas com o contributo de Paulo Pires do Vale, comissário da exposição. E, para assinalar uma terceira, entre outras possíveis de relevar, façamos o devido ‘memento’ da exposição «Tudo é outra coisa», realizada em 2019, no Convento dos Capuchos da Caparica.
Da arquitetura interna da publicação

Conhecer o contexto alargado da questão de partida é fundamental para compreender a arquitetura interna da obra de Miguel Rodrigues, que agora se publica. Desenho que assume requisitos, antes de mais académicos. De facto, ela foi apresentada, no dia 13 de janeiro de 2022, em sede própria, como tese de 2º grau canónico, no Curso de Doutoramento, com especialização em Teologia Pastoral, na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, no seu Campo de Braga. E beneficiou duma coorientação docente, dos Professores João Manuel Rodrigues Correia Duque e Joaquim Félix de Carvalho, a fim de garantir valências interdisciplinares, em benéfico regime de complementaridades, no aprofundamento da temática.
Tendo presente que todos os elementos são publicados, da introdução à bibliografia final, será importante, para não entrar em prolixidade, valorizar os méritos da sua estruturação, do estilo literário até aos principais contributos alcançados, desde a apertio quaestionis, dignos de menção. Neste sentido, a obra de Miguel Rodrigues, escrita em alto nível literário, pauta-se por uma construção justificada e bem delineada, quer ao nível relacional entre a redação própria e os textos colacionados, de muitos e variados autores, para a devida fundamentação e problematização, quer na progressão interna, discursiva e imagética, do pensamento a deslindar-se, assinalada por um ritmo cartografado em grandes áreas científicas, nos três capítulos.
Por onde começar? Pela fundamentação filosófico-teológica. Assim, no primeiro capítulo, basilar a todos os níveis, ainda que escrito numa decidida economia textual, o autor dedica-se à presença divina no mundo, cuja transparência é discernível na consideração da sua «poiesis», sensível na ‘carne expandida’ até ao sujeito e ao mundo, e naquilo que ele designa «o cândido sublime», a marca distintiva de Deus e do homem, quotidianamente, em coabitação. Em perfeita sintonia, com a dimensão carnal, o capítulo era introduzido pela «Crucifixão», de Francis Bacon, pintada em 1933, que agora passa para o anexo das ilustrações. Uma carne branca, que se expande sobre fundo entrevado, negro de eclipse, até às linhas oblíquas, em sombras alvas sobre o terreno, crucíferas e num possível entroncamento.
Miguel Rodrigues faz depois a passagem para outra complementar base de fundamentação, a antropológico-espiritual. E, sem pessimismos antropológicos nem ceder ao subjetivismo, mas reconhecendo os limites das mediações tradicionais, lança a sua proposição, persuadido da função mediadora das artes: «Propomos a obra de arte como uma expressão preferencial para a reconstrução da catedral, enquanto experiência do humano, na reabilitação e encontro com diversas dimensões a re-nascer, mas também na reconstrução da catedral como lugar por excelência para fruição das obras de arte». Re-nascer que se poderá experienciar na simbologia do invisível, no desejo silente, na sombra da fragilidade e na relação como reconhecimento. Sem fugas ao mundo ou ao quotidiano, claro. Como poderá ser isso? Com obras de arte qualificadas. Não deixa de, por isso, ser provocante a imagem com que, na apresentação da tese, abria este capítulo, precisamente com uma fotografia da igreja da Abadia de S. Galgano, em Siena, captada no filme «Nostalghia» (1983), do realizador Andrey Tarkovsky, ajudado que foi pelo escritor Tonino Guerra no seu ‘Argumento’.
Do manancial das artes em rumor

Depois da complementar fundamentação filosófico-teológica e antropológica-espiritual, a obra de Miguel Rodrigues desemboca numa consequente reflexão sobre o papel das artes enquanto vetor de reconstituição da experiência simbólica do mistério divino e humano, na sociedade e na Igreja, no contexto sociocultural e religioso do mundo contemporâneo, bem caracterizado e ilustrado, inclusive com propositada economia de meios. Capítulo terceiro que é sugestivamente aberto com uma fotografia de Peter Lindbergh, apresentada que foi na exposição «Alberto Giacometti – Peter Lindbergh. Capturar o invisível», no Museu da Misericórdia do Porto, com «L’Homme qui marche» (1961) do escultor suíço. Imagem que faz pensar «na potencialidade que estas obras de arte suscitam na reconstrução da experiência humana crente, incarnando na relação comunitária religiosa e secular» (Miguel Rodrigues).
Que obras de arte, em linguagens contemporâneas, poderiam corresponder a este desafio, o «de indicar o encontro e o reconhecimento da presença divina mediada» (Miguel Rodrigues), nas catedrais? A última parte desta obra poderá constituir uma autêntica surpresa para quem não esteja à la page, neste domínio, com a apresentação de instigantes obras de arte, em sintonia com a sua proposição. É, como não podia deixar de ser, uma seleção, mas que obedece a critérios de fina e atual representatividade. Que, por mérito sobre mérito, é apresentada em ilustrações que, antes, obedeciam a uma organização estética correspondente ao texto; agora, porém, devido a motivos de nova ordem compositiva, fornecidas num apêndice final.
Transfigurados pelo seu esclarecer, a leitura das camadas desta obra tornar-se-á reveladora do indescritível esplendor que, na condição de lugares exemplares de hospitalidade, de diálogo e de fronteira, propiciadores do encontro entre a fé e a cultura, para além do conatural cultivo da atmosfera litúrgica, muitas catedrais continuam a proporcionar através das artes, como veritatis splendor. Catedrais e não só, porque também igrejas, capelas e ermidas, na sua qualidade de espaços ‘dedicados’, assim a instituem.

A cadência das obras de arte apresentadas, na sua hermenêutica e ubiquidade primeira, abre-se como um poemário imagético multissensorial, a evocar o poema transcrito em epígrafe, na conclusão, da autoria de Daniel Faria. Deste modo, desprovido duma hierarquia que não há, Miguel Rodrigues convoca à contemplação das novas criações, concebidas por Massimiliano Valdinoci, no renovado presbitério da catedral de S. Lorenzo, em Alba, Itália; do mobiliário litúrgico concebido, em 1991, por Arcabas e Etienne, na catedral de Saint Malo, em França; do obumbramento do excesso de luz, concebido por Johnson, na catedral de Cristo (antes, designada ‘de Cristal’), na diocese de Orange, em Garden Grove, Califórnia; das novas catedrais de Christ the Light, em Oakland, e de Notre-Dame de Créteil e Évry, em França; dos vitrais na catedral protestante de Zurich, do vitralista Sigmar Polke, e dos de Marc Chagal, na catedrais de Reims (França) e de Chichester (Inglaterra), e, bem assim, nas abadias de Saint-Foy de Conques e Notre-Dame de Ganabobie, do vitralista dominicano Kim En Joong.

Além da seleção de obras de arte contemporânea, patentes em catedrais, Miguel Rodrigues abre o horizonte para outras, a contemplar em igrejas e capelas: a «Ascensão», de Annish Kapoor, apresentada na igreja da Abadia de San Giorgio Maggiore, por ocasião da Bienal de Veneza, na edição de 2011; os «Êxtases», performativamente expostos na capela Saint-Charles, em Avignon, em 2008; a escultura «L´homme qui porte la croix», de Jan Fabre, na catedral de Notre-Dame D’Anvers; a escultura de «Nossa Senhora da Humildade», na capela da Imaculada, em Braga, do escultor norueguês Asbjørn Andresen; o «Miroir», de Édouard Sautai, na capela Notre-Dame des Fleurs; as obras de videoarte de Bill Viola, na catedral de S. Paulo, em Londres.

Como havemos de reconstruir a catedral? Voltamos à questão enunciada por Rui Chafes. A resposta será: com obras de arte que nasçam de uma «re-construção do imaginário religioso», que se inflamarão como «expressões poéticas do divino» (Conclusão, p. 112). Para isso, nos associaremos ao despertar da consciência, enunciado por Miguel Rodrigues: «de que Deus, a partir do seu rumor ténue, não obstante a sua permanência e constância, continuará a ressoar no mistério indizível, convocando-nos à incessante atenção e escuta da sua passagem no nosso quotidiano» (Conclusão, p. 112).
À semelhança de «Ascensão», do escultor Rui Chafes, instalada na igreja de S. Cristóvão (Lisboa), e devidamente proposta por Miguel Rodrigues, muitas outras estarão por nascer. O catálogo Unborn, com obras de Rui Chafes, editado pela Bial, é disso transbordante manancial de possibilidades: «The forbiden sea is calling you», «Labaredas» e as esculturas de «Entrate per la porta stretta», exibidas em Matera; «Perfumes» (vertiginosos e obscuros), «Céus envelhecidos», «Silêncios de…»; «Infernos», «Mundo cego» e «Cinzas de uma voz queimada»; «Douce lourde colére» e «Doce flor da desordem»; «Sonhos lentos» e «Peso do paraíso»; «Sussurros» e «Murmúrios». Ou, entre tantas outras, «Quero tudo de ti», exposta em Schatkammer van St. Pieterskerk, em Leuven (Bélgica). E, enfim, a própria «Catedral», obra de 2015.

Abrimos com Rui Chafes e com ele queremos terminar, citando o seu terceiro aforismo, presente no «Perfume das buganvílias», publicado na sua obra «Entre o céu e a terra», que nos ditará o futuro: «Aprender a aceitar os limites da linguagem, aprender a alargar os limites da ideia. Ser sempre capaz de mais. A Beleza como dever, a coragem como único caminho para o futuro. Suave medo escuro».
Eis porque esta obra, na fundamentação da sua elevada classificação, recolhe o apreço de João Norton de Matos s.j., nos seguintes termos, subscritos pelos demais membros do júri: «Assume o risco de uma reflexão teológica autónoma, apoiada, no entanto, em autores de referência nas várias disciplinas citadas, e ainda a sociologia e a mística, o ensaio e a literatura, a crítica de arte e escritos de artistas. Revela uma significativa capacidade de investigação, sistematização e organização da reflexão».
Braga, 30 de maio de 2022