
O Papa Francisco na celebração do Lava-pés numa prisão. Foto © Vatican Media
Todos nós, em particular os católicos, deveríamos aferir a nossa vida pelo critério supremo da fidelidade ao «seguimento radical da ‘vida em acto’ de Jesus de Nazaré». Todos os conflitos, que, com naturalidade, surgem nas nossas vidas (íntimas e sociais), deveriam ser discernidos a partir deste critério supremo.
Parece-me que tal exigência tem ficado esquecida nas análises e nas tomadas de posição públicas no que diz respeito à questão dos abusos sexuais praticados sobre crianças, assunto na ordem do dia.
A missão profética da vida humana em geral (seja ela cognominada de religiosa, laica, agnóstica, civil, canónica, política, etc.) não deve ser nem calculista, nem oportunista e muito menos prudente. Aliás, os primeiros passos da memória (vívida, ainda fresca) da pessoa de Jesus foram, no «seguimento do evangelho», marcadamente imprudentes. Pedro foi imprudente (Actos 10,9-48): ele ainda se lembrava que Jesus, diante do aparente fracasso da sua missão entre os judeus, também havia decidido ser imprudente e apostar nos estrangeiros que professavam uma religião herética: os odientos samaritanos (cf. João 4,27: «Diálogo com a mulher samaritana», lido na liturgia católica deste domingo).
A missão profética de qualquer ser humano implica essencialmente um compromisso com a inseparável dupla «Justiça-Direitos Humanos». A experiência do Deus bíblico e a prática da Justiça, na tradição profética, são inseparáveis. Conhecer Deus passa por fazer justiça ao pobre e ao desgraçado que, de seu, pouco ou nada possui (Jeremias 22,15-16: «Porventura pensas que és rei por dispores de mais cedro? Acaso o teu pai não comia e bebia, praticando a justiça e a equidade, e tudo lhe corria bem? Julgava a causa do pobre e do humilde, e tudo lhe era favorável! Não é isto conhecer-me? – oráculo do SENHOR.»).
O compromisso com a Justiça e com os Direitos Humanos (prioritariamente relacionados com a ciência económica e a “Ética do Bem Supremo e do Fim Último” – cf. Adela Cortina) tem um carácter liminar: os profetas veterotestamentários ‒ via escolhida por Jesus por oposição à via messiânica ‒ colocaram-se sempre do lado da Justiça, mas de uma Justiça a partir das circunstâncias sociais e a partir da perspectiva do pobre marginalizado, e aí persistiram até que as denúncias chegassem ao centro do poder e o incomodassem (1Rs 18,17). Jesus percebeu isso e foi por essa via: a vida em Deus dispensa o sacerdócio tal como a Igreja Católica de Roma defende em contramão face à Carta aos Hebreus e ao dominicano Fray Marcos, op, (Fe Adulta), que se esforça semana-após-semana a explicá-lo. A nós compete-nos «seguir no encalce de Jesus». Todos nós sabemos de cor e salteado onde essa opção de vida levou Jesus: ao abandono absoluto e, por fim, à mais execrável forma de morte.
Ser cristão é «seguir no encalce de Jesus», profeta que rejeitou a opção messiânica (Cf. C. Escudero Freire).
Creio que o confronto dos argumentos em torno dos abusos sexuais passa ao lado do testemunho que Jesus deixou na memória daqueles que o conheceram. Em entrevista há dias ao jornal Sol, o padre Duarte da Cunha, glosando Joseph Ratzinger, afirma, grosso modo: Foi Deus que decidiu que a hierarquia da Igreja deveria ser assim: feita exclusivamente de homens os quais encarnam a pessoa de Deus… Passado pouco mais de um século após a condenação à morte do Nazareno, a mensagem de Jesus começava a ser helenizada e piramidalmente estruturada, segundo um modelo militar e uma origem divina (=sacral), características a que nem sequer o Judaísmo se alcandorou ao longo da sua existência (Cf. Carta de Clemente de Roma aos cristãos de Corinto, Cap. XXXVII e Cap. XL).
Dito isto, não fiquei rigorosamente nada surpreendido com a conferência de imprensa que os bispos portugueses deram há dias, protagonizada pelo bispo José Ornelas: a Igreja de Roma é (e sempre será) uma estrutura piramidal, gigantesca (universal), militarmente hierarquizada e reverenciada porque de origem divina (Efésios 4,11: “só a alguns é que constituiu como apóstolos…”). A leitura de «Abus sexuels et cléricalisme» de Hervé Legrand (“Études”, 2019/4 Avril, pág. 81-92, ISSN 0014-1941) revela quão inultrapassáveis são os obstáculos rumo à reforma da instituição eclesial romana que o Papa Francisco diz que deseja. Mas o certo é que o próprio H. Legrand é totalmente incapaz de dizer preto-no-branco que Jesus não instituiu um corpo de sacerdotes nem pretendeu fundar uma Igreja, questões ultrapassadas há décadas por teólogos europeus de renome.
O futuro da questão dos abusos sobre crianças creio já estar sob controlo da Igreja (=dos bispos) em Portugal – é a suspeita com que fiquei, daquela conferência de imprensa.
A minha opinião é que a questão dos abusos sexuais, se a alargássemos, poderia ser uma oportunidade para repensar o futuro do cristianismo em Portugal, de tão apergaminhado que ele está (que sempre foi…). Avanço com três tópicos.
Em primeiro lugar, essa questão deveria ser tratada pelos abusados (sem a mediação das comissões diocesanas) em sede dos tribunais não-eclesiásticos (Ministério Público) e por iniciativa das próprias vítimas, as quais, caso fique provada a existência de crime, deverão exigir da Igreja Católica Portuguesa enquanto instituição (na pessoa jurídica da Conferência Episcopal) uma indemnização pecuniária pelos danos causados, indemnização que também suportasse as custas do tratamento psicológico-psiquiátrico (decidido e escolhido em absoluta autonomia pela vítima). Acho inadmissível a ideia de uma indemnização a ser exigida ao abusador, pois todos sabemos que a vítima nunca viria a receber nada, já que os abusadores deixaram tudo para trás a fim de trabalharem pro bono na Igreja.
Em segundo lugar, não sou ingénuo ao ponto de pensar que, caso a organização eclesial dos católicos (ou seja, as comunidades católicas ditas igrejas, paróquias, movimentos, conventos, capelanias, etc.) se regesse pelo critério supremo do «seguimento radical da ‘vida em acto’ de Jesus de Nazaré» poria fim de um dia para o outro aos casos de abuso sexual sobre crianças. Creio, contudo, que esta vergonha humilhante que agora assaltou a praça pública (um dia será inevitável que se fale da outra face da moeda: a prática sexual das mulheres e dos homens que fizeram votos de castidade…) seria uma oportunidade para credibilizar, e muito, a condição crente católica em Portugal caso a Justiça Económica e os Direitos Humanos passassem a ocupar o centro da espiritualidade católica portuguesa em vez de algumas espiritualidades descafeinadas, desprovidas de qualquer solidez teológica, como é o caso da Jornada Mundial da Juventude.
Se fôssemos capazes de tal, poderíamos iluminar o espírito de todos os cristãos (todos mesmo…) com a força do profetismo do Nazareno (Mateus 11,2-6) ao ponto de ferir publicamente de forma determinante a tentação pelo prestígio, pela vaidade, pelo luxo dos eclesiásticos que se passeiam na praça pública (ainda novos, mas já poderosos), enquanto a seu lado caminha um povo apesar de tudo ainda crente, humilde, mas mal agasalhado e que em casa passa dificuldades económicas (um pequeno exemplo, entre muitos outros, é dado pelo contratestemunho da Universidade Católica Portuguesa; cf. Teresa Vasconcelos no jornal 7 MARGENS).
Por último. Mais uma vez, e quanto a este monstruoso crime eclesiástico, Jesus é o grande ausente: ninguém fala do Seu evangelho (“Completou-se o tempo”; Marcos 1,15). Inacreditavelmente, ele acaba sempre fora dos muros da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana… quando na verdade, Ele é a resposta: a eucaristia que Jesus fez, aconteceu fora dos muros da igreja do seu tempo! Isso ‒ essa eucaristia ‒ deveria dizer-nos muito, mas parece que não é para aqui chamada.
«Por isso, também Jesus (…) padeceu fora das portas de Jerusalém, do lado de fora da Cidade Santa. Saiamos, então, ao seu encontro fora do acampamento, suportando a sua humilhação, porque não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a futura…» (Hebreus 13,12-14)
Os noticiários andam entupidos de ‘Papa para aqui’, ‘Papa para acolá’, ‘bispos para aqui’, ‘bispos para acolá’, ‘clericalismo para aqui’, ‘clericalismo para acolá’… quando a questão das questões é: de que estão os leigos à espera para empunharem, aos domingos, a bandeira da justiça, dos direitos humanos e da partilha eucarística de bens com os que pouco ou nada têm de seu? A questão das questões é: alguém sabe por onde anda o Nazareno aos domingos?
Garanto-vos que não vai à missa… Talvez fique à porta de mão estendida. Ou, então, deixou-se ficar no barraco, entanguido de frio com um naco de pão ressequido e um pacote de vinho como companhia.
“Completou-se o tempo”.
Saiamos fora, também.
Paulo Bateira é médico aposentado e reside no Porto