Antecipar a Igreja do futuro é assumir uma prática de Comunidade Eclesial de Base, no apelo a uma igreja doméstica, na revisão de vida, na solidariedade com pobres e excluídos/as, na recusa do clericalismo e na prática igualitária entre homens e mulheres. Esta é a proposta do documento sinodal da Comunidade de Acolhimento João XXIII, de Coimbra, em resposta à maior auscultação alguma vez feita à escala planetária, lançada pelo Papa Francisco, para preparar a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023. Esse coro imenso de vozes não pode ser silenciado, reduzido, esquecido, maltratado. O Espírito sopra onde quer e os contributos dos grupos que se formaram para ouvir o que o Espírito lhes quis dizer são o fruto maduro da sinodalidade. O 7MARGENS publica alguns desses contributos, estando aberto a considerar a publicação de outros que queiram enviar-nos.

Celebração da Comunidade João XXIII: “Este apelo de Francisco vai inequivocamente no sentido de regressarmos à radicalidade da experiência da partilha fraterna de vida, posta em prática pelas comunidades cristãs dos primeiros dois séculos”. Foto © Raimundo Mendes da Silva, cedida pelo autor
- Chamados à ousadia de ser Igreja
Enquanto comunidade eclesial, sentimo-nos profundamente interpelados pela convocatória de Francisco para que pensemos a Igreja que queremos ser, capaz de corresponder aos anseios e aos desafios profundos do nosso tempo sob o impulso contínuo do Espírito.
Entendemos a sinodalidade como “o específico modus vivendi et operandi da Igreja” (Documento Preparatório, 10 – passará a citar-se como DP), ou seja, como “um processo eclesial participativo e inclusivo de cada um e particularmente dos que se encontram à margem” (DP, 2).
Conforta-nos a noção de que “[o] objetivo do Sínodo não consiste em produzir documentos, mas em ‘fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer a esperança, estimular confiança, faixar feridas, entrançar relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos’” (DP, 32). Está o povo de Deus, no seu todo, chamado a encontrar não apenas “novas linguagens da fé e renovados percursos”, mas, mais que isso, a “voltar a fundar o caminho da vida cristã eclesial” (DP, 7) e a “imaginar um futuro diferente para a Igreja e para as suas instituições” (DP, 9).
Para nós, este apelo de Francisco vai inequivocamente no sentido de regressarmos à radicalidade da experiência da partilha fraterna de vida, posta em prática pelas comunidades cristãs dos primeiros dois séculos, e de assumirmos essa radicalidade como o alicerce do “futuro diferente para a Igreja”.
- Somos Igreja assim
A Comunidade de Acolhimento Cristão João XXIII nasceu da busca de gente com histórias pessoais muito diferenciadas por um espaço de vida cristã, incluindo a celebração da fé, cuja marca essencial fosse sempre a imitação da vida de Jesus para lá das arrumações administrativas ou dos códigos disciplinares. Alguns de nós cruzaram- se nos caminhos da antiga JEC [Juventude Escolar Católica], JUC [Juventude Universitária Católica] e MCE [Movimento Católico de Estudantes], outros/as não. Alguns ficaram ligados à Universidade, outros/as não. Alguns casaram e tiveram filhos que quiseram educar na Fé́ que é a sua, outros/as não. Alguns partiram entretanto para o regaço do Pai e a celebração das suas vidas estreitou a nossa vida de comunidade.
Uma comunidade como a nossa sai fora do âmbito da paróquia clássica e dos movimentos de apostolado. Enquanto comunidade de partilha de vida e de confronto dessa vida com o Evangelho, a nossa inspiração mais próxima é a das Comunidades Eclesiais de Base.
Aí encontramos características em que reconhecemos o que deve ser a forma de o povo crente se organizar: a) um grupo eclesial de crentes reduzido para facilitar as relações interpessoais profundas e uma comunicação dinâmica; b) que mantém uma atitude crítica e dialogante na Igreja e suas instituições; c) que celebra fraternalmente a fé, a esperança e o amor num clima festivo e participativo, dando o protagonismo à comunidade; d) que exerce corresponsavelmente os diferentes ministérios e carismas, livremente concedidos pelo Espírito, superando as rígidas oposições entre clero e leigos, Igreja docente e discente, hierarquia e povo; e) que faz uma opção incondicional pelos pobres; f) que está presente na sociedade, contribuindo para a sua transformação através de um compromisso sócio-politico plural, libertador de toda a comunidade mas também de cada um dos seus membros; f) que busca uma articulação teológica entre a utopia histórica de uma sociedade igualitária e a esperança escatológica.
Em tudo isto há afinal um retomar do espírito e vivência das primeiras comunidades de seguidores da vida de Jesus. Comunidades como as de Jerusalém, de Corinto, de Antioquia e todas as que se seguiram na história e que procuraram retornar ao espírito evangélico de pobreza e fraternidade da Igreja primitiva e praticar a denúncia evangélica da hierarquização das estruturas eclesiásticas, estimulando no seu seio a participação igualitária de todos/as.
Ao inscrever-se neste modo de ser Igreja, a Comunidade de Acolhimento Cristão João XXIII assume-se como uma experiência da eclesiologia de comunhão (comunitária, participativa e igualitária) que a [Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Igreja] Lumen Gentium acolhe como desafio para o nosso tempo. Esta eclesiologia de comunhão foi concretizada no documento de Puebla da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, na centralidade conferida às Comunidades Eclesiais de Base que “criam maior inter-relacionamento pessoal, aceitação da Palavra de Deus, revisão de vida e reflexão sobre a realidade à luz do Evangelho e acentuam o compromisso com a família, o trabalho, o bairro e a comunidade local” (Puebla, 629).

- Antecipar agora a Igreja do futuro
Mais do que reflexões conceptuais ou doutrinárias, o nosso contributo para o caminho sinodal da Igreja é a nossa prática de Comunidade Eclesial de Base. Na resposta às exigências e as dificuldades que o tempo presente coloca ao movimento cristão, a Comunidade de Acolhimento Cristão João XXIII procura trazer de volta o sentido profundo da partilha de vida que marcou as comunidades de imitação e seguimento de Jesus ao longo do tempo. Sublinhamos quatro elementos desta nossa experiência como fragmentos dessa imaginação da Igreja do futuro que Francisco coloca como objetivo deste sínodo:
- a) Assumimos por inteiro o chamamento a uma igreja doméstica ou igreja de casa. Celebramos a nossa fé e as nossas vidas nas casas dos membros da comunidade, de forma rotativa, cabendo a esses membros em concreto a preparação da celebração, designadamente nas pistas para a partilha dos ecos da palavra nas vidas de cada um/a. Essa escolha ganhou novos contornos com os constrangimentos de contacto social resultantes da pandemia: as nossas celebrações passaram a ser feitas em videoconferência. Não encaramos este recurso aos mecanismos de reunião à distância como definitivo, mas ele permitiu um outro alcance da comunidade, por passar a agregar pessoas residentes em diferentes locais do país, decorrendo a consagração e a comunhão na casa dos responsáveis pela preparação semanal.
- b) Assumimos como núcleo da nossa prática de comunidade eclesial a revisão de vida. Ver os sinais dos tempos que se manifestam no quotidiano de cada um/a de nós, julgar a nossa realidade de cada momento à luz dos critérios do Evangelho e do testemunho de vida de Jesus, agir individual e comunitariamente de forma plenamente fraterna e solidária com os/as pobres, discriminados/as e excluídos/as.
- c) Recusamos o clericalismo como expressão de uma cultura de poder totalmente contrária à liberdade e à responsabilidade de todos/as os/as filhos/as de Deus. Na partilha da vida e da fé, na prática da oração, na preparação das celebrações da eucaristia, membros leigos e membros ordenados somos todos um só em Cristo.
- d) A igualdade entre homens e mulheres nas responsabilidades e nos carismas da comunidade é, para nós, muito mais que um princípio, é uma prática basilar, que afasta construções teológicas ou eclesiais que naturalizam a discriminação das mulheres, perpetrada durante séculos na Igreja.
- Viver a igreja como fraternidade
Concluímos reafirmando a nossa vontade de concretizar cada vez mais a fraternidade e a sinodalidade que são a própria igreja em que todas e todos sejam “irmãs e irmãos iguais em dignidade, diferentes nas funções e solidariamente responsáveis”.
Coimbra, 26 de março de 2022
Comunidade de Acolhimento Cristão João XXIII