Terça-feira passada, dia 10, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa organizou uma conferência sobre o tema dos abusos, conforme o 7MARGENS noticiou. Pela importância do tema, da iniciativa e das intervenções nela realizadas, publicamos algumas das intervenções ali realizadas, começando pelas duas intervenções do coordenador, que se reproduzem a seguir.

Pedro Strecht. Foto: Direitos reservados
Grande parte do interesse e também do conhecimento sobre questões do desenvolvimento emocional da criança e do adolescente dizem respeito a uma realidade muito recente, com pouco mais de meia dúzia de décadas. De facto, em todas as áreas, incluindo a jurídica, a de protecção social, a educativa e a psicossocial, falamos de uma luz que se abriu de forma nova, atenta e, felizmente, cada vez mais exigente no que toca ao que Françoise Dolto designou como o “verdadeiro interesse da criança”.
Não espanta por isso que, durante tanto tempo todos tenhamos assistido a uma neutralidade ou apatia, quando não desinteresse e até com frequência negação da existência de problemas graves na infância e adolescência, como os maus-tratos e todas as formas de abuso, num certo modo comum de estar e de ser, individual e social, que descuidava ainda o impacto ou o dano emocional não apenas causado no momento de um trauma, mas sim quase sempre ao longo da vida enquanto grave experiência de “não integração” psíquica ou até de “não integração” somato-psíquica, como destacou Donald Winnicott: sofrer na alma e no corpo e, sobretudo, sofrer sem qualquer amparo do outro que deles deveria cuidar, era a vivência comum da vida de muitos dos mais novos.
De verdade, o conceito mais reconhecido de infância é tão recente quanto a Carta Universal dos seus Direitos, apenas reiterada por vários países do mundo em 1991. Voltando a citar Llloyd de Mause, sim, “a história da infância é mesmo um longo pesadelo do qual agora ainda estamos a acabar de acordar”.
Felizmente que, de forma irreversível, os tempos são outros. Transitamos do conceito de “World of Defendeless” como Eihlander descreveu a propósito das observações realizadas em crianças abandonadas a si mesmo nos orfanatos da Roménia no final dos anos 80, para conceitos de um certo “state of mind” caracterizado pela importância de um “being helpful” e/ou “staying careful”. A própria ideia de “resiliência” que Boris Cyrulnik introduziu, ele mesmo um judeu resgatado no limite dos campos de concentração nazis, e que psiquicamente evoluiu de um pré-adolescente analfabeto funcional a reputado pedopsiquiatra num brilhante modelo do que W.R.Bion designou pela (quase) arte de “going on being”, é hoje reportada muito mais ao conceito interno da mente do que à capacidade de resistência a factores externos traumáticos ou de stress emocional que se esperam já controlados num mundo dito evoluído.
Na área da saúde mental em Portugal, que aliás já pelo terceiro triénio consecutivo faz parte das prioridades do Plano Nacional de Saúde, o mesmo acontece com natural ênfase nos mais novos. Ainda bem. Temos com certeza muito menos crianças do que há uns anos, a taxa de natalidade ainda não parou de baixar de forma drástica, a noção de família sofreu uma evolução radical e há quem a critique em vez de nisso ver aspectos positivos; mas existem cada vez mais pais atentos e empenhados, uma escola que pede agora o 12º ano como escolaridade mínima obrigatória, uma baixíssima taxa de mortalidade infantil, mais jovens a praticar desporto, uma justiça que protege melhor os mais pequenos, entre tantos e tão bons outros exemplos. A realidade é mesmo outra, nova e, sabemo-lo bem, assim vai ser cada vez mais de forma rápida e diferente. Todos temos que evoluir em conceitos individuais e sociais de bem-estar e felicidade ou, pelo contrário, de perpetuar o tal “mandato transgeracional” de dor e sofrimento que Serge Lebovici referia.
O impacto do trauma

De facto, sabemos inequivocamente e pelo menos desde John Bolwby, o peso das boas experiências emocionais precoces e da qualidade de ligação/vinculação com o outro que representa uma base segura para que, desde o primeiro ano de vida, a criança se possa conhecer progressivamente melhor a si mesma e ao mundo envolvente. Cuidamos e valorizamos relações humanas em “sintonia afectiva” como definiu Stern, como modelo de desenvolvimento emocional e cognitivo. Conhecemos a importância de “touchpoints”, conceito de Brazelton, dentro do crescimento global dos mais novos e, sobretudo isso, não ignoramos mais o impacto das situações descritas como de “trauma” durante a infância e adolescência e o seu inequívoco impacto futuro para cada qual, a começar na fragilidade da auto imagem (psíquica e corporal), prosseguindo pelas dificuldades na relação com o grupo de pares, na distorção do contacto com os adultos, na quebra da prestação escolar e académica, na forma distorcida de relação afectiva e sexual com o outro.
Olhamos para trás e vemos como, afinal, Ferenczi tinha razão quando falava do impacto do trauma (ligando-o, no caso, aos abusos sexuais de crianças) e definia estados de “sideração psíquica”, tal como estava certa B. Dockar-Drysdale quando, referindo-se a crianças vítimas do mesmo tipo de situação, apresentava a noção de “frozen children”: afinal, vidas suspensas, de “crianças sem sombra” no meu próprio conceito, todas aquelas que, após essas circunstâncias, vivem o escuro da noite de forma sempre presente na continuidade dos seus baços, tristes e amedrontados dias.
Vidas emocionalmente suspensas, enredadas numa “dor aprisionada” (Sidney Clarck) de uma “dupla privação”, como tão bem descreveu Rolene Suzr: aquela que é provocada pelo trauma em si e a outra que se lhe junta e tem origem na própria defesa erguida como um muro intransponível, tornando essa parte da vida psíquica impenetrável e intocável, graças ao peso de forças de coação interna em que predominam os sentimentos de medo, vergonha e culpa. E como sair dela se o que então predomina é o que James Garbarino definiu como um pensamento modelado por um peso “terminal”, estado de “não vida” pautado pela sensação de “helpless” e “hopeless”?
É nesses momentos que, colocando-nos no papel dos mais novos (o movimento empático para com eles é uma competência psíquica com pouco mais de 10 mil a 15 mil anos), podemos afirmar com segurança que, como no título de um poema do cardeal Tolentino, finalmente agora “a noite abriu meus olhos”.
A bom tempo, quis a Conferência Episcopal Portuguesa abrir seus e nossos olhos para este problema que é da Igreja tanto como ainda muito mais da própria sociedade civil, convidando esta Comissão a formar-se e a iniciar um estudo que torne claro o problema dos abusos sexuais no seu seio e, sobre isso, se faça dia ou outros dias: dias novos, abertos e fraternos, mais e melhores, para os tempos que hão-de vir. Por isso espero, como médico pedopsiquiatra e coordenador da Comissão Independente, que o estudo que temos vindo a fazer, e que toda a possibilidade de abertura e de discussão do tema tanto na Igreja como na sociedade civil, de que este encontro será um inesquecível marco em Portugal, nos traga a mais forte possibilidade de conhecer o passado e abraçar o futuro, dando a todos os milhares de crianças e adolescentes que em Portugal foram vítimas destes crimes ao longo de décadas, uma nova e renovada esperança quanto ao seu próprio sentido de vida, bem como à integração psíquica possível de tudo quanto sofreram e que nunca, nunca o tempo apagará e nada nem ninguém reparará em definitivo. Porque, como o mesmo poema bem recorda, por vezes “o amor é uma noite a que se chega só”.
Silêncios que dizem tudo

[…] Afirmamos a nossa irredutível vontade de que este estudo, limitado ao corrente ano de 2022, tenha o condão de abrir portas que agora já serão impossíveis de voltar a encerrar e que, após conhecidas, caracterizadas e aceites as feridas nunca antes reveladas, ele mesmo possa ser o rastilho para mais e melhor conhecimento sobre o mundo da infância e da adolescência, bem como da necessidade de uma melhor protecção futura de uma população de crianças e adolescentes que é sempre psiquicamente e fisicamente indefesa perante o adulto em quem confia e se em proximidade se entrega, e de quem não pode nem consegue defender-se sozinha.
Aliás, para isso faltou durante décadas uma eficaz protecção social, uma escola integradora e atenta, uma justiça capaz de produzir leis eficazes e de agir rapidamente em defesa dos direitos dos mais novos, uma ideia forte de saúde mental aceite pela sociedade civil em que a noção de infância fosse reconhecida como pedra fundadora do bem-estar individual e social dos futuros adultos de amanhã.
Felizmente que em bom tempo quis a Igreja Católica portuguesa dar um exemplo ímpar com a abertura e o reconhecimento da existência no seu seio deste drama dos abusos sexuais de menores, revelando ausência de medo em conhecer o que se passou com todos os que lhe foram, são e serão sempre mais próximos, ousando ainda desde o primeiro momento afirmar a sua total disponibilidade, com o respeito por questões tão delicadas do próprio direito canónico, para a abertura dos seus arquivos secretos a uma reputada equipa de Historiadores e Arquivistas que a CI lhe propôs e foi plenamente aceitada – equipa essa que já está a trabalhar no terreno e é liderada pelo Prof. Dr. Francisco Azevedo Mendes, tudo decorrendo num cenário sem precedentes da existência secular da própria Igreja.
Sem esta acção, com moldes já comumente aceites pela CEP e pela CI que assim firmaram este compromisso, o estudo a que nos propomos ficaria sempre incompleto e, por isso mesmo, truncado de um dos seus principais objectivos: o conhecimento profundo da verdade histórica do passado, que permita olhar de forma diferente o futuro.
E assim, esta Comissão leva quatro meses de duro trabalho, de confronto diário com a verdade de testemunhos feitos de dor e de silêncio, de análise científica de dados recolhidos junto de diversas instituições e associações tanto da Igreja quanto da sociedade civil, procurando chegar acima de tudo às pessoas que, como é habitual, calaram e assim se viram esquecidas de partes de si mesmas, de uma saudável relação com o outro, com a sociedade e com o mundo num sofrimento oculto para todos.
É para as milhares de vítimas que já sabemos existirem e para todas mais cuja existência não é difícil de imaginar, que vai diariamente o esforço profissional desta equipa, num movimento que a todos apelamos não esqueçam de poder abraçar através da capacidade sincera de ajuda e da restituição de uma esperança que algures foi deixada para trás. Decerto que, também aqui, os portugueses contam com o apelo do Senhor Presidente da República e, por entre todos eles, mais ainda aqueles que o Santo Padre, o Papa Francisco, tão bem definiu como existindo e vivendo nas margens.
[…] Há, sempre houve, muitas palavras que não dizem nada e se o dizem, são vagas, vácuas e por isso mesmo efémeras. Não tocam, não ficam, não mudam. E há, sempre houve, silêncios que dizem tudo, ou quase tudo. Então, que interessa pô-los em palavras, contá-los em números, situá-los num espaço ou num tempo longínquo e, de novo, por tantos considerado inútil?
Talvez porque assim cheguemos a conseguir dar-lhes corpo, nome, saber do seu rosto e, por fim, sobre a definição possível de uma figura concreta, conhecer um olhar que ainda nos olha e, parado, espera um pouco que é tanto: a reparação clara de uma dignidade perdida no passado e assim um pouco mais de um certo sopro futuro de centralidade da vida.
Fundação Calouste Gulbenkian, 10 de Maio de 2022
Pedro Strecht é médico pedopsiquiatra e coordenador da Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa; subtítulos da responsabilidade do 7MARGENS.