
“Não pode haver uma apropriação de algo tão sério como a vivência comunitária da fé em nome de ideologias e devaneios”. Foto: Paróquia de Nossa Senhora da Hora, Matosinhos. Sínodo. © Direitos Reservados.
A publicação do relatório do processo sinodal português pela Conferência Episcopal Portuguesa tem sido o mote para várias cartas, petições e manifestos. Isso em si mesmo, não tem mal nenhum, poderá ser muitíssimo enriquecedor e desafiante. O que choca é que apenas seja possível um debate por oposição ou adesão, que é o que se tem verificado. Dito de outro modo, parece haver uma grande dificuldade em ter discussões francas sem a pretensão de aniquilar o interlocutor.
Um dos indícios da pobreza do debate a que se tem assistido é a verificação de que este, tal como tantos outros, se constrói a partir de uma determinada linha ideológica, e não o inverso. Ou seja, a partir da reflexão alcançada, construir-se uma estrutura de pensamento.
O foco em discutir seriamente as questões apresentadas neste sínodo foi desviado para uma guerrilha em que se tenta fazer valer uma determinada linha doutrinária e ideológica.
Assusta assistir à apropriação política e ideológica da vida da Igreja. Sejamos claros: não existe nada de mal na definição de uma doutrina que oriente a vida da Igreja. O problema está em subordinar a vida da Igreja a uma doutrina, seja ela qual for. Não pode haver uma apropriação de algo tão sério como a vivência comunitária da fé em nome de ideologias e devaneios. Não pode o sínodo ser declaração da abertura de uma guerra pelo controlo da Igreja.
Claro que sempre haverá quem extrapole este raciocínio considerando-o uma relativização absoluta da importância das ideias e da doutrina. Não se pretende aqui fazer qualquer tipo de apologia de um relativismo absoluto que diz tudo aceitar como legítimo, mas que, na realidade, não se digna sequer tomar o tempo de ver e ouvir para, aí sim, poder aceitar livremente.
Aquilo a que assistimos são polos opostos que reagem um ao outro, tentando preservar uma zona de sobrevivência vital, ainda que não tenha bases sequer para saber quem é ou deseja ser. É maior a preocupação na classificação e acantonamento dos outros que não estão alinhados connosco, do que a força e humildade para os ouvir individualmente, livre de conceitos prévios e encomendados com recurso a argumentos de autoridade.
Assistimos a um mimetismo de discurso, argumentos e temas para os quais não se encontram nem grandes premissas de pensamento, nem grandes líderes. Há uma nebulosidade em que se segue um grupo que nos dá uma sensação de segurança e pertença, mas em relação ao qual, verdadeiramente, parece não haver perceção de horizonte. Mais vale ter uma opinião, desbobinada e irrefletida, do que não ter, sentir-se parte de alguma coisa do que ser integro.
No discurso e na vida da Igreja, parece haver apenas dois sectores: os conservadores e os progressistas.
Os conservadores, num instinto de preservação, procuram recuperar uma doutrina firme e intransigente, que norteie a procura e regule a prática da vida. Existe uma linha, uma verdade, um rumo, uma forma. As respostas são fechadas. O motor de toda a sua conduta é preservar a Igreja da perdição dos tempos e crise de valores. O foco está na conservação e proteção de uma imagem de instituição que serve de abrigo para os grandes valores em crise no nosso tempo. A Igreja é, por um lado, instrumentalizada, na medida em que é transformada numa instituição que serve para veicular valores e bandeiras. Por outro lado, e nessa mesma medida, absolutizada, sendo a sua proteção e imaculidade vistos como fins em si mesmos, como se o ataque representasse uma ameaça a todos os outros valores.
Os progressistas, aterrados com o perigo de verem desaparecer a Igreja e presos em sentimentos de culpa e remorsos pelos pecados passados e presentes desta, dispersam em alinhamento com a voz dominante capaz de angariar mais votos e trazer mais gente à Igreja. Não há nada certo e imutável. As energias e preocupação estão focados nos males a corrigir. Qualquer perspetiva ténue de bem na Igreja é relativizada e vista como a contribuição que esta deve ao mundo, como se existisse uma dívida por saldar pela Inquisição praticada na Idade Média.
Nuns paira uma superioridade moral e de classe, noutros uma culpa patológica e masoquista. Tudo está nos antípodas e vêem-se como inimigos a abater, para preservação própria de cada um. Mas o que é mesmo curioso é que, na verdade, ambos sofrem de dois males comuns: a superioridade moral e a insegurança.
Se é verdade que mais frequentemente se nota na linha apelidada de “conservadora” uma postura de altivez em relação aos demais, no que à moral respeita, esse fenómeno não se verifica menos nos outros, ditos “progressistas”. Por um lado, a insegurança em relação ao mundo com as complexidades de hoje encaminha as pessoas para um conservadorismo no qual encontrem respostas prontas para as suas inquietações. Alcançadas as respostas para as grandes questões da vida e as regras de conduta para as mais diversas circunstâncias, cresce o sentimento de uma superioridade em relação aos demais, que se inquietam, tropeçam e procuram.
Por outro lado, a insegurança em relação à possibilidade de se ver esmagado por uma maioria que quer revolucionar pelo relativismo descomprometido no qual cada um seja o que bem lhe apetece sem fazer ruído, encaminha as pessoas para um progressismo sem rumo, cujo último objetivo é, em última instância, ser popular. A abertura e aceitação que colhe nos “indecisos” dá-lhe a sensação de se tornar numa elite intelectual que vai virar do avesso a vida da Igreja para a fazer angariar seguidores.
Note-se um facto importante: nas várias respostas, petições e cartas não surge o sentido de compromisso e empenho da parte dos leigos. Quer-se uma descentralização do poder clerical, mas não surgem grandes manifestações de compromisso e empenho com a vida da Igreja. Ou, pelo menos, estas ficam apenas no mundo das ideias e dos sentimentos. No sentido oposto, remete-se tudo para o poder clerical, numa postura de conforto e comodismo igualmente descomprometidos.
Talvez o que faça mesmo falta seja dialogar com a seriedade que os temas merecem e sem os rótulos e posições de princípio ideológicas. Afinal, será que alguém se lembra de perguntar o que é Jesus instituiu e como e que isso se transpõe. Mais: será que houve a humildade de se recolher e procurar escutá-Lo? Não aprisionemos o sopro do Espírito Santo, nem lhe atribuamos donos.
Sofia Távora é jurista e voluntária no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa do Hospital Dona Estefânia.