A empresa, a sua organização e alguns contágios

ContrEconomia (3) – A castidade da consultoria

| 4 Jun 2023

Com o passar do milénio, passámos rapidamente do humanismo da imperfeição para o da busca da felicidade e do sucesso. A fragilidade, que marcava a luta das gerações anteriores contra o sofrimento, chegou à grande empresa e ultrapassou um limiar crítico. Os consultores chegaram às empresas, após os empresários e os gestores. A crise do universo moral tornou-se uma crise do universo produtivo. Depois de O Mercado e o Templo, o 7MARGENS publica agora uma nova e importante série de textos de Luigino Bruni, coordenador da iniciativa A Economia de Francisco. Nestes textos, o investigador fala sobre a empresa e a sua organização, e as interpelações que a situação contemporânea coloca à consciência religiosa e cristã. 

 

“Acima de tudo, estou assustado com o sofrimento que avança no mundo como um rolo compressor.
Pouco me importo com a culpa, pouco com a justiça, pouco com a verdade, pouco com a beleza:
preocupo-me com o sofrimento.”
Sergio Quinzio, Uma tentativa de superar o abismo

 

A saída de cena do consultor no final do processo faz parte da sua excelência. No livro de Daniel há indicações preciosas sobre como interpretar as visões dos outros sem se tornarem seus mestres.

As crises ambientais, financeiras e militares deste início de milénio correm o risco de nos levar a subestimar ou esquecer uma tripla crise não menos grave: da fé, das grandes narrativas e do gerar. Um mundo que não espera mais o paraíso, sem narrativas coletivas e sem filhos, já não encontra sentido suficiente para viver e, portanto, para trabalhar. Por que devo trabalhar se não espero mais uma terra prometida (acima ou abaixo do céu), se não tenho ninguém que espera do meu trabalho um presente e futuro melhores? O mundo do trabalho nunca criou ou esgotou o sentido do trabalho. Ontem foram a família, as ideologias, a religião que deram ao trabalho o seu primeiro sentido. A fábrica, os campos ou o escritório reforçavam aquele sentido que, porém, vinha de fora. O trabalho é grande, mas para ser visto na sua grandeza deve ser visto de fora, de uma porta que se abre para o exterior; sem esse espaço amplo, a sala de trabalho é demasiado apertada, o seu teto muito baixo para que aquele animal infinitamente doente que é o Homo sapiens consiga permanecer lá por muito tempo sem asfixiar.

“O trabalho é grande, mas para ser visto na sua grandeza deve ser visto de fora”. Barreiro, 2012.  Foto © António José Paulino

“O trabalho é grande, mas para ser visto na sua grandeza deve ser visto de fora”. Barreiro, 2012.  Foto © António José Paulino.

 

A Constituição italiana baseia-se no trabalho porque o trabalho foi fundado noutra coisa. A economia regista um crescente desconforto do trabalho: mas quando compreenderemos que este mal-estar laboral é, antes de tudo, mal-estar existencial gerado por esta tripla carência? «Para onde foi Deus?… Eu digo! Matámo-lo, – tu e eu! Somos todos os seus assassinos! … Não estamos vagueando num nada infinito?” (F. Nietzsche A Gaia Ciência). Aquele louco grita a morte de Deus no “mercado”, porque “ali mesmo se encontravam muitos dos que não acreditavam em Deus”. No mercado, o arauto da morte de Deus “causou grandes gargalhadas” (A Gaia Ciência, 125). Os comerciantes riam-se; talvez porque esperavam que aquele “super-homem”, necessário para viver num mundo sem Deus, fosse o homo economicus, graças à sua nova religião capitalista. Mas os comerciantes que ontem riram estão agora a perceber que esse nada infinito está a devorar a própria economia. A consultoria é a mais recente tentativa que o mercado está a fazer para resistir ao vento da vanitas. Porque na linha do horizonte da terra sem deuses não apareceu nenhum super-homem: em vez disso, vimos um homem cada vez mais frágil e solitário. Sofredor, escondido pela máscara divertida do hedonismo.

Deixámos os consultores na reflexão sobre a subsidiariedade. Falta ainda um último passo: uma boa consultoria subsidiária deve saber afastar-se no momento certo. Uma vez terminado o seu trabalho, o consultor deve saber retirar-se, desaparecer, sair do processo para não transformar a ligação num vínculo, favorecendo a autonomia de quem ajudou. Mas como há também uma dimensão de potencial conflito de interesses na consultoria (o ajudado também é faturado), a saída nunca é simples nem garantida. Assim, às vezes, a relação de ajuda dura demasiado tempo e, portanto, perverte-se. Muitas vezes a não-saída é desejada pelo “cliente” que durante o processo de ajuda foi progressivamente desenvolvendo uma relação de dependência dos seus acompanhantes. A preciosa arte do consultor (que se ocupa de pessoas e de relacionamentos) e do acompanhante reside então na sua capacidade de desaparecer, de deixar ir. Tornar-se cada vez menos necessário ao longo do tempo, até se tornar inútil – a inutilidade final deve ser o seu objetivo explícito – aqui reside a sua excelência. Quando, pelo contrário, o passar do tempo aumenta a necessidade do consultor, essa consultoria está a falhar e o risco de manipulação torna-se grande: em vez de ser auxílio ao discernimento o consultor torna-se aquele/aquela que decide e governa: entrou para servir, acabou a mandar.

“O passar do tempo aumenta a necessidade do consultor”. Castro do Zambujal (Torres Vedras), 2022. Foto © António José Paulino

“O passar do tempo aumenta a necessidade do consultor”. Castro do Zambujal (Torres Vedras), 2022. Foto © António José Paulino

 

Outra dimensão essencial da boa consultoria e do acompanhamento organizacional é-nos ainda sugerida pela Bíblia, no Livro do profeta Daniel, o grande sonhador e intérprete de sonhos. Os intérpretes de sonhos no mundo antigo eram uma profissão na fronteira entre arte e ciência a que recorriam, principalmente, os poderosos. Eles eram vistos como os que traziam ordem a um mundo desconhecido e ameaçador. Um dia, Daniel tem um sonho “difícil” – aquele sobre o misterioso “filho do homem”, uma figura querida a Jesus (Daniel 7,13-14). Em sonho ele tem uma visão – note-se que visão, vision, é uma das grandes palavras da consultoria. Daniel, no entanto, desta vez não consegue entender o significado; está agitado, perturbado e, em seguida, pede ajuda a um anjo-intérprete: “Eu, Daniel, fiquei muito alarmado e profundamente perturbado, com as visões que tive. Dirigi-me então a um daqueles que estavam ali de pé e pedi-lhe que me explicasse o que se passava. E ele deu-me a explicação” (7, 15-16). Apesar de ser intérprete de sonhos, seus e dos outros, agora Daniel precisa de um terceiro, de um outro intérprete – a mesma situação se repetirá no capítulo seguinte (8).

A necessidade de “um intérprete para o intérprete” diz-nos algo importante. A interpretação dos sonhos tem uma natureza relacional e ternária. Uma boa relação de acompanhamento, de facto, de binária (A-B) deve tornar-se ternária (A-B-C), pois a abertura da relação a um terceiro (C) protege o intérprete de se tornar o dono dos sonhos que está interpretando. O terceiro é a possibilidade de castidade do intérprete. Mas, para que essa abertura seja ativada, o intérprete deve sentir a “perturbação”, porque sente a sua insuficiência diante do sonho. O maior perigo é a falta dessa consciência de pobreza, quando o consultor nunca sente ou deixa de sentir a necessidade de procurar ajuda de um “anjo” externo. Uma boa consultoria subsidiária é, portanto, uma relação aberta a um terceiro. Este é o fundamento bíblico da supervisão, que hoje é obrigatória em muitas formas de consultoria – embora não em todas. 

Quando o intérprete, por sua vez, não tem outro intérprete, a relação tende a fechar-se numa relação binária, sempre perigosa, mas muito séria com visões difíceis, que permanecem seladas porque o “dois” não se tornou “três”.

O livro de Daniel, um ótimo manual para sonhadores e intérpretes, contém outro episódio particularmente interessante. No início da história, o rei Nabucodonosor tem um sonho misterioso. Estava tão agitado «que já não conseguia dormir» (2, 1) porque não sabia interpretá-lo. Ele convoca todos os adivinhos e arúspices do reino, mas nenhum consegue. Também por um pormenor curioso e decisivo: o rei não conta aos intérpretes o sonho a ser interpretado, pede-lhes que o narrem. Porquê? Ele não o esquecera. O motivo era outro. Se o rei tivesse revelado o seu sonho, a cultura babilónica possuía manuais sofisticados de oniromancia que decompunham os sonhos nos seus elementos essenciais e, assim, produziam sempre uma resposta. O sonho teria sido explicado pela técnica; o rei queria algo mais, sentia que a técnica por si só não era suficiente para aquele sonho diferente e especial. O rei temia, portanto, que o seu sonho pudesse ser manipulado pelos técnicos, que exerciam grande e sedutor poder sobre os soberanos – todos os intérpretes são fascinantes como depositários de conhecimentos misteriosos. Ele quer, portanto, a garantia de que o seu intérprete é honesto e, naquele mundo, ser honesto significava ser mensageiro de Deus: ser, portanto, um profeta, isto é, alguém movido pela gratuidade, pela vocação e não apenas pelo lucro e pelo poder. Daniel finalmente chega, um verdadeiro profeta, e “naquela mesma noite, o sonho misterioso foi revelado a Daniel, numa visão” (2,19).

“Existem alguns discernimentos que, para serem "soltos", precisam de técnica, mas também de vocação”. Torre de Controlo de Tráfego Marítimo, Algés, 2022. Foto © António José Paulino

“Existem alguns discernimentos que, para serem “soltos”, precisam de técnica, mas também de vocação”. Torre de Controlo de Tráfego Marítimo, Algés, 2022. Foto © António José Paulino

 

Para muitos acompanhamentos comuns, as técnicas são suficientes. No entanto, existem alguns discernimentos que, para serem “soltos”, precisam de técnica, mas também de vocação. Nestes casos, raros, mas decisivos, não basta interpretar a visão relatada: é preciso adivinhá-la antes que o outro no-la diga. Aqui o terceiro necessário torna-se o próprio sonho. Isto é relevante naquelas situações muito complexas e delicadas em que está em causa a própria existência da instituição ou da comunidade. Aqui o consultor é obrigado a desperdiçar tempo extraordinário, recursos, energias, enfrentar o risco de fracasso, escolhas que não se justificam apenas nos termos do contrato e dos honorários, desperdícios que vão para além dos pequenos comuns. Logo fica claro que para tentar resolver o caso vai ser preciso muito mais do que se costuma fazer. Pode-se decidir sair mais cedo ou não começar; mas também se pode decidir ficar, e ficando revelamos a nossa vocação, dizemos a nós próprios que temos uma honra maior do que o honorário, que nos interessa o nosso estar no mundo e não apenas estar no mercado. Estas escolhas são quase sempre escondidas dos “clientes”, mas são guardadas na adega do coração. Às vezes, no entanto, alguém se apercebe, e aquela escuta profunda, lenta e atemporal faz com que o outro entenda que não estamos a trabalhar apenas com a técnica. Téchne junta-se à psyche, a competência reencontra a alma. E quando o outro compreende que também estamos a trabalhar por vocação, nele/nela nasce uma qualidade diferente de confiança e faz-nos entrar nas salas secretas dos seus sonhos, onde muitas vezes se encontra a chave para a solução do seu discernimento. Aos técnicos diz-se algo, à alma diz-se muito, à alma unida com a técnica pode-se dizer tudo. 

Mas há mais. Aquele diálogo entre Daniel e o anjo-intérprete acontece durante a visão. O exegeta do sonho está dentro do próprio sonho.  Para muitas visões é possível, e talvez seja bom, que o intérprete esteja fora do nosso sonho, porque a distância terapêutica é muitas vezes importante – às vezes é bom que o exegeta esteja “acordado” enquanto sonhamos. Mas em alguns sonhos diferentes, o intérprete deve estar dentro do nosso próprio sonho, o anjo deve ser alguém que nos conhece intimamente porque ele está dentro da mesma experiência, ele é um personagem da visão comum.
 

“O anjo deve ser alguém que nos conhece intimamente porque ele está dentro da mesma experiência”. Anjo Custódio, Bucelas, 2010.  Foto © António José Paulino.

“O anjo deve ser alguém que nos conhece intimamente porque ele está dentro da mesma experiência”. Anjo Custódio, Bucelas, 2010.  Foto © António José Paulino.

Às vezes não conseguimos decifrar os nossos problemas porque o intérprete está demasiado próximo; outras vezes, muitas vezes as cruciais, a explicação da nossa visão está dentro de casa, mas procuramo-la longe. Quando passamos das empresas com fins lucrativos para a economia civil e talvez cheguemos às comunidades religiosas, para compreender algumas “visões”, aquelas que não nos deixam dormir muitas noites durante muitos anos, o intérprete deve estar dentro. Aqui a única boa distância terapêutica é zero. Estes intérpretes conhecem a visão antes de lha dizermos, porque ela também é deles.

O consultor que se aproxima de fora das Organizações com Motivação Ideal, que geralmente não pertence ao seu sonho carismático, deve estar bem ciente de ser um “anjo” fora do sonho. Deve, portanto, gastar muito tempo e energias para tentar sonhar acordado, tentar entrar nessa visão noturna sem estar lá. E, então, depois de muito tempo e silêncio suave, dizer algumas palavras como se fosse aquele anjo consciente de não sê-lo. Lembrar-se e lembrar todos os dias, até ao fim, que não é o intérprete de que realmente precisam. É da consciência desta fragilidade que pode nascer a sua utilidade.

Luigino Bruni, Avvenire, 18 de março de 2023


Luigino Bruni é coordenador da iniciativa 
A Economia de Francisco, que decorreu em setembro de 2022 sob impulso do Papa e escreve regularmente no jornal italiano Avvenire dedicando esta série de crónicas à empresa e à sua organização. O 7MARGENS publica os textos por cedência do autor. 

Tradução: P. António Antão e João Cambão; revisão: P. António Bacelar; edição final: 7MARGENS.

 

 

 

 

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