Depois de O Mercado e o Templo, o 7MARGENS publica agora uma nova e importante série de textos de Luigino Bruni, coordenador da iniciativa A Economia de Francisco. Nestes textos, o investigador fala sobre a empresa e a sua organização, e as interpelações que a situação contemporânea coloca à consciência religiosa e cristã, para concluir que a biodiversidade é uma lei fundamental também nas empresas. Neste artigo, o autor continua a análise dos efeitos culturais e económicos da Contra Reforma, que também gerou uma perigosa visão da dor, que tantos danos causou ao povo católico, sobretudo às mulheres.
“A avulsão das Igrejas Protestantes da Igreja Católica
foi uma desgraça muito mais profunda do que a dos cismas orientais.”
Giuseppe de Luca, Introdução ao Arquivo Italiano para a História da Piedade
A Bíblia revelou-nos um Deus diferente dos deuses naturais. Não escolheu reconhecer o sentimento religioso que já havia no mundo dando novas formas aos antigos cultos e ritos da fertilidade, da morte, da colheita. Pelo contrário, a Bíblia e, depois, os primeiros cristãos fizeram de tudo para salvar a novidade do seu Deus. Defenderam-no e guardaram-no a ponto de chamar “ídolos” a todos os outros deuses. E, sempre que, na história bíblica, o povo de Israel produziu um ídolo, fê-lo porque não conseguia estar à altura de um Deus demasiado diferente e, por isso, queria um “deus como todos os outros povos”, um deus mais simples, palpável, ao alcance da mão e do incenso.
E, assim, o povo fabricou os bezerros de ouro e os profetas destruíram-nos. Também os profetas sabiam que nos cultos da natureza havia uma certa presença misteriosa do Deus verdadeiro: «Os céus proclamam a glória de Deus» (Salmo 19). Sabiam-no bem, mas sabiam ainda mais que deviam distinguir absolutamente o Deus que nos alcança “do céu” dos cultos que tentam alcançá-lo “da terra”, caso contrário a força da terra teria comido a novidade frágil do céu. E conservando altíssimo o mistério de Deus, manteve altíssima a nossa dignidade e, desde há três mil anos continua a repetir-nos: “não foste feito à imagem de ídolo”.
Porém, a história do Cristianismo medieval e moderno é um pouco diferente. Encontrando-se com os povos europeus, frequentemente tolerou que o povo continuasse os seus ritos naturais dos campos, cultivasse os seus espíritos locais e “batizou” com nomes cristãos os cultos anteriores. E nasce a Europa cristã. Assim, enquanto o humanismo bíblico tinha tentado libertar os homens e as mulheres, esvaziando o mundo dos muitos espíritos e demónios, os cristãos deixaram-no habitado por anjos, santos e demónios, esperando, talvez em boa-fé, que fosse suficiente esta substituição para libertar os seres humanos do medo da morte e da dor.
A raiz de muitos males

Fundão Páscoa 2018: “Com o fim da Idade Média e com o Humanismo, pareceu evidente para muitos que a Igreja medieval romana tinha uma necessidade urgente de uma reforma geral.” Foto © João Fontes
Com o fim da Idade Média e com o Humanismo, pareceu evidente para muitos que a Igreja medieval romana tinha uma necessidade urgente de uma reforma geral (bastaria pensar nas teses de Erasmo de Roterdão). A Reforma de Lutero mudou e complicou os planos.
A reação da Contra Reforma católica bloqueou aquela primeira época de renovação interna e produziu uma restauração precisamente dos aspetos mais criticados por Lutero que – e aqui está o ponto – eram realmente os que mais precisavam de uma verdadeira reforma. E, assim, as antigas práticas mestiças (culto dos santos, devoções, indulgências, votos, relíquias, …) tornaram-se uma característica distintiva da Igreja Católica. Está aqui a raiz de muitos dos nossos males.
Olhemos atentamente para o grande tema do sacrifício. O sacrifício também está presente nas religiões e cultos antigos, é parte do repertório religioso natural. Lutero travou uma batalha campal contra a ideia da missa como sacrifício: «A missa é o contrário de um sacrifício» (Lutero, Homilias completas, 6, 523-524). Além de criticar a Eucaristia como sacrifício, Lutero também refutou a ideia de que a missa fosse a repetição do sacrifício da cruz.
A reação católica foi, de verdade, muito forte. O sacrifício torna-se uma coluna da teologia, da liturgia e da piedade: «Uma verdadeira esposa de Cristo, que vive uma vida de sacrifício, é um espetáculo de beleza sobre-humana diante de Deus» (D. Gaspero Olmi, Quaresimale per le monache, 1885, p. 12).
O Evangelho transformado em sofrimento e dor

A cruz de Cristo produziu, portanto, as nossas cruzes: «As cruzes vêm de Deus. As cruzes são necessárias porque Deus assim estabeleceu. Os verdadeiros penitentes são sempre crucificados» (ibid., p. 26). Porque Jesus «sacrificou o seu coração no Getsémani, sacrificou a sua honra no tribunal, sacrificou a sua vida no Calvário» (p. 291). Num manual de devoções para mulheres, lemos: «É este o objetivo de Deus em nos afligir: Ele quer que a aflição não só sirva para purificar as culpas passadas, mas também para melhorar a nossa vida» (G. Fenoglio, A verdadeira mãe de família, 1897, p. 250). Os três votos das monjas eram entendidos como «os três cravos» da cruz, e a virgindade como «sacrifício do corpo feito ao Senhor» (Exercícios espirituais feitos às monjas dominicanas do mosteiro de S. Tiago e S. Filipe de Génova, Roma, 1821, p. 70). A oferta das dores a Deus, unidos aos sofrimentos de Cristo, de Maria e dos santos, tornou-se, assim, na época da Contra Reforma, a oikonomia mais florescente nos países latinos e nela uma louca proliferação das mais dolorosas penitências, sobretudo nos mosteiros femininos.
Como se conseguiu transformar o Evangelho numa religião de sofrimento e de dor? Como fomos capazes de acreditar no engano que o Deus Amor de Jesus fosse um “consumidor de dores humanas”, que as primícias que mais agradavam a Deus fossem os nossos sofrimentos? A Bíblia, Antigo e Novo Testamento, sabia que as divindades que gostam de sangue dos filhos se chamam ídolos. O Deus bíblico, o Deus de Jesus, não é um ídolo porque não consome a dor dos seus filhos e filhas, porque não a quer aumentar mas reduzir. “Quero misericórdia e não sacrifício”, repete-nos Oseias e Jesus, que sabiam bem que a lógica do sacrifício e a do hesed e do ágape são incompatíveis. O Deus bíblico não gosta dos sacrifícios porque nos ama. O sacrifício é palavra ambivalente também nas relações humanas – é errado interpretar o teu amor para comigo como a tua disponibilidade para te sacrificares – mas é realmente muito perigoso quando é utilizado para entender a relação com Deus, porque O transformamos em ídolo.
«Perdi o mérito de muitos jejuns, de muitas mortificações… oh, que infeliz» (ibid., p. 71), lemos ainda nos Exercícios espirituais para monjas. De facto, o sacrifício está associado a uma teologia do mérito, outra palavra combatida pela Reforma (e, por isso, muito estimada pela Contra Reforma). Os sacrifícios criam e aumentam os méritos: «Mas as vantagens mais luminosas para os amantes desta virtude virginal estão reservadas para a outra vida. Os virgens, no paraíso, serão mais felizes» (Quaresimale per le monache, cit., p. 79). Portanto, a vida terrena torna-se uma espécie de eterno ginásio onde temos que sofrer nos treinos para merecer possíveis futuras vitórias nas competições nos campos elísios.
A experiência de Deus no lado errado

Deste ponto de vista, a Contra Reforma não gerou uma ideia de Deus como o nosso libertador e primeiro “Goel” (Job, Rute), o garante que levanta a mão para nos salvar das dores evitáveis da terra. Aquela ideia de Deus complicou a vida aos homens, ainda mais às mulheres. A vida religiosa foi apresentada como um longo e constante sacrifício para merecer o paraíso, sob a constante visão do inferno: «Que cada uma de vós seja levada para o cárcere penosíssimo, para o qual são levadas as almas rebeldes. Ouvirá os urros, os anseios e os gritos desesperados. Com esta tão sombria imagem diante dos olhos, comece cada uma de vós a meditar…» (Exercícios espirituais…, cit., p. 124).
A dor era encorajada por ser “moeda divina” para ganhar méritos para nós e para os outros: «Entre os bens enormíssimos que a confissão produz, o primeiro é a dor. Sendo a confissão um processo, onde a penitente é a ré e o Sacerdote o juiz» (ibid.., p. 128). E, assim, a mensagem de amor recíproco, de gratuidade e de compaixão do evangelho permanecia cada vez mais no pano de fundo de uma teologia e prática dolorosa, não totalmente superada – Marco, o neto de uma colega minha, no dia da sua primeira confissão, bloqueou-se precisamente enquanto recitava: “porque pecando mereci os teus castigos”.
São significativos os nomes escolhidos para as meninas nos países católicos dos séculos passados: Dolores, Mercedes, Dolorosa, Crucificada, e os nomes das Congregações femininas da época da Contra Reforma: Irmãs vítimas, crucificadas, escravas, humilhadas… E, assim, os católicos, as católicas fizeram muitas vezes a experiência de um Deus que estava do lado errado, que queria o seu sofrimento nesta vida talvez para o premiar na outra vida. Hoje, a teologia afastou-se, finalmente, da teologia da expiação e da leitura sacrifical da paixão de Cristo: «Caso contrário, corre-se o risco de não dirigir o olhar na direção certa do mistério de Deus» (Giovanni Ferretti, Repensar evangelicamente o sacrifício, 2017). A lógica do sacrifício deve ser transformada na lógica do dom, que é o seu oposto, porque toda gratuidade.
Mas, entretanto, seria necessária uma verdadeira purificação da memória da Igreja Católica, sobretudo pelo que aconteceu nos mosteiros e conventos femininos. Pedimos tardiamente desculpa a Galileu Galilei; existem dezenas de milhares de vítimas que esperam há demasiado tempo as nossas desculpas coletivas, depois daquelas solenes e sinceras de S. João Paulo II, no Grande Jubileu do Ano 2000, às quais, aqui, junto as minhas. As dores existem no mundo e a civilização humana deve fazer de tudo para as reduzir, e Deus – o Deus revelado por Jesus Cristo – é o primeiro a querê-lo. Quando a dor chega, é preciso vivê-la de modo ética e espiritualmente melhor, mas ai de pensar e dizer que é Deus a mandá-la ou que lhe agrada.
A visão comercial de Deus e da vida

As implicações civis e económicas são, aqui, também notáveis. A ideia da meritocracia nasceu nos Estados Unidos e, depois, dali foi exportada para toda a parte. Nasceu num ambiente de cariz calvinista, portanto anti mérito, que secularizou o mérito e o transformou numa categoria económica. Mas não nos devemos admirar que os países católicos sejam os mais entusiastas pela meritocracia: a Itália de hoje inseriu a palavra “mérito” até no nome do Ministério da Educação. A teologia assente na junção sacrifício-mérito produz, portanto, uma visão comercial de Deus e da vida. Quanto mais te sacrificares, mais obterás: Deus torna-se um contabilista passivo de dívidas e créditos, e a gratuidade-graça sai de cena num mundo pelagiano onde nos salvamos sozinhos, lucrando méritos com a moeda dos sofrimentos. Mas há mais. A categoria de mérito ligado ao sacrifício produziu a ideia que a virtude precisa de sacrifício e de sofrimento e que os verdadeiros méritos são os que nos ganham o paraíso ou o purgatório. Portanto, as recompensas mais preciosas para o sacrifício não são os salários, o vil dinheiro.
A partir daqui, foi rápido chegar a dizer que as ocupações com prevalência feminina – como escola, saúde, serviços, trabalhos das consagradas – não são bem pagas porque, caso contrário, com o dinheiro se reduz a pureza do “sacrifício” e dos seus verdadeiros méritos: «O fruto das riquezas está em desprezá-las. A principal intenção de Deus ao conceder as riquezas é que nós obtenhamos mérito e interesse pela outra vida» (Fenoglio, A verdadeira mãe, cit., p. 248). Volta o grande tema do excessivo e assimétrico peso suportado pelas mulheres. Na Gaia Ciência de Nietzsche, o homem louco anuncia, como grito desesperado, que “Deus morreu” e que “fomos nós que o matámos”. Estamos numa civilização que decretou a morte de Deus; vemos isso diariamente. Mas pode haver uma luz dentro desta noite que quero exprimir como pergunta sussurrada: E se o “deus morto” fosse o deus demasiado distante do coração das mulheres e dos homens? E se, então, esta morte guardasse a aurora de uma ressurreição?
Luigino Bruni é coordenador da iniciativa A Economia de Francisco, que decorreu em setembro de 2022 sob impulso do Papa e escreve regularmente no jornal italiano Avvenire dedicando esta série de crónicas à empresa e à sua organização. O 7MARGENS publica os textos por cedência do autor.
Tradução: P. António Antão e João Cambão; revisão: P. António Bacelar; Edição fotográfica: António José Paulino, João Fontes e Miguel Veiga. Subtítulos e edição final: 7MARGENS.