
“De facto, após ser coroado, Carlos III passará a ser o chefe da Igreja Anglicana, mas já na década de 1990 o então príncipe Carlos sugeriu que gostaria de ser conhecido como ‘o defensor das [diferentes tradições] de fé” e não apenas como o monarca “defensor da fé [cristã]’.” Foto: Rei Carlos III e Rainha Consorte
Como ser ‘chefe supremo’ da Igreja de Inglaterra e, em simultâneo, soberano de todos os súbditos do Reino Unido quando apenas menos de metade destes se diz cristão e não poucos se reconhecem como muçulmanos, hindus ou judeus? A interrogação está presente na forma vai decorrer no próximo sábado 6 de maio a coroação de Carlos II, mas desde há 30 anos que o príncipe a tem encarado de um modo que deixa tranquilos os líderes das diversas comunidades religiosas.
“Quando ele diz que quer ser o defensor das diferentes religiões, isso significa todo um mundo novo, porque a nossa história nem sempre foi simples, nem sempre vivemos livremente, nem sempre conseguimos praticar a nossa religião”, disse o rabi Nicky Liss, da Highgate Synagogue no norte de Londres, à Associated Press, continuando “mas saber que o rei Carlos age dessa maneira e fala dessa maneira é muitíssimo reconfortante.”
De facto, após ser coroado, Carlos III passará a ser o chefe da Igreja Anglicana, mas já na década de 1990 o então príncipe Carlos sugeriu que gostaria de ser conhecido como “o defensor das [diferentes tradições] de fé” e não apenas como o monarca “defensor da fé [cristã]”. Na subtil diferença que então usou, o príncipe preferiu dizer que se via a si próprio como “the defender of faith,” e não como “the defender of the faith”, sendo esta a fé cristã proclamada pela Igreja Anglicana. No mesmo sentido, recorda, em artigo datado de 2 de maio, a jornalista Danica Kirka da Associated Press, Carlos afirmou em setembro último num encontro com líderes religiosos: “Sempre pensei na Grã-Bretanha como uma ‘comunidade de comunidades’”.
E serão essas várias comunidades religiosas que estarão pela primeira vez representadas na sua coroação, através de lordes pertencendo a diferentes tradições religiosas – judaísmo, islamismo, hinduísmo e sikhismo – que lhe apresentarão símbolos da “regalia” sem significado ou simbolismo cristão. De igual modo, no final da procissão de encerramento da cerimónia, o rei receberá uma saudação recitada em uníssono por representantes das mesmas comunidades judaica, hindu, sikh, muçulmana e budista.
A coroação mostrará um Reino Unido muito diferente daquele que presenciou a de Isabel II, em 1953. Naquele tempo, mais de 80 por cento dos britânicos diziam-se cristãos, mas agora são menos de 50 por cento e 37 por cento dos cidadãos dizem-se sem qualquer religião, muitos afirmam-se muçulmanos (6,5%) alguns (1,7%) hindus e um grupo ainda mais minoritário diz-se judeu.
“Numa época em que a religião está a alimentar as tensões em todo o mundo – desde os nacionalistas hindus na Índia aos colonos judeus na Cisjordânia, passando pelos cristãos fundamentalistas nos Estados Unidos –, Carlos procura superar as clivagens entre os grupos religiosos que compõem a cada vez mais diversificada sociedade da Grã-Bretanha”, escreve Danica Kirka no citado artigo da AP, que remata concluindo: “Atingir esse objetivo é fundamental nos esforços do novo rei para mostrar que a monarquia, uma instituição milenária com raízes cristãs, ainda pode representar o povo de uma Grã-Bretanha moderna e multicultural”.
Uma cerimónia cheia de novidades
A liturgia da coroação do próximo dia 6 de maio e as novidades que ela comporta foram anunciadas no final de abril num comunicado do arcebispo de Cantuária, Justin Welby, que presidirá à cerimónia na Abadia de Westminster. O desenrolar da coroação foi fixado em diálogo com o futuro rei e o a liturgia organiza-se de roda do lema ‘Chamados a Servir’, lema que, explica a nota de Justin Welby, “reflete o compromisso que sua majestade fará para servir a Deus e ao povo”.
Ao entrar na Abadia de Westminster, Carlos será saudado pelos membros mais jovens da congregação – um coro da Capela Real – a quem dirigirá estas palavras: “Em Seu nome e seguindo o Seu exemplo, não venho para ser servido, mas para servir”.
O Arcebispo de Canterbury selecionou a carta de São Paulo aos Colossenses 1; 9-17 como Epístola para esta coroação. A passagem será lida pelo primeiro-ministro, Rishi Sunak, e foi escolhida por ser um hino à primazia de Jesus Cristo sobre todas as coisas. Ainda antes do juramento de Carlos, Justin Welby explicará que a Igreja da Inglaterra procura promover um ambiente onde “pessoas de todas as fés e crenças possam viver livremente”.
Pela primeira vez, outras línguas além do inglês serão ouvidas durante a liturgia: uma oração em galês; e um hino (Veni Creator) cantado em galês, gaélico escocês e gaélico irlandês. Noutro momento, o rei rezará em voz alta usando um texto especialmente escrito para a ocasião que reflete o dever e o privilégio do soberano servir todas as comunidades.
Carlos já o afirmara publicamente quando por diversas vezes declarou que é dever do soberano “proteger a diversidade do nosso país, inclusive protegendo o espaço para a fé de cada um e a sua prática por meio das religiões, culturas, tradições e crenças para as quais o coração e a mente de cada um o direciona”.
Católicos: três dias de oração pelo novo rei
O cardeal Vincent Nichols, arcebispo de Westminster e presidente da conferência episcopal de Inglaterra e Gales solicitou, em carta dirigida aos fiéis católicos destas duas nações, que “de quarta-feira, 3 de maio, até sexta-feira, 5 de maio, todos os católicos rezem por sua majestade e pela rainha” e enviou um texto específico para tal oração.
Na carta, o cardeal, que estará também presente na cerimónia da Abadia de Westminster, salienta: “Nenhum de nós pode imaginar o incrível fardo que sua majestade assumirá ao ser coroado rei ao lado de sua esposa e rainha, Camilla. O mundo mudou imensamente desde 1953 [ano da coroação da rainha Isabel II] com muito mais oportunidades e desafios para a vida de todos”.
O tríduo de oração culminará na noite de sexta-feira, quando é pedido “a cada comunidade católica que celebre uma missa especial pelo rei antes da coroação de sábado”.
A propósito da sua presença na Abadia, o cardeal Nichols disse: “Tenho recebido muitas distinções, mas esta será uma das maiores: desempenhar um papel na coroação do monarca.”