
“Uma Igreja centrada nos preceitos ou uma Igreja preocupada com aqueles que são os verdadeiros interesses de Jesus: os mais pobres, os mais frágeis e vulneráveis?” Escultura: Obras de misericórdia. Dar de comer a quem tem fome. Junto da Igreja de Santo Spirito in Sassia, Roma. Foto © António Marujo
“Creio na Igreja Católica”. Ultimamente, quando rezo este artigo do Credo, rezo-o com mais consciência e mais perguntas… não porque tenha deixado de acreditar na Igreja, mas porque alguns acontecimentos me têm feito pensar e desejar uma Igreja diferente.
Nos últimos meses fui-me confrontando com situações que me levam a sentimentos contraditórios, por um lado de desilusão e, por outro, de esperança.
Em primeiro lugar, tenho-me deparado, na minha missão, com estudantes universitários católicos centrados mais no ritual que numa liturgia com a qual todos se sintam identificados; que vêem a imigração como algo muito negativo e mesmo como uma ameaça para este país (França), esquecendo que muitos dos seus amigos, colegas e outros estudantes católicos com quem se cruzam são estrangeiros e que, como eles, têm ambições e procuram sentido para as suas vidas.
Em segundo lugar, um padre que, nas missas de início de ano do nosso colégio (nas quais estão presentes entre 300 a 600 alunos), “alertou” que a comunhão daquele dia não substituía a de todos os domingos em que eles não foram à missa e afirmou que aqueles que não se tinham confessado no último mês seria melhor não virem comungar… comentário que fez com que muitos (especialmente os mais pequenos) ficassem sentados, sem saber muito bem o que fazer. Como privar crianças de receber este Jesus que se entrega e que não deixa de desejar encontrar-nos onde estamos, como estamos, como somos? E como ajudar a reconhecer a alegria da reconciliação, como um momento de encontro verdadeiro com Jesus e de crescimento no Amor?
E, para terminar – o que para muitos católicos e para a Igreja de França foi o maior “balde de água fria” dos últimos tempos – foi publicado o relatório da CIASE (Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja), que nos deu a conhecer os milhares de abusos praticados (e silenciados) por pessoas relacionadas com a Igreja Católica a partir dos anos 1950. Mais do que números, o que este relatório dá a conhecer são pessoas marcadas para toda a vida, que perderam a sua infância, que sofreram a vergonha, a dor, muitas vezes sozinhas, sentindo-se incompreendidas e sem qualquer tipo de apoio.
Ao ler este relatório e os testemunhos de muitas das vítimas, o que comecei por sentir foi revolta; depois, pouco a pouco e à medida que vou lendo o que se escreve e que vou falando com muita gente, a revolta vai-se transformando em desejo, como dizia ao início, de uma Igreja diferente, onde as vítimas têm realmente uma voz; finalmente, este desejo converte-se em sentido de responsabilidade porque a mudança começa com cada um de nós, pela forma como nos posicionamos face a todas estas duras realidades.
Além disso, a CIASE faz 45 recomendações para reparar e prevenir os abusos. Ao lê-las, dou-me conta que vai ser preciso muito tempo, muita vontade da parte de quem toma decisões e muita abertura ao Espírito para que a Igreja se transforme. Mas quero acreditar que este relatório pode abrir caminhos de um maior diálogo, mais abrangente a diferentes setores da Igreja e da sociedade e espero que estas medidas possam ser também tomadas noutros países onde este tipo de estudos ainda não teve lugar (em Portugal, concretamente). É mesmo importante que todos sejamos conscientes desta situação, para que os abusos não se repitam.
Enfim, o que descrevi e especialmente esta última situação questiona-me sobre a minha forma de ser Igreja, de estar em Igreja… pergunto-me:
Que Igreja queremos?
Uma Igreja que vive sob o peso de uma obediência cega, ou uma Igreja que senta todos à sua mesa para construir o Reino de Justiça e de Amor que Jesus veio anunciar?
Uma Igreja de estruturas rígidas ou uma Igreja aberta ao diálogo e à escuta do Espírito de Jesus que nos quer livres?
Uma Igreja centrada nos preceitos ou uma Igreja preocupada com aqueles que são os verdadeiros interesses de Jesus: os mais pobres, os mais frágeis e vulneráveis?
Tenho esperança que o caminho sinodal que começámos nos ajude construí-la e que todos aqui encontrem lugar…
Acredito nesta Igreja Católica, Universal, enraizada verdadeiramente no Amor de Jesus, este Amor que se entrega em cada Eucaristia e que somos chamados a levar a todos os que nos são confiados.
Clara Lito é religiosa da Congregação das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, neste momento a trabalhar em Paris.