“A pobreza não vem pela diminuição das riquezas, mas pela multiplicação de desejos”
(Platão)

“Se para uns “crescer” implica aceder a alimentação, a energia, a água potável, para outros implica ter acesso a mais consumo. Afinal o que é a qualidade de vida?” Foto © site:www.iogui.co
O conceito de desenvolvimento sustentável tem duas interpretações: para os intelectuais humanistas é um desenvolvimento que respeita o ambiente, de forma abstrata, sem contabilizar desenvolvimento ou impacte ambiental, mas pode levar a questionar o modelo económico e até o modo de vida actuais; para os industriais, políticos e economistas entende-se como um desenvolvimento que possa ser eterno. Quem estabelece esta dualidade é o filósofo e economista Serge Latouche, promotor da noção de decrescimento, para quem os últimos raciocinam deste modo: “Trata-se de explorar, valorizar, e tirar proveito dos recursos naturais e humanos. A mão invisível e o equilíbrio dos interesses garantem-nos a melhor situação possível no melhor dos mundos. Porquê preocupar-nos?” (Petit traité de la décroissance sereine, Serge Latouche)
As grandes instituições mundiais que têm por missão zelar pelo futuro da humanidade assentam a sua ação no crescimento. A OCDE tem por objetivo conceber políticas para melhorar a qualidade de vida e o seu secretário-geral, Mathias Cormann, afirma que a sua missão essencial “é promover um crescimento económico mais forte, mais limpo e mais justo”. Por outro lado, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas valorizam o crescimento do PIB como fator de desenvolvimento (ver o objetivo nº8).
É verdade que as desigualdades globais não são aceitáveis e o acesso às vacinas durante a pandemia atual evidencia a dimensão do problema.
Mas será que o único meio de reduzir as desigualdades, de melhorar a qualidade de vida das pessoas é o crescimento? Temos de crescer eternamente para ser felizes? Se para uns “crescer” implica aceder a alimentação, a energia, a água potável, para outros implica ter acesso a mais consumo. Afinal o que é a qualidade de vida? As referências destes conceitos são globais?
Serge Latouche acredita que o crescimento não é a panaceia universal e propõe uma revolução do decrescimento. O nome provoca uma sensação de repulsa pois decrescer não é natural e parece soar a declínio. A nossa vida obedece a um desejo de expansão e a lei da entropia é mais ou menos intuitiva: não é possível voltar atrás. Será sequer concebível pensar na hipótese de decrescer? Serge Latouche acha que é legítimo e cita Ernst Bloch: “sem a hipótese que outro mundo é possível, não há política, só há a gestão administrativa dos homens e das coisas.”
Oito “R”s para defender o planeta e a humanidade

“A prevenção de resíduos é a adoção de medidas para reduzir a quantidade de resíduos produzidos, nomeadamente através da reutilização de produtos ou do prolongamento do tempo de vida dos produtos”. Foto © Felipe Sanches / Wikimedia Commons
O Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno propõe um “círculo virtuoso” de mudanças resumido em oito Rs: reavaliar, reconceptualizar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar e reciclar.
Reavaliar os valores dominantes na sociedade atual seria o ponto de partida deste modelo. Neste processo, os valores “do individualismo megalómano, da recusa da moral, o gosto do conforto e o egocentrismo”, em prática, deveriam ser substituídos por: “altruísmo, cooperação, gosto pelo lazer, importância da vida social,…a razoabilidade.” Latouche acredita que é necessário começar por “deixar de acreditar na dominação da natureza para passar a procurar a integração harmoniosa”.
Reconceptualizar é uma consequência natural da mudança de valores que exige que os conceitos atuais sejam revistos e Serge Latouche dá os exemplos dos conceitos de pobreza/riqueza e de escassez/abundância. Cita J-P. Dupuy escrevendo que “a economia transforma a abundância natural em escassez” para rentabilizar a sua comercialização.
A restruturação implicaria a subsequente adaptação do aparelho produtivo e das relações sociais com uma rutura com o sistema capitalista.
A redistribuição proposta por Latouche incide sobre o acesso à riqueza e ao património natural na relação entre o Norte e o Sul, assim como entre classes sociais e gerações.
A questão da relocalização parece menos controversa, uma vez que “consumir local” já é hoje aceite como algo desejável. A proposta não é só ao nível económico, mas também ao nível “político, cultural e até mesmo do próprio sentido da vida que deveriam reencontrar uma âncora territorial.”
A noção de redução também já está presente nos 3 Rs das estratégias de gestão de resíduos e estamos familiarizados com ela. “A prevenção de resíduos é a adoção de medidas para reduzir a quantidade de resíduos produzidos, nomeadamente através da reutilização de produtos ou do prolongamento do tempo de vida dos produtos” (Agência Portuguesa do Ambiente).
Contudo, não parece ser concebível uma redução de consumo. O setor turístico, por exemplo, chegou a representar 4,1% do PIB global, em 2019, segundo as estatísticas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, a sua estagnação devido à pandemia é uma das maiores ameaças que as Nações Unidas apontam e reduzir a atividade não é hoje uma opção.
Por último, reutilizar e reciclar estão na ordem do dia. “A Economia Circular tem sido um tema recorrente nas agendas internacional, europeia e nacional nos últimos anos, sendo um conceito estratégico que assenta nos princípios da redução, reutilização, recuperação e reciclagem de materiais e energia e assumindo-se como um elemento-chave para promover a dissociação entre o crescimento económico e o aumento no consumo de recursos” (Direção Geral de Atividades Económicas).
É relevante mencionar que nenhum sistema poderá garantir a reutilização e reciclagem total de materiais. As perdas são inevitáveis, e, tal como a entropia do universo, cresce sempre o consumo de recursos.
Serge Latouche refere-se aos recursos disponíveis como um bolo que tem um tamanho definido e que a ideia mágica de que o tamanho do bolo pode ser aumentado para alimentar a todos é irreal.
Ao lermos o Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno ficamos com a perceção de um enorme descontentamento. Frequentemente o tom é reivindicativo e por vezes a análise é um tanto dualista entre o bem e o mal, o que, de alguma forma, pode ferir a objetividade do conteúdo e das ideias expostas. Mas existe um problema globalmente reconhecido relativamente ao modelo de crescimento e as políticas que estão a ser concebidas não põem em causa o modelo, limitam-se a exigir-lhe um ligeiro toque de responsabilidade. Será possível continuar a crescer a este ritmo de forma responsável sem uma rutura? Sem a tal revolução proposta por Letouche? A ideia de rutura pode ser aterradora. Mas em Portugal temos o exemplo de uma revolução pacífica, o que nos pode levar a acreditar que talvez já tenham nascido os futuros “Capitães de Abril” por um decrescimento sereno.
Rui Loureiro é consultor em desenvolvimento sustentável.