
Vigília à porta do liceu de Tamalpais, em memória do massacre de Parkland. Foto © Fabrice Florin | Wikimedia Commons
As crianças portuguesas, de um modo geral, podem, apesar de tudo, comemorar nesta quarta-feira, 1 de Junho, o Dia Mundial da Criança sem temores excessivos. Podem sair de casa de manhã sem a ansiedade suscitada pela dúvida de saber se a ela poderão ou não regressar. As crianças de muitos outros países não podem escapar a esse temor, como se pode perceber por abundantes notícias sobre dramas que os mais novos são obrigados a viver. Bem presentes estão ainda as que deram conta do massacre ocorrido na terça-feira, 24 de Maio, numa escola primária dos Estados Unidos da América. Os títulos de primeira página podiam ser contidos ou chocantes, mas todos incomodavam. Os nomes das 19 crianças (e das duas professoras) assassinadas em Uvalde, no Texas, surgiram em diversos jornais: Alexandria Aniyah Rubio, Alithia Ramirez, Amerie Jo Garza, Annabell Guadalupe Rodriguez, Eliahana Cruz Torres, Eliana Garcia, Jackie Cazares, Jailah Nicole Silguero, Jayce Luevanos, Jose Flores, Layla Salazar, Maite Rodriguez, Makenna Lee Elrod, Miranda Mathis, Nevaeh Bravo, Rojelio Torres, Tess Marie Mata, Uziyah Garcia, Xavier Lopez (Eva Mireles e Irma Garcia eram as professoras).
Diversos jornais apresentaram ainda fotografias e curtas biografias de cada uma das crianças [1]. Com apelidos que, em alguns casos, podiam ser portugueses, tinham, quase todas, dez anos. As imagens dos rostos das 14 meninas e dos cinco meninos tornam mais pungente a tragédia. Pode dizer-se que tinham “toda a vida à sua frente: aniversários, licenciaturas, casamentos, filhos…”, para citar o que, há dez anos, afirmava o Presidente Barack Obama, após ter ocorrido uma tragédia semelhante na escola primária de Sandy Hook, no estado do Connecticut.
Com uma regularidade chocante, há vidas abruptamente interrompidas por causa de uma ideologia estúpida posta ao serviço do negócio das armas que continuará a prosperar com a activa cumplicidade dos do partido do nefasto Donald Trump. O próprio, na noite de sexta-feira, 27, na convenção da Associação Nacional de Armas, realizada no Texas (onde poucos dias antes tinha ocorrido a mortandade), veio recusar qualquer tipo de controlo da venda de armas [2].
Antes da intervenção, a secção de verificação de factos do Washington Post tinha feito um esclarecedor ponto da situação quanto aos estudos relativos à legislação sobre controlo de armas. Embora se admita que muitas das leis propostas poderiam não ter “muito impacto na contenção dos tiroteios em massa que dominam os noticiários”, considera-se que, ainda assim, “poderiam diminuir a sua gravidade e também reduzir a violência armada em geral” [3]. Mas não só nada é feito para evitar que proliferem as armas, como se incentiva a sua posse generalizada.
“As armas tornaram-se a primeira causa de morte dos jovens americanos”, noticiava o Monde, referindo um estudo que contabilizou em 4.368 o número de crianças e jovens até aos 19 anos que morreram por ferimentos causados por uma arma de fogo em 2020 nos Estados Unidos [4]. Para o jornal, estes números sublinham que, apesar de os tiroteios em massa, como o de Uvalde, comoverem a opinião pública, eles representam apenas uma pequena parte das mortes dos mais novos com armas de fogo.
Imensas são as mortes evitáveis das crianças em tantos lugares do planeta. “A guerra na Ucrânia está a ter um impacto devastador nos 7,5 milhões de meninos e meninas do país”, denunciava há dias o organismo da Organização das Nações Unidas encarregado de cuidar da infância. É que muitas crianças viram o que nenhum menino ou menina deveria jamais ver. As suas casas foram atacadas, tal como as suas escolas e tudo o que as poderia ajudar a sobreviver. Além de profundamente traumatizadas pela violência que as rodeia, muitas crianças morreram e ficaram feridas em consequência da terrível guerra da Rússia contra a Ucrânia.
Outros conflitos que destroem a infância, designadamente em África, estão fora do radar noticioso. Na Nigéria, há crianças usadas pelo Boko Haram como bombistas suicidas, lembrou Moïse Gomis, um dos realizadores de dois documentários sobre os sobreviventes do grupo terrorista jiadista. Os mais novos são instados a cumprir acções contra militares, postos de polícia, em autocarros, em paragens de autocarro, em mesquitas, em igrejas. “É verdadeiramente uma estratégia pensada e organizada para utilizar as crianças como carne para canhão”, explicou Moïse Gomis, citado na terça-feira num texto da National Geographic [5].
Os exemplos poderiam, infelizmente, continuar. Importante é comemorar o Dia Mundial da Criança assumindo a urgência de subtrair o terror aos dias dos mais novos.
Notas
[1] Sneha Dey et alii – “21 lives lost: Uvalde victims were a cross-section of a small, mostly Latino town in South Texas”. The Texas Tribune, 27 de Maio de 2022
[2] “La droite américaine refuse tout contrôle des armes”. Le Monde, 29 e 30 de Maio de 2022
[3] Glenn Kessler – “What research shows on the effectiveness of gun-control laws”. The Washington Post, 27 de Maio de 2022
[4] “Les armes sont devenues la première cause de décès chez les jeunes Américains”.
[5] Margot Hinry – “Survivre à la terreur de Boko Haram”. National Geographic, 24 de Maio de 2022