Cristãos e finanças

| 19 Dez 2022

 

escultura solidariedade Foto © Miguel Veiga

“A dimensão ética não pode ser afastada de qualquer atividade humana, como acentua a Mensuram Bonum, citando os Papas Bento XVI e Francisco.” Foto © Miguel Veiga

 

Diz o famoso poema de Fernando Pessoa que Jesus Cristo não percebia nada de finanças. Mas o recente documento da Academia Pontifícia das Ciências Sociais Mensuram Bonum (uma alusão àquela “medida transbordante” que o Evangelho promete a quem dá generosamente) pretende servir de guia orientador para pessoas e organizações católicas que trabalhem nessa área, em particular quanto aos critérios de opção de investimento (o texto, em versões inglesa e italiana, pode ser consultado no sítio dessa Academia).

Já anteriormente, em 2018, um documento da Congregação para a Doutrina da Fé e do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral – Oecomenicae et Pecuniariae Questiones – Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspetos do atual sistema económico e financeiro – havia abordado, de forma algo inovadora no âmbito da doutrina social da Igreja, alguns aspetos do atual sistema financeiro na perspetiva da sua regulação (o texto pode ser consultado, também em versão portuguesa, na área desse Dicastério do sítio do Vaticano). Neste documento mais recente, são referidos outros, também sobre esta temática, das Conferências Episcopais austríaca, norte-americana e italiana.

São da maior importância estes documentos e este guia. A atividade financeira e a sua repercussão socioeconómica têm crescido exponencialmente nas últimas décadas. Um crescimento que muitas vezes se traduz numa especulação improdutiva que não serve a economia real, gera riquezas enormes sem mérito, acentua desigualdades e está na origem de crises de dimensões planetárias (como a de 2008). Esta é uma realidade a que não podemos fugir. É errado nela atuar sem preocupações de ordem ética (porque a dimensão ética não pode ser afastada de qualquer atividade humana, como acentua a Mensuram Bonum, citando os Papas Bento XVI e Francisco), como se um cristão ou uma organização cristã pudessem colocar entre parêntesis a sua fé neste como noutros campos. Mas também será errado diabolizar a atividade financeira como se dela não pudesse resultar uma mais racional e eficaz gestão de recursos, na perspetiva de um verdadeiro desenvolvimento humano integral (porque também é evangélico “fazer render os talentos”).

É de salientar que os primeiros destinatários das orientações dada pela Mensuram Bonum são as instituições mais estreitamente ligadas à Igreja, e, desde logo, as da Santa Sé, que nem sempre atuaram de forma coerente com os princípios que as deveriam reger, não se distinguindo de outras que não se regem por tais princípios.

Este guia não pretende dar, em tudo, soluções uniformes e definitivas. Muito espaço é dado ao discernimento, o qual tem em conta a diversidade e complexidade das várias situações.

O documento começa por evocar as raízes mais profundas da doutrina social da Igreja, que se ligam ao núcleo central da fé. Apresenta como critério orientador a leitura da realidade à luz do mistério da Trindade, o que significa considerar toda a variedade dos relacionamentos que marcam essa realidade, “o potencial criativo da unidade na diversidade”, “uma interdependência como fonte de liberdade” e, neste campo específico, todos os impactos que pode ter a atividade financeira nos vários tipos de relacionamento, em cada pessoa, na sociedade e no mundo natural.

Como critério geral orientador das opções de investimento, é referida a afirmação da encíclica de Bento XVI Caritas in Veritate (n. 42): “A procura do verdadeiro, do belo e do bem e a comunhão com outros homens para um crescimento comum devem ser os elementos que determinam as escolhas de consumo, poupanças e investimento”.

Mais especificamente, indicam-se como critérios de orientação nessas opções de investimento os princípios fundamentais da doutrina social da Igreja, neles se incluindo, além dos mais clássicos, aqueles a que recentemente tem dado mais relevo o Papa Francisco: a dignidade da pessoa humana, o respeito pelos direitos humanos, o bem comum, a solidariedade, a subsidiariedade, a participação, o destino universal dos bens, a justiça social, a sustentabilidade, a ecologia integral, o cuidado da casa comum e a inclusão dos mais vulneráveis.

Em relação a cada um destes princípios, são indicadas as suas implicações relativas às opções de investimento e, a essa luz, perguntas que servem para o discernimento. Assim, por exemplo, quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana, é indicado como sua implicação que a pessoa humana seja a medida de qualquer desenvolvimento social, económico e político. Como perguntas que orientam o discernimento são indicadas as de saber se através do investimento em causa se respeitam a liberdade e os direitos humanos e se as oportunidades por ele criadas são de acesso equitativo.

Há várias formas de atuar no sentido da concretização desses princípios e suas implicações. Uma delas é a do empenho ativo no exercício de direitos de acionistas, através da voz e do voto. Devem ser incentivadas todas as iniciativas já operantes no sentido de uma “finança ética”, em que a ética está presente não apenas nos fins, mas também na coerência dos meios para os atingir. Quando essas vias não sejam eficazes, pode impor-se a saída como acionista.

A este respeito são indicados âmbitos a excluir, uns em absoluto, outros de forma condicionada, de qualquer política de investimentos. A defesa da dignidade intrínseca da vida humana justifica a exclusão de rendimentos decorrentes da prática do aborto, da investigação em células embrionárias e da venda de armas, em especial as nucleares. A exigência de evitar comportamentos destrutivos justifica a exclusão de rendimentos decorrentes de atividades que criam dependência, assim como da pornografia. A consideração dos impactos globais e da sustentabilidade justifica a exclusão de rendimentos decorrentes da violação de direitos humanos, em especial dos trabalhadores, assim como de corrupção e de práticas comerciais desleais. A atenção à proteção da ecologia integral justifica a exclusão de rendimentos que limitem a disponibilidade de alimentos para os mais vulneráveis (especulação com o preço de bens alimentares), assim como dos que contribuam significativamente para as alterações climáticas.

É afirmada a convicção de que os prejuízos no curto prazo que podem derivar de uma política de coerência ética muitas vezes são compensados por benefícios no longo prazo.

A Mensuram Bonum não ignora as dificuldades, dúvidas e incertezas com que possa deparar-se quem atua neste campo, por falta de informação, porque há situações que não é possível alterar, porque surgem dilemas de difícil solução. Como vimos, não pretende dar, em tudo, soluções uniformes e definitivas. Fala em várias “zonas cinzentas”.  Mas incentiva e encoraja o aprofundamento das questões através do diálogo e da partilha de experiências (este será, pois, apenas um ponto de partida). A título de conclusão, afirma: “Quando as coisas parecem improváveis, senão impossíveis, podemos recordar que os ensinamentos gerais sobre o Reino de Deus nas Escrituras desenrolam-se numa tensão entre o ‘aqui e agora’ e o ‘ainda não’, entre o presente e o futuro. Deus está sempre no centro. Deus está sempre próximo”.

 

Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz.

 

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