O abuso de poder é a raiz e o tronco a partir do qual saem os ramos de todos os outros que conhecemos, diz a teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz em entrevista ao 7MARGENS. Nesta segunda parte da entrevista cuja publicação iniciámos ontem, aborda-se ainda a questão da formação afectiva do clero e da relação com as mulheres, do acolhimento e integração de pessoas LGBTI nas comunidades cristãs, do Sínodo católico e do que se pode esperar do Papa Francisco, depois da morte do seu antecessor.
Cristina Inogés Sanz: É preciso ser criativo para alargar o lugar da mulher na Igreja
Formada na Faculdade Protestante de Madrid, investigadora nos departamentos de Teologia Fundamental e História da Iglesia, Cristina Inogés é também diplomada em Gestão Cultural, Museus e Património e teve a seu cargo a meditação de abertura do Sínodo 2021-24, com a presença do Papa. Com vários livros publicados, colabora com diversos meios de comunicação (incluindo o 7MARGENS) e trabalha na pastoral de acompanhamento e formação de comunidades católicas de pessoas LGBTI.
7MARGENS – A propósito dos leigos, já falou da questão do abuso do poder. Essa é a chave para entender também a questão dos abusos?
CRISTINA INOGÉS SANZ – Dos abusos sexuais, abusos espirituais, de consciência, laborais… O abuso de poder é a raiz e o tronco a partir do qual saem os ramos de todos os outros que conhecemos. Eles irão aparecer um de cada vez, mas começam a surgir.
Há muitos abusos na vida religiosa feminina, que por exemplo no caso de [Marko Ivan] Rupnik [ver 7MARGENS] se comprovou que eram abusos sexuais sobre toda uma comunidade. Mas é verdade que o clericalismo – essa forma tão bruta de exercer o poder – contagiou também a estrutura da vida religiosa. E no caso das mulheres, houve muito abuso de poder por parte da hierarquia feminina das congregações.
Isso deveria fazer-nos pensar que formação se dá, que formação têm os formadores, em que consiste a actualização e que formação permanente tem o clero. Falamos da formação como se fosse algo que acaba no seminário. Não, tem de haver formação permanente, que deve reflectir sobre documentos do Papa ou do Vaticano, mas que seja também sobre questões que é preciso reactualizar constantemente. E isso não se tem muito em conta.
O abuso de poder é o núcleo, o centro em que se deve insistir, para ir pouco a pouco tratando os outros abusos.

Marko Rupnik abusou sobre toda uma comunidade de mulheres, mas também houve superioras contagiadas pelo clericalismo. Foto © Centroaletti, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.
7M – Em Braga, no congresso sobre os seminários, em Novembro, falava da alfabetização emocional. Qual é o “desastre anunciado” a que se referia a propósito da formação nos seminários? É todo o modelo que está em causa?
Antes, havia escolas para meninos e escolas para meninas. Agora, há muitos anos que as escolas são mistas. Mas quando chegam ao seminário, venham de uma formação mista ou separada, [os seminaristas] entram num mundo onde não há presença feminina, perdem um ouvido e perdem um olho: não ouvem as mulheres e não vêem as mulheres. Entram num mundo em que mais de metade da humanidade não existe. Sei de seminários no meu país em que a formação dos seminaristas inclui falar-lhes contra as mulheres, contra os padres secularizados e contra o mundo LGBTI. Isso não é formar, isto é deformar, e é um abuso de consciência porque se está modificando a consciência dessa pessoa, a quem se estão a criar preconceitos. E espiritualmente está a provocar-se um dano tremendo, porque se está a condicionar a sua forma de pensar.
Essas pessoas, que já estão meio isoladas do mundo, não têm uma formação psico-afectivo-sexual e uma formação para a inteligência emocional. Todas as pessoas do mundo – padres e monjas incluídos –, pela condição humana, teremos de enfrentar uma crise, estejamos solteiros ou casados, sejamos padres ou monjas. Se não estivermos preparados para o afrontar e não soubermos contar o que se passa, não conseguimos pedir ajuda e começam os desastres: vidas duplas, ocultação, mentiras. E isso vai criando uma angústia tremenda na pessoa.
Se a pessoa for formada para ter confiança no seu formador e para que saiba dizer o que lhe acontecer, poderá pedir ajuda. Mas o formador tem de saber detectar que num momento concreto está a acontecer alguma coisa. Na inteligência emocional aprende-se a expressar o que se passa consigo mesmo, e também a detectar o que se passa com o outro. Mas se a formação não for feita, a pessoa cairá num abismo e ou abandona ou tem uma vida dupla ou simplesmente vive com uma angústia tremenda e um sentimento de culpabilidade.

7M – Trata esse tema no seu livro La Sinfonía Feminina (Incompleta) de Thomas Merton, sobre a relação desse monge cisterciense com a mãe e várias mulheres que passaram pela sua vida, incluindo uma de quem se enamorou…
Sim, conto a história de Merton e M., que muita gente lê como um horror de Merton, pelo facto de ele ter namorado com uma enfermeira, mas que na realidade lhe serviu para fazer uma inflexão, reorganizar a sua vida afectiva (que não a tinha organizada) e a partir daí decidir continuar a ser monge.
7M – E estamos a falar de um mestre espiritual e da mística…
O mestre espiritual por excelência do século XX. Esse é um caso em que vemos que a experiência de se ter enamorado de uma mulher não lhe tirou a sua vocação de monge nem de padre, mas levou-o a reflectir e reorganizar o seu mundo afectivo interior, que não tinha organizado – desde pequeno, com a morte da sua mãe, ele vivia um caos emocional. Ele reorganiza esse caos e o seu mundo afectivo e a partir daí toma a decisão de permanecer monge.
Quando se diz isto em alguns sítios, perguntam porque é que importa a vida sexual do clero. A mim, não me importa nada. Mas importa-me muito que o clero sofra por isso. E quando se procura dar uma solução, como se entra num mundo que é só deles, tomam-no como uma ingerência. E não é verdade.
7M – Fala-se do acolhimento de pessoas LGBTI nas comunidades cristãs, mas não há uma pedagogia para que as comunidades acolham as pessoas dessa condição. E sabemos que em muitos lugares de África, apesar do exemplo que já deu do Lesoto, esse acolhimento é ainda mais difícil. Como desbloquear esta situação?
R. – E não falemos da Ásia ou de países de maioria muçulmana… Há muitos sítios onde isso é de facto um tabu. É preciso entender e [para os cristãos] Deus fez-se carne e assumiu toda a condição humana. Se falamos de uma Igreja inclusiva, não se podem criar grupos à parte: um homossexual, uma lésbica, um trans, um que não é, ninguém escolheu ser assim. Nascemos assim e é uma questão tão natural como ser ruivos, morenos, de olhos verdes, altos ou baixos.
Tão pouco posso julgar alguém que diz que é homossexual e abordar tudo sempre desde o campo da moral. Se continuamos a tratar a questão LGBTI a partir da moral, nunca chegaremos a lado nenhum. Temos de começar a abordá-lo desde o campo da antropologia. Só a partir daí começaremos a encaixar as peças de modo que nos permita perceber que será um avanço não ter posições tão díspares e tão polarizadas. A questão LGBTI tem de ser tratada de uma maneira absolutamente normal.

7M – Também na Igreja?
As pessoas que estamos vinculadas à pastoral LGBTI somos como freelance; como não há uma pastoral aprovada pelas conferências episcopais, não há nada que sustente isso. Às vezes, alguns padres perguntam-me: “Porque te meteste nesse mundo?” “Porque vocês não entram.” Se não entram, nem sequer para conhecer e só julgam, o avanço nunca se pode dar. Não se pode passar a vida a julgar como as pessoas vivem a sua sexualidade. A Igreja não pode estar sempre a meter-se nas camas das pessoas, a vigiar e controlar a sua vida sexual.
O quarto é um âmbito privadíssimo e não temos de entrar aí. E a Igreja tem de reconhecer que há muitíssima gente LGBTI [dentro da comunidade cristã], não é algo que esteja apenas fora [dela]…
7M – Incluindo na hierarquia?
Incluindo na hierarquia, claro. O próprio Papa já admitiu que no Vaticano há um lobby gay. E também entre os santos os terá havido, mas isso era algo que não se perguntava nas causas de canonização.
Desconhecemos a história da homossexualidade porque, se soubéssemos algo dela, veríamos como houve épocas muito diferentes nas quais não se criaram problemas. Quando Oscar Wilde saiu da prisão em Inglaterra, onde tinha estado por ser homossexual, foi viver para França [em 1897, vindo a morrer em Paris] porque, ali, a Igreja Católica protegia os homossexuais. Então, o que se passou? A história da homossexualidade é muito explicada por James Allison. A nossa visão muda muito quando se conhecem certos detalhes.
7M – Regressando especificamente ao Sínodo: o que teremos diante de nós, nos próximos tempos?
Estamos na fase continental, que termina em Março, e a partir daí começaremos a elaborar o primeiro Instrumentum Laboris [instrumento de trabalho] para a assembleia de Outubro deste ano.
Há uma questão que é mais importante que esta fase continental: que cada pessoa tenha a síntese da sua diocese na sua mesa de trabalho ou de cabeceira. Porque a mudança tem de vir pelo mais próximo. Todas as pessoas que participaram na fase diocesana têm de ter muito presente o que saiu na síntese, para ver se isso vai sendo aplicado na sua diocese. A mudança não vai chegar por uma mudança geral de cima para baixo na vida da Igreja, ele vai ter de chegar da realidade mais próxima. Por isso, se saiu A, B e C, há que estar vigilantes para que A, B e C se cumpra, porque foi aprovado numa assembleia diocesana. Porque se isso não for cumprido, porque o bispo ou o clero dizem que não, isso é abuso de poder, isso é denunciável. Isso é o que as pessoas têm de entender.
7M – O que se passa é que parece que o Sínodo terminou: aprovaram-se as sínteses e agora pouco mais se fala mais do assunto.
Claro. Mas nesta fase continental os grupos também podiam participar. Consta-me que houve dioceses no meu país em que os bispos proibiram de participar na fase continental. E foram eles que responderam ao questionário que se fazia aos leigos. Isso é abuso de poder, absoluta e claramente. Isso é que deve ser evitado. E as pessoas devem estar conscientes de que sabem pensar, articular o pensamento e que é muito importante tudo o que pensaram.

7M – O que espera do Papa? Agora que morreu Ratzinger, Francisco está mais livre para fazer reformas ou mais condicionado?
Fácil não vai ser. Vimos isso com a reacção do secretário de Bento XVI, que é outra forma de ver como a oposição a Francisco que está dentro do próprio Vaticano está a lançar as peças. Bento não condicionava Francisco, que tomou decisões e redigiu documentos sem estar condicionado. Mas é certo que Bento era uma figura cujos “acólitos” se mantinham com alguma cautela [enquanto estava vivo].
Mas antes de estar enterrado, literalmente, antes de abrir a capela ardente, o seu secretário lançou a artilharia. Temos de estar atentos para ver como esta oposição férrea que há no Vaticano irá lançar as peças. Não creio que fiquem muito calados. Mas também é certo que Francisco tem recursos suficientes para afrontar a situação.
7M – Mas não sente que o Papa está mais frágil, animicamente?
Uma pessoa com 86 anos não é um jovem e tudo vai deixando marcas. Mas também é verdade – vê-se nas entrevistas, no que escreve, no que diz – que continua a ser a pessoa livre que chegou ao papado. Tem limitações, mas creio que ainda nos pode surpreender. Não sei dizer em quê, mas creio que ainda tem capacidade para nos surpreender com alguma coisa.
7M – E nessa surpresa pode estar a sua renúncia?
R. – Ele disse há pouco que havia assinado um documento a prever alguma incapacidade. Ele pode renunciar – talvez não antes que acabe o Sínodo [Outubro 2024]. Mas também seria o mais normal do mundo que nos habituássemos a que uma pessoa, numa determinada idade, renunciasse ao poder que tem. Se um presidente de uma empresa se demite… Mas demite-se e vai-se embora, não fica no escritório do lado. Também seria muito interessante criar um estatuto, [evitando] a precariedade com que se viveu o papado emérito de Bento. Se o Papa é o bispo de Roma, passa a ser o bispo emérito de Roma e não há nenhum problema. Isso seria o mais normal.