
“Acabam (os sacerdotes) por ser apontados como pessoas demasiado diferentes. E sentem-se sós. Agrava-se o problema quando os leigos não se preocupam com ajudá-los, espicaçá-los, e acolhê-los nas suas próprias casas, nos cafés…” Foto © Applegate / Unsplash
Recebi várias críticas ao artigo em referência, duas delas cuidadosamente analíticas. Organizo-as em parágrafos (vários deles pertencem ao mesmo crítico), seguidos de breve comentário:
1. Contrariamente ao que eu pareço dar a entender, há muitos padres cultos e dialogantes.
2. É pena que a propósito da Igreja Católica, e ao longo da sua história, se possa falar de hipocrisia.
3. A minha afirmação de que a procura de Deus é tanto mais credível quanto mais aprofundamos a história, precisa de ter presente a falsidade (ou pobreza) intrínseca à História. Uma história onde abunda a crueldade e nos faz perguntar “mas onde está Deus?”.
4. Ao afirmar que só compreende a religião quem compreende a separação, podia esclarecer que o “outro polo” do ser humano é como o horizonte: quando parece próximo, ao nosso alcance, afasta-se continuamente, revelando a sua “diferença”. A relação religiosa provém de uma aproximação continuada a esse horizonte. Culto e devoções podem apoiar esta aproximação, mas também a podem travar. Culto e formulários de rezas facilmente se transformam em prisões.
5. Precisamos de alimentar a vontade de correr o risco de “separação”. Mas religião é uma relação amistosa, mais do que conflituosa.
6. “A exigência religiosa não pode ser desculpada para “facilitar” a vida aos mais “responsáveis” – ou que assim se consideram. O pecado tem que ser assumido pelo pecador.
7. Será frutuosa a presença de leigos e leigas como formadores dos novos sacerdotes. De outro modo, perdem a capacidade de visão e atenção aos diversos ângulos que nos permitem conhecer e experimentar a realidade.
8. A minha “crença” é muito “romântica”. “Se até para ser Papa há lutas eleitorais, o que será nas aldeias?”
9. Disse Jesus aos apóstolos: “Vós não sois deste mundo” – mas “harmoniosamente” inseridos nele. Porém, manifestam uma cultura eclesial, isolada; parecem viver numa redoma própria de quem é formado dentro do mundo de seminaristas, de casas religiosas, à sombra do bispo… Por isso, muitos deles não têm jeito para visitar idosos, presos… nem entrar dentro dos problemas próprios da cultura do nosso tempo. Falta espírito crítico e mão na massa. Terão medo de perder os fiéis? Acabam por ser apontados como pessoas demasiado diferentes. E sentem-se sós. Agrava-se o problema quando os leigos não se preocupam com ajudá-los, espicaçá-los, e acolhê-los nas suas próprias casas, nos cafés… e dizer claramente quando deles discordam.
Comentário final

Devo a muitos padres uma excelente educação e formação. Mas também devo dizer que muitos outros falhavam, até perigosamente, no campo das relações humanas.” Foto © Nazim Coskun / Unsplash
De facto, devo a muitos padres uma excelente educação e formação. Mas também devo dizer que muitos outros falhavam, até perigosamente, no campo das relações humanas.
Ser culto está muito longe de ser uma “enciclopédia falante” (expressão condenatória, que ouvi a vários educadores meus e que por vezes repeti como professor). O que interessa é enriquecer permanentemente o nosso pensamento, o que implica “curiosidade por tudo o que é humano”. Os padres cultos sabem pedir ajuda a “especialistas”, leigos ou não. E estes têm a obrigação de trocar ideias e factos com eles.
Na formação dos sacerdotes, há a sensação de faltar um conhecimento mais aberto em História das Religiões, sem distorções causadas pela perspectiva cristã ou católica. Frequentemente tomam posições rígidas quanto ao que pode ser a tendência religiosa e o que é, para o ser humano em geral, ser religioso (situando-se ou não entre as várias religiões).
Há ainda muitos padres de autêntica vocação, com grande sabedoria para acompanhar as diversas facetas dos problemas ligados à vivência religiosa. E que, no entanto, podem não sentir afinidade com o aprofundamento de áreas do conhecimento. Mas o mais importante é que o dom de relações humanas faz deles eficazes enriquecedores da espiritualidade de quantos se cruzam e falam com eles; e por vezes basta a sua “simples” presença (manifesta pela simplicidade no enquadramento social) para provocar a harmonia do Homem com Deus e com o Universo. A vida espiritual das pessoas consagradas é a grande qualidade: à semelhança de Deus, “que tudo abarca” e “em tudo está presente”.
Como aceitam alguns teólogos, “a religião é uma invenção humana” – mas “in-venção”, pela história da palavra, significa “vir ao encontro”, nem que seja de um mistério (sentido ou não como Alguém). Atenda-se, porém, ao sentido pejorativo aplicável a invenção (mas já não a “invento”).
Na tradição cristã, Jesus Cristo aprofundou a bíblica imagem de Deus como Pai tão perfeito que contém todo o amor de Mãe. Um Pai que entregou à liberdade, que dele herdámos, o “Jardim do Paraíso”, sem se cansar de nos incentivar a corrigir o mal, a promover o bem e a mostrar, como “filhos que saem aos pais”, que também temos capacidade para criar coisas maravilhosas e vivermos todos como uma grande família.
Essa incansável presença paterna é a base de uma espécie de “teologia descendente”: a nossa relação com Deus é descrita e construída como efeito da “Palavra de Deus”, revelada pelos tempos fora e sob as mais diversas formas, mas como “palavra inquestionável”.
Hans Küng é bom exemplo da “teologia ascendente”: não nos compete dizer o que Deus é ou faz, como se ele nos tivesse ditado uma cartilha – mas sim como podemos penetrar infindamente no mistério de Deus, discretamente presente como o mais perfeito dos Pais. O que implica profundo conhecimento e reflexão sobre o que se faz e pensa neste mundo. À imagem desse Pai, também cada um de nós pode ser uma presença simples, mas autêntica e amigavelmente questionante.
Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino universitário.