
“Preciso de relembrar-me regularmente de que é no encontro de vidas que poderei manter não só a minha sanidade neste ‘combate à pobreza’, como fazê-lo de uma maneira que seja digna, verdadeiramente solidária, libertadora do melhor de cada um.” Foto © Pexels.
A necessidade humana não tem fim. Não sei se terá sido por isso, também, que Jesus disse: “os pobres sempre os tereis entre vós”. Na minha vida tenho aprendido que muitas vezes a pobreza humana, seja material ou espiritual, está um pouco por todo o lado, até onde menos a esperava. Tenho-lhe dedicado uma boa parte do meu percurso, combatendo-a como sei e posso, a começar em mim próprio.
Há uns anos um amigo falou-me de uma ideia que tinha: um “jantar comunitário” para pessoas “sem e com abrigo”. Ambos integrávamos uma equipa que distribuía alimentos nas ruas e estimulava o contacto com pessoas em situação de sem-abrigo. Achei que a ideia dele requeria um esforço pouco ou nada meritório – afinal, não estávamos já a ajudar quem tinha fome? Não era essa a necessidade principal mais urgente? Para quê complicar mais, gastar mais tempo e energia? Tentei demovê-lo, mas ele decidiu avançar na mesma e acabei por ajudá-lo.
Desde então servimos algumas centenas de jantares, envolvendo vários milhares de pessoas em várias cidades, durante dez anos. Constituímos depois uma associação-rede de voluntariado que além desses jantares também organiza actividades que visam construir pontes com pessoas em situações de carência, vulnerabilidade e exclusão: sem-abrigo, seniores isolados, crianças e jovens em risco, refugiados e imigrantes, territórios prioritários, etc. envolvendo voluntários, escolas, empresas, autarquias, comunidades de fé, etc.
Nestes anos tenho visto mudança na vida de pessoas e comunidades, mas também tenho visto estagnação e até deterioração. O número de pessoas e situações que requerem intervenção tem aumentado, seja porque há mais pessoas a precisar de ajuda ou porque vamos tendo maior conhecimento da realidade. Se fôssemos motivados apenas ou sobretudo pela resposta à necessidade humana, não só não teríamos mãos a medir, como nos esgotaríamos rapidamente na nossa motivação e nos nossos recursos institucionais e pessoais.
Por isso já me têm perguntado se não me canso de ter tantas solicitações de tanta gente sem recursos ao longo de tantos anos, se nunca pensei em desistir. Sim, por vezes passamos por períodos de desilusão, cansaço, esgotamento até. A “necessidade humana” é maior, mais ampla, mais constante do que parece e não, não está ao alcance das minhas capacidades acabar com ela: não sou Deus, não tenho energia, empatia e tempo suficientes nem para tanta gente, nem para o esforço por vezes desmesurado de gestão de uma instituição “não lucrativa”.
Além de procurar lembrar-me disso e agir a partir dessa percepção, também me apercebi de que a principal necessidade humana é mesmo a pertença, e que a maior tragédia humana é a não-pertença, a exclusão. Fomos desenhados para a comunidade: com ela florescemos, sem ela definhamos. Isso é verdade para todos os seres humanos, independentemente da sua condição, mas é sempre mais fácil de confirmá-lo em quem vive abaixo da famigerada “linha de pobreza”, sentindo-se sozinho e sem esperança.
Nisto não tenho dúvidas: o combate à pobreza material é um campo de acção urgente e um desígnio comum. Mas com tudo o que já fazemos e possamos ainda vir a fazer para enfrentá-lo, parece-me que há um desafio ainda maior e mais radical: na maioria das vezes é mais fácil tirar as pessoas da pobreza do que tirar a pobreza das pessoas. E aqui não resultam as soluções padronizadas e presas a normas. Como dizemos na nossa rede, “Conhecemo-los pelas suas necessidades; e se os conhecêssemos pelo seu nome?”.
A necessidade humana é personalizada. Embora todos precisemos de comer, de nos vestir e de onde nos abrigar, cada pessoa precisa-o de uma forma peculiar, no seu tempo e à sua maneira. Creio que é no envolvimento com o património singular de cada um que podemos estimular e apoiar a mudança. O maior estímulo e ajuda é mesmo o do cruzamento, do encontro de patrimónios pessoais, algo que é belo de dizer mas que requer de quem se disponibiliza a caminhar com outros alguma dádiva de si mesmo.
Perguntar-se-á então: como é possível conseguir acudir às necessidades mais óbvias e urgentes e ainda tentar “dar de si mesmo”, do seu tempo, atenção, companhia, com-paixão? Embora a resposta seja construída dia-a-dia, uns dias melhor, outros pior, ela passa precisamente por aceitar viver nessa tensão que é, afinal, uma tensão que produz crescimento pessoal. Preciso de relembrar-me regularmente de que é no encontro de vidas que poderei manter não só a minha sanidade neste “combate à pobreza”, como fazê-lo de uma maneira que seja digna, verdadeiramente solidária, libertadora do melhor de cada um.
Volto a Jesus: também ele se cansou (e fez cansar os que serviam ao seu lado) no cuidado das necessidades básicas, físicas e espirituais das pessoas que o procuravam, ou que ele mesmo procurava. Ele equilibrava-se na oração, nessa busca da perspectiva do Alto, no ver além do olhar, no escutar além do ouvir, no acolher além do estar. Parece-me que ele via esta sua agenda ora no imediato, ora na eternidade, ora no visível, ora no invisível. Ele que tanto podia não “resolveu” tudo e para sempre enquanto esteve entre nós, mas abriu caminhos de esperança e de uma nova humanidade. É por aí também que procuro segui-lo.
Alfredo Abreu é presidente da Serve the City International e Serve the City Portugal, rede de voluntariado que se disponibiliza para ir ao encontro de pessoas e territórios em situações de carência e vulnerabilidade (sem-abrigo, idosos isolados, refugiados e imigrantes, crianças e jovens em risco, bairros “prioritários”, etc.) com uma proposta de encontro e disponibilidade para acompanhar a mudança.