
“É uma barbárie a forma como se fala da devassa da intimidade e da violentação de um corpo. Demos nomes às coisas. Estamos a falar de violações e de importunações sexuais a crianças e pessoas vulneráveis.” Foto © Ulrike Mai / Pixabay
Ao ler e ouvir a voracidade com que se discute o número de casos de abusos cometidos por membros da Igreja, só me vem à cabeça a frase pronunciada por Josef Estaline: “A morte de um homem é uma tragédia, a de um milhão é apenas uma estatística.”
É perfeitamente legítimo discutir os critérios de validação de testemunhos e os métodos usados pela Comissão Independente para chegar a estimativas do número de vítimas; faz parte do rigor e metodologia científica. Mas, por muito legítima que a discussão seja uma coisa é certa: é uma mera distração face à gravidade daquilo a que assistimos.
Os números são um fait divers no meio deste assunto. Não importa quantos casos houve, sendo certo que quantos mais pior. O que importa é que existiram e chegaram ao ponto de causar suicídios. Será que já parámos para pensar no sofrimento e desespero que leva uma pessoa a pôr termo à própria vida?
Não se caia na tentação de dizer que foram muito menos casos, que o número de vítimas é uma extrapolação exagerada. Convenhamos: isso não tem relevância rigorosamente nenhuma para a tomada de decisões necessária. Haja mais ou menos casos, é certo que houve abusos, foram abandonadas vítimas à sua sorte e isso é de uma crueldade sem nome. Não se tenha o atrevimento de usar números seja para defender, seja para atacar a Igreja. Cada abuso tem de ser encarado como único e trágico sob pena de nos afogarmos em estatísticas.
Em cada pessoa abusada, é Deus que foi abusado e violentado (cfr. Mat. 25, 35-46). Este é o tempo de olhar com seriedade para o que passou e não criar guerrilhas com trocas de acusações e explicações de algibeira.
É uma barbárie a forma como se fala da devassa da intimidade e da violentação de um corpo. Demos nomes às coisas. Estamos a falar de violações e de importunações sexuais a crianças e pessoas vulneráveis.
Façamos, por meros instantes, o exercício de imaginar a pessoa que mais nos é querida a ser tocada, apalpada, beijada, penetrada, com medo, vergonha, culpa, a não perceber o que se passou e ficar abandonada ao terror, à dor física por vezes e à sensação de impureza. Tentemos pôr-nos no lugar das vítimas com os seus critérios e formas de pensar e sentir, não com as nossas certezas. Não o façamos para alimentar desejos de vingança ou ódios, mas antes de empatia.
Por trás dos números de casos estão vidas, caras, olhares, lágrimas, frases de súplica a um agressor para que pare, gritos de angústia e, quem sabe, por socorro. Este cenário dilacera-nos por dentro. Esse é o sentimento que deve ficar. A dilaceração.
Lembremo-nos de um aspeto próprio dos abusos cometidos por clérigos ou pessoas com responsabilidades pastorais: nestes casos a vítima, para além do abuso sofrido, fica ainda com uma imagem de Deus deturpada, uma vez que quem age diz representar o próprio Deus. Não existe maior mal que se possa fazer a uma pessoa do que afastá-la de Deus. Isso é um exclusivo que têm os abusos no seio da Igreja. E esse é, provavelmente, o maior pecado que os membros da Igreja cometeram. Não sejamos condescendentes em relação a esta matéria. A relação com Deus é um espaço íntimo que merece a nossa maior reverência e sacralidade.
Não é tempo para a Igreja se tentar proteger e lavar a face, nem para se usar esta situação para atacar a Igreja e desacreditá-la. É tempo de coragem e assunção de responsabilidades por parte de todos os batizados. Não é tempo de reivindicar exigências ao clero, mas com o clero encarar este problema. Não podemos deixar as vítimas ao abandono, não é essa a nossa forma de estar no mundo. Respondamos à pergunta que nos é feita nesta hora: onde está o teu irmão? E não, o nosso irmão não são só as vítimas. O nosso irmão é a vítima antes de tudo, mas é também o agressor, os que o encobriram e todos os que nesta hora contestam a credibilidade da Comissão Independente que conduziu este estudo.
O Papa Francisco foi a única pessoa capaz de expressar o seu respeito pelas vítimas. E não o fez com longos discursos, considerações frívolas ou explicações rápidas. Simplesmente, chorou. Face às lágrimas do Papa, nada mais pode ser dito, nem nenhum pedido de perdão pode ser melhor formulado.
Sofia Távora é advogada