[Brasil, Religião e Poder]

Da celebração à invasão, o grande trabalho a ser feito pelo novo Governo

| 11 Jan 2023

Lula da Silva, Brasil

Cerimónia de posse do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto, Brasília. Foto © Tânia Rego/Agência Brasil.

 

No primeiro dia do ano, o clima no Brasil foi de celebração, não somente pelo fôlego que um novo ano sempre traz, mas porque o recomeço que o povo brasileiro ansiava, finalmente chegou. Lula, em uma cerimônia marcante – organizada pela primeira-dama, Janja, cabe dizer –, tomou posse como Presidente da República, cargo que a maioria dos brasileiros confiaram a ele pela terceira vez. Em uma quebra inédita de protocolo, o Presidente recebeu a faixa presidencial não do ex-Presidente Jair Bolsonaro, mas de um grupo de oito pessoas, que representou a diversidade da população brasileira e reafirmou o compromisso do novo Governo com ela. Em um discurso emocionante, Lula destacou que governará para todas e todos, e que o pobre estará no cerne da preocupação de seu governo.

Em matéria de religião, o Presidente inicia seu mandato também na perspectiva da diversidade e inclusão, reafirmando seu compromisso com o artigo 5º da Constituição de 1988, que garante o direito à liberdade religiosa aos cidadãos brasileiros. Em seu discurso, Lula afirma: “Sob a proteção de Deus, inauguro este mandato reafirmando que no Brasil a fé pode estar presente em todas as moradas, nos diversos templos, igrejas e cultos. Neste país, todos poderão exercer livremente sua religiosidade.” Com Lula, o país torna a fortalecer o Estado Democrático de Direito em que a laicidade é condição fundamental para sua manutenção. Ainda que os símbolos cristãos sejam importantes em sua vida, o Presidente compreende que o Estado não deve assumir uma confissão religiosa, mas fazer valer o direito constitucional da liberdade religiosa dos cidadãos.

Após a cerimônia de posse do Presidente eleito, foi realizado o Festival do Futuro, que reuniu mais de 60 artistas, entre eles os cantores gospel Kleber Lucas e Leonardo Gonçalves. Foi a primeira vez que artistas do segmento evangélico se apresentaram num evento de posse presidencial. Embora Lula tente aproximações com esse setor da população e afirme o compromisso de governar também para os evangélicos, existe o desafio de superar a ideologia bolsonarista que atinge esse meio. Kleber Lucas e Leonardo Gonçalves, por exemplo, são vistos pela maior parte dos evangélicos como hereges. Em entrevista para o programa Conversa com Bial, o cantor Leonardo Gonçalves disse estar sendo rejeitado pelo meio evangélico após declarar apoio a Lula na corrida presidencial. Circula entre os evangélicos a ideia de que assumir um posicionamento à esquerda do espectro político é contrário aos ensinamentos bíblicos e valores cristãos. Foi essa narrativa que elegeu e sustentou Bolsonaro no poder nos últimos quatros e que também está por trás dos ataques ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro.

Ronilso Pacheco, em seu artigo publicado no dia 31 de outubro de 2022 no Intercept Brasil, previa que aconteceria no Brasil algo semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2022, após a derrota do Trump. Ele destacou que as pessoas que invadiram o Capitólio não eram “terroristas’ ou membros de movimentos de supremacistas, mas sim pessoas comuns e que, em grande maioria, frequentavam igrejas evangélicas. Durante o período eleitoral nos Estados Unidos, e também no Brasil, os evangélicos foram uma forte oposição a Biden e a Lula por entenderem que suas agendas políticas não estavam alinhadas com uma visão cristã e, por que não dizer, fundamentalista do mundo.

Nesse sentido, por mais infeliz que seja, os ataques em Brasília não foram uma surpresa. Também não surpreende a ambígua reação dos líderes evangélicos, sobretudo porque eles são a base sobre a qual o bolsonarismo se ergueu e permanece. Sóstenes Cavalcante, líder da bancada evangélica, disse não compactuar com a barbárie, mas, ao mesmo tempo, tentou justificar os ataques dizendo que “ver um descondenado [sic] virar Presidente causa revolta”. Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e bastante influente no meio evangélico, disse que os ataques foram uma “manifestação do povo” e complementou “E aí? Usa dois pesos, duas medidas? Quando é a cambada de esquerda, é ato de livre manifestação. Quando são os outros, é ato antidemocrático? Isso é uma vergonha.”

O deputado federal Nikolas Ferreira, também evangélico, disse que as “manifestações precisam ser pacíficas, ordeiras” e é assim que as defende, “mas também devem ser respeitadas e não tratadas com deboche ou ‘perdeu mané’”; terminou dizendo: “Eu tenho moral para falar sobre isso, você de esquerda não.” Já a Aliança Cristã Evangélica Brasileira repudiou os ataques aos três poderes, entendendo-os como “atos antidemocráticos, violentos e injustificáveis”, e reafirmou o compromisso com o Estado Democrático de Direito e suas instituições porque entende que a “fé cristã tem as simultâneas marcas da verdade, da justiça e da paz.”

Cabe destacar que depois da redemocratização do país, à parte dos processos de impeachment, foi a primeira vez que ocorreram manifestações seguidas de invasão e ataques aos três poderes em virtude do resultado da eleição presidencial. O que faz com que este episódio em Brasília seja substancialmente diferente de qualquer outra manifestação popular e decisivamente antidemocrática.

Deste modo, há um grande trabalho a ser feito pelo novo Governo, para que se reestabeleça o diálogo que os partidos de esquerda, sobretudo o partido do Presidente Lula (Partido dos Trabalhadores) com o segmento evangélico. Por parte da sociedade, e sobretudo por parte das igrejas, há um grande trabalho para expungir o fundamentalismo religioso da política e a ideologia bolsonarista das igrejas. Se percebermos, a reação dos evangélicos destacados acima não é uma tentativa de elevar virtudes bíblicas como “verdade”, “justiça” e “paz, como fez a Aliança Cristã Evangélica em seu pronunciamento, mas de demonizar a esquerda política e enfraquecer a democracia brasileira.

 

Maria Angélica Martins é socióloga e mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Pesquisa a relação entre fenómeno religioso e política com ênfase para o protestantismo histórico e o neocalvinismo holandês.

 

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