
Desfile de armamento na Rússia: O arsenal atómico existente é capaz de destruir mais de 100 vezes toda a vida da Terra. Foto © Wikimedia Commons / Vitaly V. Kuzmin
O arsenal atómico existente nas mãos do ser humano é capaz de destruir mais de 100 vezes toda a vida da Terra. Vislumbra-se a necessidade de apostar tudo na paz, mas apenas conseguimos a proibição da opressão e do uso da guerra, como nos refere a Carta das Nações Unidas, viabilizando a guerra em legítima defesa individual ou coletiva. Toda a guerra, mesmo que “justa”, é uma desumanidade que, nos coloca algumas questões: Qual é a guerra justa que está a acontecer neste momento? Não existem limites para meios e tempo numa guerra “justa”?
Estas foram ideias e elementos referidos por José Azeredo Lopes nas Jornadas de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (UCP) – Porto. Na sua intervenção, o antigo ministro da Defesa e professor da escola do Porto da Faculdade de Direito ds UCP, manifestou, a par de algumas preocupações, o seu alerta de que é fundamental procurar a paz equacionando todo o envolvente, sobretudo o ser humano, pois o princípio de “paz justa” deveria sobrepor-se ao de “guerra justa”. Devemos ser sujeitos ativos, inspirados nos valores humanos e chamados à construção de um compromisso que valorize a nossa ação, reconhecendo o valor da nossa escolha, referiu.
Esta foi a 30ª edição das Jornadas da Faculdade de Teologia da Universidade Católica (Porto), que decorreu entre os dias 6 e 9 de fevereiro. Este ano, com o tema: Teologia da paz perante (os fenómenos d)a violência e (d)a guerra, contando com a colaboração de alguns oradores, que procuraram levantar algumas inquietações e abrir caminhos para o pensamento teológico: os professores universitários de teologia Xabier Pikaza, Isidro Lamelas ou Jorge Teixeira da Cunha. Ou, ainda, fazendo um diálogo salutar com outras ciências, a partir das intervenções dos antigos ministros Álvaro Laborinho Lúcio (Justiça) e José Azeredo Lopes (Defesa).
Com a ajuda do Direito, compreendemos também que a sociedade foi evoluindo até estabelecer o direito à guerra e assim um direito à violência; mas curiosamente não temos um direito à paz! Este direito encontrou o seu apoio na procura da ordem e da segurança; contudo, a questão da paz não encontra a sua formulação na ordem, mas na justiça e a justiça quanto aos valores. Que valores são esses? Esses valores são os Direitos Humanos que, para serem equacionados, necessitam da base do conhecimento e da cultura.
Lutar pelos direitos de todos

Laborinho Lúcio: “O essencial, mais que debater os deveres de cada um, é lutar pelos direitos de todos.” Foto © DR
Baseados nestes pressupostos compreendemos melhor o que procurou transmitir Álvaro Laborinho Lúcio, quando nos disse que o essencial, mais que debater os deveres de cada um, é lutar pelos direitos de todos. Se pensarmos segundo a norma dos deveres impomo-nos pela submissão; pelo contrário, pensar segundo a norma dos direitos do outro, pelos direitos de toda a humanidade, leva-nos a entender que nos direitos de todos estão também contemplados os de cada pessoa, porque só na outra pessoa me encontro verdadeiramente. Torna-se crucial empenharmo-nos pelo direito do outro porque o meu direito é vivido no direito do meu semelhante, além de que é na junção de opostos que se vive.
No mundo antigo, a paz não era algo mediado pelo divino; sendo a guerra uma disrupção na vida do homem é necessário forças para a paz. Só que esta é estabelecida pelo pacto entre os Homens, sendo essencial a gentileza do ser humano para a concretização do pacto, fundamental para uma vida normal sem disrupções.
Como pode a teologia católica contribuir, através da reflexão, servindo-se das normas, direito, moral e justiça divinas? O catolicismo anuncia uma Boa Nova diferente daquela a que estávamos habituados, um Deus diferente como o próprio Jesus afirma: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz; Eu não vo-la dou como a dá o mundo” (Jo 14, 27a).
Com o intuito de abrir caminhos, Xabier Pikaza, de Salamanca, iniciou a sua intervenção estabelecendo alguns alertas. Baseando a sua análise nas três bestas do Apocalipse, identifica três poderes que estabelecem as regras na sociedade: império militar, império ideológico e império capital. Na modernidade, as duas grandes bestas são: o capital que absorve tudo à sua volta e a ideologia que tudo submete. Quanto destas duas bestas ditam as regras das guerras atuais?
A questão da guerra fundamenta-se, sobretudo, no desejo de possuir. Possessão que se verifica logo no capítulo 6 do livro bíblico de Génesis quando o homem tenta dominar a mulher, ou nos capítulos 11 e 12, em que o homem se une para conquistar o poder, que conhecemos por Babel, uma cidade onde nem Deus pudesse tirar a hegemonia da possessão humana. Mas Jesus serve-se da imagem do agricultor, aquele que cuida a Terra, que a ama e dá a vida por ela para defender o cuidado pelo “outro” – ou seja, não vemos uma Terra usada em benefício do capital e serva de multinacionais. Utilizando esta imagem, procurava evidenciar que aqueles que deixam para os seus irmãos e passam fome para não consumir tudo ou os que aprendem a sofrer, não sendo o sofrimento o desejado, porque se sentem amados e aprendem a amar, são os bem-aventurados do Reino.
Considera-se, então, essencial o diálogo porque a coexistência só é plena pela mansidão e não pela violência, pela comunhão e não pela indiferença, pelo amor-mútuo e não pela imposição do mais forte. A palavra apresenta assim um lugar privilegiado neste itinerário, desde logo porque o Logos é a Palavra que incarnou, mas também porque o diálogo é palavra e a Igreja é a comunhão da Palavra; e quanto mais comunhão se estabelecer com a Palavra, mais palavra de comunhão, mansidão e amor-mútuo a Igreja será. Neste itinerário é vital uma conversão na base, a conversão do mais fraco, à imagem do agricultor e à imagem das ações de Cristo que converteu aqueles por quem passava no caminho, de forma a termos comunidades que testemunhem Cristo nas suas ações, opções e responsabilidades, capacitando para uma vida harmoniosa entre as várias diferenças.
Agostinho, o teólogo da paz

Agostinho, teólogo da paz, pensou também sobre a ética da guerra. Pintura © Philippe de Champaigne
Isidro Lamelas apresentou o teólogo da paz, Santo Agostinho, que apresentou um contributo para uma ética da guerra – quando não há outra alternativa. É necessário esclarecer que Agostinho é herdeiro de uma tradição, sobretudo devido a todas as quezílias que teve de enfrentar no seu tempo e que tiveram repercussão no seu pensamento. Inicia as suas indagações referindo que, em legítima defesa, é lícito matar. Mais tarde, em resposta ao maniqueísmo que condenava o Deus do Antigo Testamento bíblico por ser um Deus da guerra, afirma que a paz é a ordem de Deus, que Deus só toma partido do Povo de Israel para controlar a desordem para controlar as más práticas. Quando responde a Fausto refere que, não havendo outra forma de criar paz e justiça, os cristãos podem participar na guerra.
Chegando a uma encruzilhada em que a guerra pode ser justificável, falta estabelecer uma ética da guerra. Como primícia basilar é necessário entender que a “paz” é o critério, é a prioridade e a vontade de Deus, mas a guerra pode justificar-se para impor a paz e a justiça ou em legítima defesa. Esta guerra deve acontecer apenas em último recurso e partindo de Estados legítimos (estados de direito), sem nunca ninguém ocupar o lugar do outro. Como o mesmo Agostinho refere, é a injustiça do inimigo que leva, em último recurso, o sábio a realizar a guerra, com os pressupostos da autoridade legítima, a causa justa e a reta intenção.
Neste ponto encontramos o perigo de passarmos de uma guerra justa a uma guerra justificada. Com o intuito de evitar esta justificação pode ser razoável – e quem sabe fundamental – deixarmos de pensar numa guerra justa para apostarmos numa paz justa, que é o ordinário da vida e o desejo de Deus.
O shalom (paz) bíblico, a mão estendida de Deus, manifesta-se no Deus Incarnado. Talvez seja importante mediar a relação Marta/Maria para sermos menos práticos e equilibrarmos com mais contemplação que acalma e tranquiliza o coração. Cristo nunca identifica o seu inimigo, não lhe dá um nome, ele existe, mas não é apresentado; assim podemos ver nesta ação um possível lugar de perdão. Jorge Teixeira da Cunha apresenta-nos o “arnês” da justiça como uma proteção e um revestimento para a paz, antepondo à relação humana um pensamento prático de si.
É urgente traçar caminhos de conversão que nos afastem da “globalização da indiferença”, como já nos alertou o Papa Francisco. Indagamos durante séculos sobre a justificação da guerra para a imposição da paz e da justiça, mas podemos estar dependentes de uma mudança de pressupostos, que partiriam da base da justificação da paz, paz que é o desejo de Deus e o habitual para o ser humano. Ética e teologia da paz podem ser a mudança de paradigma para os novos tempos, até porque como disse o Papa Francisco no dia 18 de março de 2022, a propósito da guerra na Ucrânia: “Uma guerra é sempre a derrota da humanidade: sempre!”
David Azevedo é aluno da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto)