Como evitar desenvolver “uma moral fria de escritório, quando nos ocupamos dos temas mais delicados”, como escreve o Papa na exortação Amoris Laetitia? No século XVIII, Afonso Maria de Ligório propôs uma reflexão que toma a consciência como instância constitutiva de moralidade. Jerónimo Trigo, professor de Teologia Moral, enuncia aqui alguns dos seus postulados, que viriam a exercer influência no cardeal John Newman, no Concílio Vaticano II e no Papa Francisco.

“A regra dos atos humanos é dupla; uma é chamada remota, outra, próxima. Remota ou material é a lei divina; próxima ou formal é a consciência”, afirma Afonso de Ligório na sua Theologia Moralis. Foto: Pormenor do teto da Capela Sistina, Vaticano, com a criação de Adão no centro. Direitos reservados.
A grande tradição moral da Igreja Católica sempre afirmou que a consciência moral pessoal é a norma moral última e inviolável para o agir aqui e agora. Mas para um bom número de pessoas, é a clareza de normas e leis estabelecidas que deve ser o guia do comportamento moral. Assim, o papel da consciência pessoal é simplesmente tornar próprias tais normas morais objetivas e obedecer-lhes. A preocupação de muitos é que, se a consciência pessoal for considerada a norma última e inviolável do agir pessoal, inevitavelmente vai cair-se no que chamam “subjetivismo ou relativismo moral”.
Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1778), bispo e doutor da Igreja, de que este ano celebramos 150 anos da proclamação, tem uma perspetiva diferente. A propósito, no dia 23 de março, o Papa Francisco enviou uma mensagem, como o 7MARGENS referiu.
Nela diz:
“Nas disputas teológicas, preferindo a razão à autoridade, [santo Afonso] não se detém na formulação teórica de princípios, mas deixou-se interpelar pela própria vida. […] Este percurso levou-o à escolha decisiva de se colocar ao serviço das consciências que, apesar das inúmeras dificuldades, procuram fazer o bem, porque fiéis ao chamamento de Deus à santidade”.
Afonso inicia assim a Theologia Moralis:
“A regra dos atos humanos é dupla; uma é chamada remota, outra, próxima. Remota ou material é a lei divina; próxima ou formal é a consciência. Ainda que a consciência se deva conformar em tudo à lei divina, contudo, a bondade ou a malícia das ações humanas torna-se conhecida para nós, conforme é apreendida pela consciência mesma”[1].
E mais adiante:
“Quem tem consciência invencivelmente errónea, não só não peca agindo segundo ela, mas também é obrigado, às vezes, a segui-la. A razão das duas afirmações é: não peca, porque embora em si a ação não seja reta, é reta, contudo, segundo a consciência do agente. Este é obrigado, pois, algumas vezes, a agir, segundo ela, se a consciência, que é regra próxima, assim lhe sugere que deve agir. […] Quem atua com uma consciência invencivelmente errónea não só não peca, mas mais provavelmente alcança também méritos[2].

Expliquemos. Para Afonso de Ligório, a consciência é a instância constitutiva de moralidade. A afirmação mais peculiar e decisiva é dizer que a consciência é “norma formal e próxima” do agir moral. Ou seja, na constituição da ordem moral, isto é, “a regra dos atos humanos”, há dois fatores em dialética tensional, e que não existem em separado: um de carácter objetivo (o que é o bom), é “a regra remota ou material”, identificada com “a lei divina”; o outro subjetivo (como ser bons, como agir bem), é “a regra próxima ou formal” e concretiza-se na consciência pessoal.
Afasta-se da compreensão aplicativa, quase mecânica, de consciência moral, em que a pessoa fica reduzida a agente calculador das normas que se hão de aplicar ou não. O seu pensamento é marcado pela orientação “personalista”, que se traduz na interpretação da consciência e do seu papel no agir; é o fator personalizador da vida moral.
A visão da consciência como “regra formal” leva a insistir sobre a necessidade de que a ordem objetiva seja percebida e assumida; isto é, feita própria pela consciência pessoal; é a promulgação na consciência. Só é norma moral que obriga, “enquanto é apreendida pela consciência mesma”, como é dito. Sem isso há apenas a “regra material” ou a dúvida; não a fonte da plena e verdadeira obrigação moral. A autonomia moral da pessoa tem aqui um importante ponto de apoio.
Situações da vida são decisivas para a moral

Já dissemos que a consciência moral não fica reduzida a mero reflexo da norma objetiva, a uma dedução, como consciência aplicativa. Não repete simplesmente, não aplica mecanicamente, mas investiga a realidade concreta das situações pessoais, faz um discernimento e propõe uma solução. Neste sentido, fala-se de consciência propositiva, ou até criativa. Isto não quer dizer que crie a verdade moral em abstrato, sem referência a mais nada do que a si mesma, mas, antes, que se torna para a pessoa concreta a solução ajustada, a regra última do agir moral. Vejamos outro texto:
“Alguns dizem que basta conhecer os princípios gerais da moral, porque com esses princípios podem resolver-se todos os casos particulares. Quem nega que todos os casos se devem resolver com os princípios? Mas a dificuldade está em aplicar a cada caso particular os princípios convenientes. Coisa que não se pode fazer sem ter discutido muito atentamente as razões pro e contra. […] Há que distinguir que princípios através dos quais se deve decidir uma multidão de casos particulares”[3].
Ou seja, o conhecimento dos princípios morais em abstrato, isto é, as estruturas com as quais se realiza o juízo moral, não é suficiente, pois não é possível a formulação de juízos morais verdadeiros, sem a compreensão da sua justeza concreta de acordo com as circunstâncias particulares. Apesar das normas morais poderem ser certas, as diferentes situações que acontecem na vida têm importância decisiva na vida moral. Afonso, na dialética entre “lei” e “consciência” toma posição por esta, distanciando-se de autores que apresentavam um conjunto de regras que a consciência devia perceber e aplicar para agir com certeza moral.
É na afirmação do caráter vinculante da “consciência invencivelmente errónea” – isto é, a pessoa objetivamente está no erro, mas a sua consciência é subjetivamente reta, de boa fé, sem culpa – que se releva a força constitutiva e vinculante da consciência na vida moral. Para Afonso de Ligório, a consciência invencivelmente errónea, não só exime do pecado, mas também torna meritório o ato moral, porque é feito com a convicção que se age bem ou que não se age mal.
Não se trata sobretudo de especulação. A moral alfonsiana constitui-se a partir da prática pastoral, mais concretamente do Sacramento da Penitência. A consciência é que determina a verdade ‘prática’ e, por conseguinte, a verdade que salva ou condena.
“Doutrina fundamental de Afonso: a lei, mesmo a lei natural, tem valor de lei, formal e efetivamente, moral, apenas quando se fixa no interior da pessoa, como convicção de que, em situação, é preciso fazer ou não fazer o que a lei diz para fazer ou não fazer. Neste fixar-se da lei, como convicção de consciência de dever fazer ou não fazer, consiste, segundo o santo, a verdadeira promulgação moral. Esta doutrina, como se pode intuir, tem hoje uma importância extraordinária”[4].
Não desenvolver uma moral fria de escritório

O ensinamento alfonsiano tem repercussões em John Newman quando este afirma que “a consciência é o primeiro dos vigários de Cristo”, e no Concílio Vaticano II, na Constituição Gaudium et Spes 16 (“dignidade da consciência moral”) e 17 (“grandeza da liberdade”) e na Declaração Dignitatis Humanæ, “sobre a liberdade religiosa”. Voltemos à mensagem do Papa Francisco:
“Como nos recorda o próprio Santo Afonso, só o conhecimento dos princípios teóricos não é suficiente para acompanhar e corroborar as consciências no discernimento do bem a fazer. É necessário que o conhecimento se torne prático. […] A formação das consciências para o bem parece ser uma meta indispensável para cada cristão. Dar espaço às consciências – lugar onde ressoa a voz de Deus – para que possam realizar o seu discernimento pessoal na realidade da vida, é uma tarefa formativa à qual devemos permanecer fiéis”.
E noutra passagem de âmbito mais geral: “A Teologia Moral não pode refletir apenas na formulação de princípios, mas precisa de ser proativa diante da realidade que ultrapassa qualquer ideia”. Nesta perspetiva se situa a Exortação Apostólica Amoris Lætitia.
“Custa-nos deixar espaço à consciência dos fiéis, que, muitas vezes, respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites, e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37).
No contexto da insistência sobre o discernimento pessoal acompanhados pelos pastores e sobre a elaboração dos juízos morais, considerando a “norma” e as “circunstâncias”, afirma:
“A partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos concretos, podemos acrescentar que a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objetivamente a nossa conceção do matrimónio. É claro que devemos incentivar o amadurecimento duma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus, e descobrir, com certa segurança moral, que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo” (AL 303).
E a seguir: “É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano” (AL 304). É a perspetiva que “nos impede de desenvolver uma moral fria de escritório, quando nos ocupamos dos temas mais delicados” (AL 312).
Notas
[1] AFONSO DE LIGÓRIO, Theologia Moralis, Lib. I, tract I. cap. I, n. 1..
[2] Ibidem, nn. 5-6.
[3] AFONSO DE LIGÓRIO, Pratica del Confessore, 1 § 17.
[4] D. CAPONE, S. Tommaso e S. Alfonso in Teologia Morale, in S. BOTERO – S. MAJORANO (org.) La proposta morale di Sant’Alfondo; svilupo e attualità, EDACALF, Roma, 1997, 297-298.
Bibliografia
MAJORANO, Sabatino, La coscienza; per una lettura cristiana, San Paolo, Cinisello Balsamo, 1994.
REY-MERMET, Théodule, La morale selon St Alphonse de Liguori, Cerf, Paris, 1987.
VIDAL, Marciano, “La conciencia en el proyecto moral de Alfonso Liguori”, Moralia, XIX, 1996 /4, 389-410.
VIDAL, Marciano, Historia de la Teología Moral, V; De Trento al Vaticano II; 3. Alfonso de Liguori (1696-1787); el triunfo de la benignidad frente al rigorismo, Vol. II, Perpetuo Socorro, Madrid, 2019.
Jerónimo Trigo é professor de Teologia Moral na Universidade Católica e padre católico, da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos); subtítulos da responsabilidade do 7MARGENS.