
Rei mouro no castelo dos Bugios que não lhe fazem a vida fácil, na procura do seu homólogo. Fotos © Luís António Santos.
O São João é uma festa cíclica associada ao solstício de verão, celebrada em muitas partes do mundo. Em Portugal, está encadeada nas festas dos chamados santos populares – Santo António de Lisboa e Pádua; São João, o Batista; e São Pedro, o primeiro Papa.
Falar, em Portugal, de festas de São João, é falar inevitavelmente de Braga e do Porto. Gostaria, porém, de trazer aqui o caso de uma outra festividade, bastante menos aparatosa e conhecida, mas provavelmente não menos interessante. Refiro-me ao São João de Sobrado, no município de Valongo, também conhecido pela festa da Bugiada e Mouriscada.
O que a carateriza e distingue e leva àquela vila dos arredores do Porto uma pequena multidão, em cada dia 24 de junho?
Antes de mais a originalidade das danças e lutas entre mouros e cristãos, protagonizadas por largas centenas de participantes em trajes garridos que diríamos, sobretudo no caso dos Bugios (que são os cristãos), de estilo pré-séc. XVIII. A narrativa contida nas performances que realizam, desde o nascer do dia ao pôr do sol, termina em apoteose, com uma guerra, tornada inevitável pelo fracasso da mediação de advogados e embaixadas. Do conflito sai militarmente vitorioso o lado mourisco, que leva o Velho, o líder da Bugiada, sob prisão. Mas a formação adversária recorre a uma enorme Serpe para romper, pelo efeito combinado da surpresa e do terror, o dispositivo de segurança dos mouros, conseguindo libertar o Velho e repor a situação inicial.
Isto – assim tão sumariamente dito – é o que enche os olhos e espanta os visitantes. Na verdade, é a coluna vertebral desta tradição sobradense. Mas, nos interstícios das danças, decorrem outras manifestações de não menor valia antropológica. Desde logo, a componente propriamente religiosa – com missa solene e procissão – apresenta a particularidade de os mouros entrarem na igreja-matriz no decurso da celebração e serem eles que transportam aos ombros os andores dos santos, especialmente o de São João.
Depois, durante boa parte da manhã do dia 24, aparecem, de surpresa, grupos de mascarados satirizando acontecimentos do ano anterior, ocorridos na vila, no município, no país e também no mundo. É a única componente festiva que varia de ano para ano. Os poderes (autárquico, político, religioso…) são frequentemente os “bombos da festa”. E as charges surgem temperadas de doses, por vezes, fortes, de teor sexual e vernacular. Obrigatória é a interação direta com os circunstantes, no meio dos quais se movimentam.
Durante a tarde, em intervalos de danças de Bugios e Mourisqueiros, mas às vezes em simultâneo com elas, decorrem rituais de sementeira da praça, realizados pela ordem inversa àquela que os protagonistas realizam (ou realizavam) nos seus campos. Ou seja, começam por semear e terminam a lavrar. Claro que tudo é condimentado pela galhofa e pela destruição das toscas alfaias agrícolas, que o uso de máscaras facilita.

Finalmente, ainda nestes intermezzos, é representado um teatro popular, sempre protagonizado por mascarados, que põe em cena pequenos dramas da vida quotidiana: o sapateiro e o ajudante que não se entendem; a perturbação causada na comunidade por um cego que chega de fora; o roubo e fuga da mulher do sapateiro que se gabava publicamente da fidelidade dela; tudo isto à mistura com lutas de paus, com o chafurdar dos atores na lama, a mesma lama que é lançada sobre os assistentes.
Quem chega de fora colhe a impressão de um certo caos, com as coisas a aparecerem de surpresa, sem se fazerem anunciadas, no meio de toda a gente. Na verdade, há um fio condutor que os sobradenses conhecem e transmitem aos mais novos.
Ao contrário de muitas outras festas, em Sobrado não se trata de “representar”; trata-se de viver, de sonhar, de dar vida a um património que fez os sobradenses e que eles continuam, ao fazer a festa. A “paixão”, feita de gozo e dor, de entrega e autossuperação, é a palavra-chave deste São João.
Neste dia, cada coisa está no seu lugar, a uma hora que, mais coisa, menos coisa, é sempre a mesma. Mas isso não impede de os sobradenses serem conhecidos por, ao longo de um dia, inverterem a realidade, porem as coisas às avessas, experimentarem a subversão da vida e, na repetição, ensaiarem a mudança. E não é só por semearem antes de lavrar ou por retratarem os mouriscos como apolíneos e os cristãos como dionisíacos. É por porem os mouros, e não os cristãos, a transportar o andor do santo; por fazerem um banquete multitudinário logo no início da manhã; por combaterem e deixarem as lutas num ponto em que parece que ninguém ganha, ou em que todos ganham; por diluírem a separação entre atores e espectadores; por contarem histórias sem texto nem palavras…
A festa envolve diretamente perto de um milhar de pessoas numa vila que tem à roda de sete mil. Mas muitas mais se implicam indiretamente. Muitas das boas centenas de emigrantes que foram há décadas trabalhar para França ou Luxemburgo arranjam modo de vir à festa, muitos com a promessa de ir dançar. E com as tecnologias hoje disponíveis, não falta quem transmita em direto pelo menos as Danças de Entrada ou a Prisão do Velho.
As escolas da zona têm progressivamente enveredado pela valorização deste património local, até porque as próprias crianças são as primeiras a fazer com que os professores, vindos de fora, tomem consciência de que o seu São João é importante para elas e para a comunidade. Por vezes, figuras da festa vão à escola dar o seu testemunho e as visitas de estudo dispõem desde há anos de um Centro de Documentação na freguesia.

Mas seria excelente que quer a escola quer a Igreja pudessem tirar partido do que a festa põe em jogo, com a história e a influência da presença dos árabes em terras que são hoje Portugal e Espanha; com o diálogo inter-religioso e a convivência entre os diferentes (note-se que, neste São João, os Mourisqueiros são os jovens solteiros, bem organizados e de cara descoberta, enquanto os Bugios são … toda a gente, velhos e novos, homens e mulheres, ricos e pobres, todos mascarados, ruidosos e jubilosos).
São dois universos que se encontram, se digladiam e, sobretudo, que, no quotidiano, conseguem conviver com e nas diferenças; isto apesar de, ao longo de décadas, se ter procurado promover uma interpretação apologética dos cristãos e denegridora dos mouros, que não corresponde ao “texto” implícito do conjunto das manifestações desta tradição popular.
Uma coisa é certa: uma festa desta envergadura é, mais do que um texto a aprender a ler, uma mina a escavar. Muito está ainda por fazer.