
O destino de Caim depois de matar o seu irmão Abel na escultura de Henri Vidal, Jardin des Tuileries em Paris – França. © PickPik
É um facto inegável que a religião contribui de certa maneira para a saúde, felicidade e bem-estar de muitas pessoas, especialmente para aquelas que se têm envolvido ativamente com alguma instituição religiosa e que assistem regularmente aos seus ofícios. De acordo com inquérito efetuado em 2019, chegou-se ainda à conclusão de que o sentimento de pertença a uma igreja, a boa comunhão e os laços afetivos com outras pessoas, a prática de rituais e participação ativa nos cultos, são fatores que contribuem positivamente para a saúde psíquica, emocional e até física.
Mas a religião pode igualmente provocar danos emocionais e psíquicos na vida de muitas pessoas. Alguns psicólogos têm estudado aquilo que adjetivam de Síndrome do Trauma Religioso (RTS, Religious Trauma Syndrome), ou seja, um conjunto de sintomas, incluindo o da culpa, que surge em muitos fiéis decorrentes da sua experiência no seio de grupos religiosos caracterizados por terem certos sistemas de crenças autoritários, dogmáticos e controladores. Muitas dessas pessoas acabarão de sofrer durante décadas de sintomas do tipo stress pós-traumático, incluindo ansiedade, dúvidas de si próprios e sentimentos de desadequação social.
Talvez a génese destas desordens emocionais e psíquicas na vida de muitas pessoas tenham a sua origem numa falsa imagética acerca de Deus e que é igualmente fruto da adoção de uma extrema visão antropológica negativa agostiniana: os seres humanos têm uma natureza totalmente depravada como consequência da sua rebeldia e desobediência a Deus, sendo por isso culpados e totalmente carentes da Sua graça. Mais tarde, o próprio Calvino e os seus seguidores irão colocar a tónica no determinismo que assenta na total soberania de Deus e que retira aos seres humanos o livre arbítrio.
Mesmo para aqueles que Deus predestinou a serem salvos, acentuar-se-á sempre a sua natureza caída e o seu estado de culpa herdada e propagada desde Adão. O uso e imposição dessa culpa desvirtuada estará sempre presente e apetecível por detrás de cada púlpito à espera de poder ser usada a fim de lembrar a todos a sua natureza pecadora, podendo até ser instrumento de controlo sobre os fiéis. Por vezes, confrontados com essa imagética de um Deus tremendamente irado, vingativo e punitivo, arriscamo-nos a perder o Seu amor perante a exposição das nossas culpas. Conforme afirmou Paul Tournier, famoso psiquiatra suíço cristão, “O homem, em todas as épocas, projetou em Deus precisamente esta ideia. Imagina que Deus vai amá-lo somente se for bom e que irá recusar o seu amor se for culpado. O medo de perder o amor de Deus – esta é a essência do problema da humanidade e da psicologia. Mesmo aquele que não acredita em Deus teme perder o Seu amor. Foi exatamente dessa falsa ideia de Deus, tão difundida ainda hoje pelo Seu povo, que Jesus veio nos libertar. Jesus mostra-nos que Deus ama-nos incondicionalmente. Ama-nos, não pela nossa espiritualidade ou pelas nossas virtudes, mas sim pela nossa miséria e nossa culpa.” (Paul Tournier. Culpa e Graça. Uma análise do sentimento de culpa e o ensino do evangelho. Editora Ultimato)
É verdade que a consciência de nos sentirmos culpados é uma grande constante da vida humana. Mas a própria culpa em si, tem também o seu lado saudável e virtuoso, uma vez que potencia o fator de arrependimento, cuja origem no grego imprime a ideia de mudança de pensamento e que pode conduzir, obviamente, a alteração de comportamentos, de atitudes, maneira de ser e de viver. Não necessitamos de viver constantemente debaixo do peso da culpa, seja por consciência própria ou por imposição de outros, até porque o teor da mensagem do Evangelho é essencialmente uma boa nova libertadora e sempre constante ao longo da vida de cada um.
Afinal, segundo as palavras e ações do próprio Jesus, é-nos apresentada essa imagem tremendamente revolucionária que nos liberta de muitas das culpas tóxicas que nos aprisionam por vezes a alma, a de um Deus que é infinitamente amoroso, gracioso e que nos ama independentemente daquilo que somos, possamos fazer, pensar ou sentir. Finalizo citando de novo Paul Tournier: “a verdadeira culpa é, principalmente, não ousarmos ser nós mesmos. É o medo do julgamento dos outros que nos impede de sermos nós mesmos, de nos mostrarmos tal como somos, de manifestarmos os nossos gostos, desejos e convicções, de nos desenvolvermos, de nos expandirmos segundo a nossa própria natureza, livremente. É o medo do julgamento dos outros que nos esteriliza, que nos impede de produzir todos os frutos que somos chamados a produzir.”
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona. Contacto: vitorraf@gmail.com