
O padre João Felgueiras com alunos da Escola Amigos de Jesus, por ele criada. Foto © Carla Araújo
A família dos Felgueiras, das Taipas, deu a Portugal e ao mundo nove filhos. A maioria deles consagrou-se a Deus em diversas famílias religiosas e missionárias: Carmelitas, Franciscanas Missionárias de Maria, Espiritanas, Espiritanos, Jesuítas. Só um (o dr. Vasconcelos) casou para dar descendência à família. Tive a honra de ter tido como confrade espiritano o padre José Maria e ter conhecido a Irmã Maria José, das Irmãs Espiritanas (foi a primeira Espiritana de Portugal) e o padre João, jesuíta. Só este está entre nós e celebrou a 9 de junho, em Timor, o seu centenário de nascimento (como se referiu aqui no 7MARGENS).
Os manos que já partiram
O padre Francisco Nogueira da Rocha, antigo ecónomo geral da congregação dos Missionários Espiritanos, escreveu uma biografia do padre José Maria Felgueiras, em 1986, com o título: P. José Maria Felgueiras, mártir da caridade, falando da vida e missão deste espiritano, irmão de João Felgueiras, jesuíta centenário em Timor.
O padre José Maria faleceu em Espanha na sequência de um acidente de comboio quando saltou para a linha a fim de salvar um jovem seminarista que ia ser atropelado pelo comboio. Viveu o jovem, morreria ele 54 dias mais tarde.
Escreve Adélio Torres Neiva na História dos Espiritanos em Portugal: “A 26 de novembro de 1956, depois de 54 dias de doloroso sofrimento, com as pernas amputadas em consequência de um grave acidente de comboio (4 de outubro), sofrido quando tentava salvar um dos estuantes do seminário de Paredes de Nava, faleceu no hospital de Palência o P. José Maria Felgueiras, sempre recordado com saudade por quantos o haviam conhecido” (p. 900). E conclui: “A 27 de dezembro de 1957, o Ayuntamiento de Jodar (Jaén) deu a uma das ruas da terra donde era originário o seminarista Lino Diaz, (…) o nome do P. José Maria Felgueiras [que o salvou]. A 15 de janeiro de 1959, o Ministério do Governo conceder-lhe-ia, a título póstumo, a Ordem Civil da Beneficência de Espanha” (p. 901).
A irmã Maria José Felgueiras (1915-1993), enfermeira, deu a sua vida à missão como irmã da Congregação do Espírito Santo. Foi a primeira espiritana portuguesa. Fez a sua formação em França e foi missionária nos Camarões entre 1936 e 1941.
Regressou a Portugal para integrar a equipa de Irmãs que lançou a presença das Espiritanas no nosso país neste ano de 1941. Partiria, em 1951, na primeira equipa de cinco Espiritanas que rumaram a Angola. A primeira Missão foi no Cuíma, Nova Lisboa [hoje, Huambo], onde funcionavam um dispensário e uma famosa escola de formação de professores. Dali as irmãs seguiriam para as cidades de Nova Lisboa e Sá da Bandeira [agora, Lubango], abrindo, posteriormente, comunidades noutras províncias e dioceses de Angola. Regressou definitivamente a Portugal em 1974, trabalhando no Hospital de Guimarães até à reforma. Depois, em 1978, integrou a comunidade de Fraião (Braga) onde viveu e trabalhou até à morte, em 1993.
Missão em Timor

Padre João Felgueiras (ao centro), com o então bispo de Timor, D. José Joaquim Ribeiro.
Foi a tragédia que vitimou Timor que me fez conhecer o padre João. A invasão indonésia e os massacres que flagelaram os timorenses ávidos de independência, levaram-me a abraçar este povo, de alma e coração.
Um dos momentos mais gratos deste tempo foi o encontro com o padre João Felgueiras que me visitou, em 2000, em Lisboa, para conversarmos sobre um projecto que, de forma clandestina, apoiávamos: bolsas para jovens timorenses ajudados pelos jesuítas em Timor.
Foi um encontro de família, pois o padre João era irmão do padre José Maria e da irmã Maria José, ambos da Família Espiritana. Desse encontro, de que guardo gratíssima memória, surgiu a necessidade de escrever um editorial para o jornal Ação Missionária de que, naquele tempo, eu era director. Transcrevo a seguir o texto:
Por Timor
De barbas e batina branca a andar pelo meio dos escombros de Díli, de ar cansado, arrasado pela situação, o P. João Felgueiras está em Timor há muitos anos, viveu o drama de um povo massacrado, ficou ali de pedra e cal a partilhar a desgraça de um povo. A idade que avança e os dramas vividos não lhe apagaram a garra de olhar o futuro.
Conversei com ele algumas horas. Diz dever a sua vocação missionária aos Espiritanos. Ele tinha um irmão e uma irmã espiritanos. Ambos faleceram, tendo sido figuras de renome.
Está feliz com o governo de transição. Está contente com a maneira como a situação evolui. Já sonha com a reconstrução das casas do povo, com o regresso dos jovens às escolas e universidades.
É uma voz de experiência. Todos o querem ouvir: presidentes da República, ministros, diplomatas, bispos… a profundidade das suas análises e a lucidez das perspetivas de futuro que apresenta não se podem deitar fora. O P. Felgueiras tem consciência de que os timorenses não vão nunca querer ser indonésios, após os massacres de setembro de 99. Ele recorda sempre, com um misto de emoção e serenidade, aquelas imagens que correram o mundo e nos encheram os olhos de horror. Para escapar, teve de se refugiar nas montanhas. Está convencido de que os estudantes universitários devem estudar em Timor. Elogia os compromissos das ONGs, mas pede menos ostentação e melhor conhecimento da realidade. Vê os valores cristãos como pilares éticos da nova nação Lorosae.
É um homem sem medo, com grande sentido de missão. Para ele, correr riscos não mete medo. O importante é dizer e fazer o que acha mais importante.
Parabéns P. Felgueiras, para bens Timor Lorosae’.
(Lisboa, jornal Ação Missionária, agosto-setembro de 2000. Publicado em 2005 na coletânea Crónicas com Missão, p. 48).
Acerca do padre João Felgueiras, além do texto que o 7MARGENS publicou, o PontoSJ divulgou também o testemunho de uma sobrinha-neta, a par de outras memórias.
Tony Neves é padre católico e trabalha em Roma como responsável do Departamento da Justiça e Paz dos Missionários do Espírito Santo (CSSp, Espiritanos), de cuja congregação é membro.