
“Das Profundezas” foi realizado pelo italiano Michelangelo Frammartino.
Deixem-me começar com esta citação que encontrei: “Uma meditação calma, intensa, quase esmagadoramente bela sobre a vida, a morte, a curiosidade humana e o insondável poder da natureza” (A.O. Scott & Manohla Dargis, The New York Times). Diz quase tudo o que senti ao ver este filme tão diferente.
Estamos numa pequena e belíssima aldeia, encravada no vale de umas montanhas grandiosas, na Calábria, sul pobre de Itália. O ano é o de 1961, ano em que foi inaugurado o edifício Pirelli, em Milão, no Norte rico de Itália, notícia que os habitantes vêem numa televisão a preto e branco, acompanhando um elevador que sobe a uma grande altura. E é também o ano em que um grupo de espeleólogos vai para essa aldeia explorar e cartografar uma fenda geológica, descendo aquela que se revelará ser a terceira mais profunda da Europa. É importante o simbolismo deste contraste.
Nessas montanhas magníficas – filmadas de modo muito solene e divino, diria –, onde está situado “o buraco” (é esse o título original do filme), numa cabana de montanha, vive um grupo de pastores que cuida do gado que se alimenta nessas alturas. De entre esse, desde o início, sobressai a figura tutelar de um deles. É um belo rosto de velho marcado pela passagem dos anos, a quem cabe acompanhar mais de perto o gado e que aparece, quase sempre, atentamente sentado junto ao tronco grande e rugoso de uma árvore. É de lá, como se fosse uma sentinela, que vigia tudo o que se passa. E é desse lugar que, talvez sem compreender, assiste ao grupo de espeleólogos que chega, monta o acampamento e vai fazendo o seu trabalho de descer ao buraco.
Digamos então que a câmara se limita a acompanhar o que acontece com o(s) pastor(es) e com os espeleólogos. Por isso, é um filme de pouquíssimas palavras (ainda que com muitos sons) – não há sequer legendas, as únicas que aparecem são as da televisão, logo no início. E é, de maneira sublime, para mim, um filme de imagens. São elas que falam. Aquele jogo de luz e sombras causado pela única luz dos capacetes dos espeleólogos, primeiro na aldeia, mas sobretudo depois naquela imensa gruta, é indescritível e inesquecível. Penso que pode ser visto – creio que é isso que o filme pode ser – como uma metáfora da nossa vida: esse caminhar lento e custoso, “entre as luzes e sombras do caminho”.
O cinema, como escreve João Lopes, no Diário de Notícias, “nasce do milagre da luz”. Não sei se alguma vez foi tão verdade como neste filme.
Na montagem em paralelo – a vida cá em cima e a vida lá em baixo – há um momento revelador. Um dia, o tal pastor vigilante que aparece no princípio não regressa à cabana, o burro chega sozinho e sem os ramos de lenha que costumava carregar. Alguma coisa aconteceu. Como vimos naquelas páginas de revista, acesas e atiradas para iluminar a escuridão das profundezas e que naturalmente se extinguiam, também a vida do pastor está prestes a apagar-se. Naturalmente, no fim de uma vida longa, como a chegada ao final da exploração e do mapeamento da fenda geológica. Inesquecível aquele fechar da porta e da janela, e da luz que não deixou de atravessar as fendas na madeira. Inesquecível também a imagem, aquando da chegada, dos espeleólogos – uns mais do que os outros – deitados a dormir, na sacristia da igreja, lado a lado com a imagem de Cristo jazente. Como o pastor nos últimos momentos da vida.
“Das Profundezas é um filme poético, plácido e, à sua pausada e atenta maneira, aventuroso”, escreveu Eurico Barros, no Observador. Seria “pecado” não ver.
(Uma nota final para dizer que, logo no fim da sessão, me lembrei do Salmo e do título do livro de José Cardoso Pires De Profundis, Valsa Lenta, que inspirou o título deste texto.)
Das Profundezas, de Michelangelo Frammartino, com Mila Costi, Paolo Cossi e Claudia Candusso.